24 de fevereiro de 2005


Original beauty - Yuko Shimizu

Versos inquietos
Raquel Medeiros

Seus olhos me olham cada vez mais perto
E com o tempo com os meus se confundem
Fazendo oásis o que antes era só deserto.

Estamos vivos! Sinto seu cheiro, o gosto da sua pele
E todos os seus pensamentos lascivos
Mesmo que não me reveles.

As respirações confundidas
As palavras indecentes
Os gestos sem medidas.

E nesse jeito de te ter com loucura
Sem compostura; de maneira voraz
Cada vez que me pedes um beijo com doçura
Cravo meus dentes no teu corpo e te mordo ainda mais.

Doce é a dor da mordida
Sente prazer a alma, mesmo com a carne ferida
E somos tomados por uma febre
Que, apesar de às vezes breve,
É a melhor coisa da vida.

Me faz livre, me faz leve, me faz viva
Que esse desejo em mim não cessa
A vontade é grande; curta é a vida
E quando meu desejo termina, vem o teu e recomeça.

Sobremesa: "Hoje/ de carne e osso/ laborioso/ lascivo/ tomas-me o corpo/ E que descanso me dás/ depois das lidas/ Sonhei penhascos/ quando havia o jardim aqui ao lado/ pensei subidas onde não havia rastros." (Hilda Hilst)

22 de fevereiro de 2005

O touro e o vermelho
Raquel Medeiros

O vermelho chama o touro. O touro flerta com o vermelho. Ambos não sabem o que vai acontecer na arena. Mas isso não importa...
O homem que segura o vermelho acha que é o centro do jogo. E talvez seja, para a platéia, claro. Mas para o vermelho o que importa é que seu movimento envolva o touro. E para o touro, o desejo que o vermelho desperta.
Paloma também não sabe o que vai acontecer. Mas nem liga, nunca gostou de tourada. O que Paloma gosta mesmo é da sedução entre o touro e o vermelho. Mas para o vermelho e o touro isso também não importa...

Sobremesa: "E a ameaça do que chamamos de inferno/ para mim nada é/ ou muito pouco/ meu camarada querido/ eu confesso que o incitei a ir em frente comigo/ e que ainda incito sem a mínima idéia de qual venha a ser o nosso destino/ ou se vamos sair vitoriosos/ ou totalmente sufocados e vencidos. (...)" (Walt Whitman)

18 de fevereiro de 2005

Este...por enquanto
Paulo Leminski

esse subto não ter
esse estúpido querer
que me leva a duvidar
quando eu devia crer

esse sentir-se cair
quando não existe lugar
onde se possa ir

esse pegar ou largar
essa poesia vulgar
que nao me deixa mentir.

Sobremesa: "O que será que será/ que dá dentro da gente que não devia/ que desacata a gente que é revelia/ que é feito aguardente que não sacia/ que é feito estar doente de uma folia/ que nem dez mandamentos vão conciliar/ nem todos os unguentos vão aliviar/ nem todos os quebrantos toda alquimia/ que nem todos os santos será que será/ o que não tem descanso nem nunca terá/ o que não tem cansaço nem nunca terá/ o que não tem limite." (Chico Buarque)

16 de fevereiro de 2005


That makes my neck numb - Yuko Shimizu

Game over
Raquel Medeiros

Primeiro tempo. Sete da manhã. Ônibus para o trabalho. Sempre lotado, mas era divertido. Ele adorava escolher uma daquelas mulheres e observá-la. Não precisava ser bonita, mas tinha que ser morena e gostosa.
Naquela manhã, estranhamente, ele fitou os olhos numa magricela que estava sentada uns dois bancos à sua frente. Não conseguia tirar os olhos dela. O jeito que ela mexia os cabelos, a displicência com que olhava os passantes na rua. Dava a impressão de que não desceria nunca daquele ônibus; que a intenção era só estar em movimento sem, necessariamente, movimentar-se. O trajeto e o destino pouco importavam.

Segundo tempo. Desceu a velhinha. Desceram os meninos fardados. O cego desceu reclamando das míseras moedas que haviam lhe negado. O assento ao lado dela fica vazio. Ele hesita. Hesitar? Nunca foi disso. Respirou fundo e sentou. Olhou rapidamente e sentiu um frio na barriga.
Ali acabava o jogo. Dessa vez ele não marcou nenhum gol. E o frio na barriga... aquela mulher magra e aparentemente sem nenhum atrativo, era sua irmã. Catorze anos sem vê-la e agora estava ali, ao seu lado. Poderia falar qualquer coisa, mas não teve coragem. Levantou, pediu parada e desceu. Mas sabia que era ela, pois sentiu uma vontade imensa de abraça-la e aquele sinal no canto do olho esquerdo era inconfundível.

Sobremesa: "Eu não quero falar contigo/ eu gosto é de pensar em ti quando estou sentado sozinho/ ou acordado à noite sozinho/ Eu te esperarei/ não tenho dúvida alguma de que vou te encontrar ainda/ E terei cuidado dessa vez para que não te perca." (Walt Whitman)

12 de fevereiro de 2005

Hoje tem entrada, pato principal e sobremesa. Bom apetite! =D

Por mais raro que seja, ou mais antigo,
Só um vinho é deveras excelente:
Aquele que tu bebes calmamente
Com o teu mais velho e silencioso amigo... (Mário Quintana)

Na vida não há
Raquel Medeiros

Na vida não há descanso
E mesmo que o mar esteja manso
Sinto a sua fúria se aproximar.

Na vida não há encanto
E mesmo quando o sentimento é tanto
Sinto a dor o esmagar.

Na vida não há tanto
E mesmo quando a alma transborda em encanto
Sinto a tristeza me esvaziar.

Na vida não há canto
E mesmo quando a voz diz tanto
Sinto o pranto me engasgar.

Sobremesa: "Toda a noite choraste... e eu chorei/ talvez porque, ao ouvir-te, advinhei/ que ninguém é mais triste que nós/ Contaste tanta coisa à noite calma/ que eu pensei que tu eras a minh'alma/ que chorasse perdida em tua voz!" (Florbela Espanca)

10 de fevereiro de 2005


Depression 1 - Yuko Shimizu

A tristeza não é visita, é hóspede
Raquel Medeiros

A tristeza me encontrou
Bateu à minha porta
Achei que fosse alguém bem-vindo
Ignorou o meu não, sorrindo
Entrou e ficou.

Pediu um café amargo
Acendeu um cigarro
Ficou olhando pra mim
Tirando sarro
Da dor que me proporcionou.

Ah, se veneno eu tivesse
Daria uma grande dose
Pois é isso que ela merece
Porque de mim ela não esquece
Quando achei que morta estivesse
Ela voltou.

Sobremesa: "Tudo era questão de decidir. E, embora já tivesse decidido, continuou pensando por pensar, escolhendo e dando-se razões para escolha, até que o amanhecer começou a esfregar-se na janela, no cabelo de Ofelia dormindo, e o seibo do jardim recortou-se impreciso, como um futuro que coalha em presente, endurece pouco a pouco, entra em sua forma diurna, aceita-a e a defende e a condena à luz da manhã."(Julio Cortázar)

1 de fevereiro de 2005

O Labirinto
Jorge Luis Borges

Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.

Sobremesa: "O sentido está gravado/ no rosto com que te miro/ neste perdido suspiro/ que te segue alucinado/ no meu sorriso suspenso/ como um beijo malogrado." (Cecília Meireles)