25 de janeiro de 2005


Glub - Alexandre Fermar

* Obrigada pela ilustração, Alexandre. Tem dias que ela perece um espelho... beijos.

Ví(cio)s
Raquel Medeiros

Telefone e despertador tocando ao mesmo tempo. Não quero levantar. Ainda estou sob efeito das drogas da madrugada – o som do trem noturno no seu percurso sem desvio, alguns comprimidos coloridos, resquícios de presença masculina nos lençóis e a insônia (desta não me livro nunca!).
Telefone e despertador tocando ao mesmo tempo. Parecem ensaiados. Não levanto. Sei que não conseguiria falar com ninguém hoje. Sinto uma dor fina e insuportável no peito. E algo interrompendo a passagem da saliva. Estou irremediavelmente engasgada... Deve ter sido um daqueles comprimidos coloridos...

Sobremesa: "E agora Maria?/ o amor acabou/ a filha casou/ o filho mudou/ teu homem foi pra vida/ que tudo cria a fantasia/ que você sonhou/ apagou à luz do dia/ e agora Maria?/ vai com as outras/ vai viver com a hipocondria." (Alice Ruiz - paródia do poema "José", de Carlos Drummond de Andrade)

20 de janeiro de 2005


Letters of desire - Yuko Shimizu

Há um voyeur em cada um de nós
Raquel Medeiros

Não espere que eu diga “eu te amo”. Aliás, não espere que eu ame você. Esse amor que você grita aos quatro cantos é mero capricho seu, é um jeito de tentar me fazer ficar, de enganar alguns dos meus órgãos-não-racionais.
Mas como é bom num dia como hoje te vestir na fantasia de carrasco e contar minhas mágoas aqui. O quanto você me faz sofrer... quando nega o jogo e o fogo; quando viaja; quando volta e dorme; quando não dorme em casa...e tantas outras coisas que só dizem respeito a nós dois.
Você até fica mais sexy nessa fantasia de carrasco que na de “homem apaixonado”. Você não sabia, mas é isso que me faz ficar. Eu nunca te falei que era um pouco masoquista? Certo, talvez nem tão pouco assim... eu te amo. Volta logo que eu tô com saudades. E vontades também.

Sobremesa: "Paixão é quando o demônio está nu/ sexo com quem ama é muito mais satânico/ não precisa ser um amor pra sempre/ pode ser um amor de repente/ qualquer amor inferniza." (Clarice Lispector)

14 de janeiro de 2005

Onde está a poesia?
Raquel Medeiros

Onde está a poesia?
Dizem que foi rua acima
Reclamando a paz perdida
Dizendo que tem mais o que fazer da vida
Que se preocupar em fazer rima.

Onde está a poesia?
Dizem que foi na casa da vizinha prosa
Reclamando a alegria perdida
Dizendo que tem mais o que fazer da vida
Que ser letra dolorosa.

Onde está a poesia?
Dizem que dobrou a esquina
Reclamando a juventude perdida
Dizendo que tem mais o que fazer da vida
Que ser velha ao invés de menina.

Onde está a poesia?
Dizem que foi pra outro país
Reclamando a felicidade perdida
Dizendo que tem mais o que fazer da vida
Que ficar nesse blog infeliz.

Sobremesa: "Tem dias que ela se revolta/ com a letra torta/ com a felicidade morta/ eu que não quero confusão/ deixo ela num canto/ louvo o riso/ respeito o pranto/ e ela que volte quando estiver pronta/ quando quiser o coração." (Raquel Medeiros)

11 de janeiro de 2005


Charlie Brown - Andrei Formiga

* Adorei a foto, e o Charlie Brown. Obrigada. =)

Mesmo enrugadas, não haviam mãos tão amadas quanto as dela
Raquel Medeiros

Quando a conheci já vivia sozinha. Filhos casados morando longe. Visitas periódicas no verão, e no Natal. Mas nas segundas-feiras, dias chuvosos e tristes éramos só nós dois.
Era uma mulher de grandes silêncios e de gestos significativos. Eu ouvi seus segredos e ela sempre dizia que eu havia trazido a alegria de volta àquela casa, mesmo quando a sujava depois das brincadeiras no quintal.
E a vida que antes se resumia à lágrimas na sala grande e vazia, agora era contada por passeios, brincadeiras e carinhos ao som da tv.
Os anos foram passando, eu fui crescendo e vendo ela perder cada vez mais o viço da pele e a audição. O volume da tv cada vez mais alto. Eu também já tinha um certo cansaço, e notando o dela, já não subia mais na saia de retalhos, mas demonstrava meu carinho e gratidão balançando o rabo, e pousando minha cabeça em seu colo, quando sentava na poltrona, que de tão antiga, já tinha a forma do corpo dela.
Um dia ouvi um barulho estranho, e ao entrar na sala, lá estava seu corpo, quieto e frio. Seu sangue espalhado no assoalho escuro. Eu latia e uivava num pedido de socorro. Os vizinhos vieram, e no velório a casa estava cheia como nunca. Eu queria que ela estivesse viva pra ver todos os netos correndo pela casa, todos os filhos reunidos, abraçados.
Eu fui pra o meu canto, e senti quando uma mão me fez um carinho solidário. Mas eu sabia... Nada confortaria a ausência dela, nem tiraria a certeza de que um dia seria eu.

Sobremesa: "Irreconhecível/ me procuro lenta nos teus escuros/ como te chamas, breu?/ tempo." (Hilda Hilst)

10 de janeiro de 2005


Portrait of Emily - Joe Sorren

A solidão é senhora
Raquel Medeiros

- Descreve o cheiro do teu amor, Maria.
- Acho que não consigo... mas posso tentar...
Maria fechou os olhos, e como se não houvesse mais ninguém naquela sala, desatou a falar:
- É cheiro de tarde com poesia, com beijos dados à frente de casas de portões pequenos. É cheiro de saudades e vontades que não têm fim...
É cheiro de verdades ditas no silêncio, e nas tantas reticências que saem dele e refletem em mim...
É cheiro que provoca essa eterna procura por sílabas e rimas. Mas amor não tem forma, nem métrica.
Descrever o cheiro dele assim, sem tê-lo, assumo que vou fracassar... desistir... Pois sua ausência não me traz nenhum alento, ao assustador movimento de pensar e não tocar... de escrever e não sentir...
Só sei que tudo o que eu queria agora era o cheiro dele... sentí-lo em longas paradas na nuca...
Ah, releve a incapacidade de descrever...é uma maldade ficar lembrando do cheiro... do gosto... dele...
Por hora, essa é a melhor definição que consigo fazer...
Quando abriu os olhos, não havia mais ninguém na sala, mas o cheiro dele estava espalhado por todo o lugar... Há muito tempo ela não sentia... Essa era a segunda sessão de terapia, desde a morte do Fernando. Depois disso, Maria não voltou mais pra terapia... nem pra casa...

Sobremesa: "I seem to lose the power of speech/ you're slipping slowly from my reach/ you grow me like an evergreen/ you've never seen the lonely me at all/ (...)/ without you I'm nothing." (Placebo)

5 de janeiro de 2005


"Ying and yang" - Yuko Shimizu

A toda “não-ação” corresponde uma reação
Raquel Medeiros

De um lado, a sala – mesa, cadeiras, papéis, e ele. De outro, uma máquina fria e ela. Seguia-o com os olhos e com um desejo que não tinha tamanho... aliás, tinha sim – era imenso. Havia desejo demais... gente demais... ele de menos...
Ele saía. Deixava-a a ver navios. Ela mesma se sentia um, ancorada na cadeira, de onde não conseguia sair. Sabia que não era uma embarcação feita pra ficar presa no porto, mas sair dali - naquele momento - era impossível.
Formava-se um grande intervalo entre a saída e a volta dele. Ela esperava e divagava acerca do cheiro dele, da textura da pele, e das tantas possibilidades que aquele conjunto lhe proporcionava. Havia desejo demais... gente demais... ele de menos...
Ela cruzava as pernas na vã tentativa de senti-lo enroscado entre elas. Contorcia-se na cadeira, massacrando o desejo e algumas partes do corpo. O voyerismo era latente, e percebia-se uma certa dose de masoquismo. Nem tinha idéia de como certas torturas podiam ser mais prazerosas que carinhos singelos.
Quando ele voltava, ela seguia - com os olhos e a imaginação - cada centímetro dele. E como cada pedacinho era tentador! Boca, nuca, olhos, ombros... Ele a deixava faminta, sedenta. Havia desejo demais... gente demais... ele de menos...
Ele ia e vinha, passeava na frente dela. Contornava a mesa, sumia. Parecia fazer de propósito, mas não era. E isso a deixava ainda mais instigada. Exasperada pela volta.
Ela queria que ele voltasse, e dissesse que por um decreto, ou mágica, a partir de então, se privariam da coletividade, e se entregariam ao individual. Que a partir de hoje, ela faria morada no corpo dele.
Numa dessas horas em que ele se mostra, ela vê e aperta as mãos como gostaria de apertar o corpo dele... ou abrir o maldito jeans e gozar enquanto sondava o desejo dele...
Não é um desejo manso. Não há acordo de cavalheiros entre a vontade e a impossibilidade. São dias de febre. De fome e sede. Mas ela não pode fazer nada, a não ser esperar... outro dia de tortura... ou o esperado dia do banquete...
Há desejo demais... gente demais... ele de menos...

Sobremesa: "E existindo o desejo/ a gente começa a se desorganizar/ a pôr amor onde existe a turbulência/ porque a desordem é o imperativo do amor/ e eu que não sei se o amor é também a necessidade que se tem de instaurar a ordem no corpo." (Nélida Piñon)

3 de janeiro de 2005

Mesmo na queda, mantenha sempre o pensamento elevado
Raquel Medeiros

Passado o dia dos versos melosos
Me sobra alguma saudade
Dos dias gloriosos
Algum cansaço dos dias dolorosos.

Na caixa, ficaram os sorrisos
E as lágrimas tratei logo de enxugar
Quero que ela se encha de abraços
Lugares, desejos, amores e amigos.

Essa ânsia de viver não cessa
E mesmo que meu corpo por vezes tropeçe
Eu não canso de levantar
De limpar os arranhões
De jogar fora o salto quebrado
E rir do tombo levado
Que nem criança que cai
Mas sempre volta a brincar.

Sobremesa: "Eu lhe disse, então, se não quer discutir o amor, que afinal bem pode estar longe daqui, ou atrás dos móveis para onde às vezes escondo a poeira depois de varrer a casa, que tal se após tantos anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa?" (Nélida Piñon)