16 de setembro de 2005























"Para um substantivo pobre
Só um predicativo nobre
Aufere graça ou ilusão."
(Julliana Veloso)


Looser
(Raquel Medeiros)

Quem perde a asa
E ainda quer ser passarinho
Não merece um ninho
No quintal da minha casa.

Quem perde o respeito
E ainda quer ser amado
Não merece afago
Nem lugar no meu peito.

Quem perde a passagem
E ainda quer ser visita
Não merece a vista
No percurso da viagem.

Quem perde a esperança
E ainda quer ser lembrado
Não merece ser retrato
Na minha lembrança.

Quem perde o trato
E ainda quer ser enfeitado
Não merece cuidado
Nem delicadeza do meu tato.

Quem perde a razão
E ainda quer ser alcançado
Não merece ser amparado
No momento do furacão.

Quem perde a qualidade
E ainda quer aquisição
Não merece renovação
No prazo de validade.

Quem perde o essencial
E ainda quer ser o foco
Não merece lugar no bloco
Do meu carnaval.

Quem perde a garantia
E ainda quer ser sina
Não merece doçura da minha rima
Só merece o desprezo da minha poesia.

Sobremesa: "Tem sempre o dia em que a casa cai/ pois vai curtir seu deserto vai/ mas deixa a lâmpada acesa/ se algum dia a tristeza quiser entrar/ e uma bebida por perto/ porque você pode estar certo que vai chorar." (Vinicius de Moraes e Toquinho)

6 de setembro de 2005













"I'm so tired of playing
playing with this bow and arrow" (Portishead)

* Na foto, Beth Gibbons.

Naquele bar
Raquel Medeiros

Encontraria o amor naquele bar? Putas disputavam com travestis a atenção dos poucos homens que estavam lá. Desses poucos alguns não viam água e sabão há pelo menos três dias. Mas o que importava? Ela não queria casamento, nem filhos, nem casa hipotecada. Queria amor. E amor não precisa de cerimônias.
Era um bar deprimente. Luz pouca, balcão sujo, e uma velha máquina no canto tocando alguma coisa do Roberto. Uma música antiga, e pra ela, desconhecida.
Ela não era lá de se jogar fora. Um vestido vermelho, sedutor até certo ponto. Já gasto, já largo para o pouco corpo. Pernas finas cambaleavam num salto. O movimento desajeitado lhe emprestava algum charme, parecia elegante caminhar como se estivesse numa corda bamba.

Num canto do bar, um senhor calvo, magro. Boa aparência, barba feita. Bebia tequila e fumava um cigarro de menta. Era o que se podia chamar de uma pessoa sem rótulos. Não que isso fosse essencialmente bom. É como um vinho que você não sabe a procedência, e conseqüentemente não sabe se o tempo o fez ficar mais saboroso ou com gosto de vinagre.
Depois de algumas doses, ele chorava e falava de ter tido poucas mulheres, que lhe dedicavam palavras indecentes à noite e pela manhã sua carteira tinha algumas notas a menos, alguns objetos a menos no seu apartamento já tão vazio. Seu peito com um vazio a mais. Ele não queria casamento, nem filhos, nem cheiro de lavanda nos lençóis.Queria amor. E amor não precisa de grandes provas.

“Tem uns quartos ali atrás. Bem baratos e razoavelmente limpos”. Ela foi.Uma cama.Um ventilador barulhento. Uma luz amarelada. Tiraram os sapatos e deitaram. Um ao lado do outro. Ela olhava para o ventilador e pensava quantas voltas ainda teria que dar até que algo mudasse. Em seguida, deu um longo suspiro. Estava cansada das tantas noites que terminavam num quarto atrás de um bar. Mas ali, ao lado do homem sem rótulos, ela se sentia bem. Havia alguma mágica entre eles. Não eram duas pessoas que amenizavam a solidão um do outro. Era uma solidão conjunta, ainda assim grande, mas parecia melhor do que estar completamente só. Talvez fosse o amor. E amor precisa de cumplicidade.

Sobremesa: "Nobody loves me/ it's true/ not like you do" (Portishead)

1 de setembro de 2005














The second life of Samuel Tyne - Matt Murphy

De um gole só
Raquel Medeiros

Ele levanta e vai ao bar
Lá discute o futebol
A crise instalada
A reforma no banheiro
Tantas vezes adiada.

Ele trabalha e vai ao bar
Lá bebe a cachaça
Mas nada é de graça
Pelo menos o dinheiro da pinga
Ele precisa ganhar.

Quando volta do bar
Equilibrista nato
Eu já estou tão farta
Que quase enfarto
Só de vê-lo chegar.

Pede que lhe sirva o jantar
Eu cá nas minhas preces
“O que fiz pra merecer essa vida?”
E ponho mais um pouco de comida
No prato que depois vou lavar.

Sobremesa: “Quando a noite enfim lhe cansa/ você vem feito criança/ pra chorar o meu perdão/ qual o quê/ diz pra eu não ficar sentida/ diz que vai mudar de vida/ pra agradar meu coração/ E ao lhe ver assim cansado/ maltrapilho emaltratado/ como vou me aborrecer/ qual o quê/ logo vou esquentar seu prato/dou um beijo em seu retrato/ e abro os meus braços pra você”. (Chico Buarque)