29 de julho de 2004

O texto é antigo e a sobremesa - outra vez - um pedaço do Chico.
 
Valsa das Horas
Raquel Medeiros

O encontro
As horas
Ansiedade
Demoras
Me visto
Me dispo
As horas
Me pinto
Me borro
Demoras

Tu chegas
São horas?!
É noite
Relevo
As horas
Nos olhos
Na boca
Na pele
Não nego
Que horas!

É manhã
Vais embora
Por favor
Não choras
Não esqueças
Meu relógio
Não atrasa
Amanhã
Voltarei
Na mesma hora.

Sobremesa: "Se eu demorar uns meses convém às vezes você sofrer/ mas depois de um ano eu não vindo/ ponha roupa de domingo e pode me esquecer". (Acorda amor - Chico Buarque)

28 de julho de 2004

De um gole só
Raquel Medeiros

Põe tudo no liquidificador
Raiva, medo e dor
E segura o botão pra misturar.

Coloca na potência mais alta
Que o ar pode fazer falta
Vai ser melhor se menos tempo durar.

Quando tudo estiver bem misturado
Coloca um pouco de choro engasgado
Pra ver se fica mais fácil de passar.

Hora de beber
É difícil, mas mamãe diz que faz crescer
E a hora da sobremesa
Não se preocupe, vai chegar.

Sobremesa: "Ouça um bom conselho/ que eu lhe dou de graça/ inútil dormir que a dor não passa/ espere sentado/ ou você se cansa/ está provado, quem espera nunca alcança/ venha, meu amigo/ deixe esse regaço/ brinque com meu fogo/ venha se queimar/ faça como eu digo/ faça como eu faço/ aja duas vezes antes de pensar/ corro atrás do tempo/ vim de não sei onde/ devagar é que não se vai longe/ eu semeio o vento/ na minha cidade/ vou pra rua e bebo a tempestade". (Bom conselho - Chico Buarque)

27 de julho de 2004

Mirror
Raquel Medeiros

Voltou e olhou novamente para o espelho. Não era mais a mesma de cedo. Leu o jornal; tomou café; pôs comida para o cachorro; tomou banho. As olheiras ainda estavam lá, mas toda a sua expressão havia mudado – mais triste; ou mais cansada – não sabia dizer. No entanto, estava diferente – isso ela tinha certeza.
Saiu. Voltou para almoçar. E no espelho – outra. Nem a de cedo; nem a de antes; nem a de nunca, até ali. Ficou pensando quem seria ela no outro dia de manhã; depois do jantar; dali a algumas horas. Foi tomada por um medo terrível de si mesma. Das muitas que tinha sido. Das muitas que ainda seria.
Daquele dia em diante, ela acordava e se chamava por nomes diferentes. Mas os espelhos foram todos quebrados. Podia transformar-se em alguém da qual não gostasse. Preferia imaginar o contrário – que cada vez que mudava, apesar de diferente, era uma pessoa melhor que antes.

Sobremesa: "Sei que vou morrer, não sei o dia/ levarei saudades da Maria/ sei que vou morrer, não sei a hora/ levarei saudades da Aurora/ quero morrer numa batucada de bamba/ na cadência bonita do samba". (Na cadência do samba)

25 de julho de 2004

A roupa preferida
Raquel Medeiros

Dentro da banheira, com sua blusa preferida, a de listras pretas e amarelas. Maquiada - já meio borrada, é verdade - mas assim ficava até mais dramático. Só o rosto fora da água.
Pensou no seu ex-namorado que a abandonara há 5 horas. Pensou no seu primeiro beijo e na sua primeira vez, ambos terríveis. Pensou nos 4 quilos ganhos nas últimas férias. Agora, estava 6 quilos acima do seu peso. Pensou nas suas aulas de latim. Decidiu a morte.
Pensou na sua mãe, e de como aquela água morna lembrava o ventre. Aquela sensação lhe deixou mais confortável, certa do que iria fazer. Olhou para o seu corpo. A blusa de listras pretas e amarelas. A sua preferida. Pensou que talvez fosse melhor deixá-la para o velório. Saiu da água. Trocou a blusa, colocou a de listras no varal - pra enxugar a tempo - e escreveu um “ps” na carta de despedida, exigindo a blusa listrada no velório. Voltou para a banheira. A água estava fria. Desistiu.

Sobremesa: "I can't face the grazes/I cannot contain this/I can't fake the traces/I can't fake the grazes". (Grazes - Sneaker Pimps)

22 de julho de 2004

Faz de novo! Faz de novo!
Raquel Medeiros

Hélio, anão de nascença
Que a mãe com descrença
À sorte abandonou.

Não se fingiu de rogado
E pensando ser engraçado
Num circo ingressou.

E como quem da vida muito apanha
Trabalha muito; e pouco ganha
Um dia, Hélio cansou.

"Anda Hélio, vê se esquece esse cansaço
E põe teu nariz de palhaço
Porque o respeitável público já chegou".

Hélio entrou no picadeiro como de costume fazia
Mas no meio do espetáculo rasgou a fantasia
E com a corda bamba se enforcou. 

A platéia achou engraçado
No dia seguinte o ingresso vendeu dobrado
Mas Hélio não ressuscitou.

Sobremesa: "Deixa eu brincar de ser feliz/deixa eu pintar o meu nariz". (Todo carnaval tem seu fim - Los Hermanos)

20 de julho de 2004

Verão
Raquel Medeiros
 
Ela bem que tentou fugir dele, mas fazia tanto calor. A temperatura estava alta. E a previsão não era das melhores "o verão mais quente dos últimos tempos". Não era fácil. Principalmente pra ela. Acostumada a andar sempre vestida - de vergonha; de dúvida; de medo.
Encarou-o como jamais o fizera antes. Era inevitável o contato. Ele olhava pra ela com uma expressão de desafio. Mas ela era muito medrosa - fingia que não via - e quase derrete com aquela temperatura alta.
Um dia não teve jeito. "Vai, liga o botão", dizia a si mesma. Criou coragem e ligou. Aquelas hélices... Ela sabia... Colocou na potência máxima, e como desde criança tentava, desta vez conseguiu. Pôs o indicador, depois os outros dedos. Sangue. Sangue por toda a parte.
Depois dos dedos cortados, ela sentiu-se aliviada. Poderia fazer o mínimo de calor dali pra frente - ela o ligaria. Agora já não tinha dedos, já não tinha o que esconder dentro das mãos. E os braços? Esses não entravam no ventilador.
 
Sobremesa: "Tarde sem nuvem/50 graus/talvez por sua ausência/tudo derreta". (Calor - Adriana Calcanhoto) 

17 de julho de 2004

So far, so close
Raquel Medeiros
 
Tão distante do que posso ter
Tão perto – eu quero
Guardo ainda em mim
As rimas dedicadas
As marcas deixadas
Os beijos presenteados
Os desejos revelados.
 
Não sei escrever
Sou incapaz de descrever
A sensação de tê-lo próximo
É como estar no céu
Ou no que imagino que seja.
 
As coisas mais belas estão lá – no céu
O problema é não poder alcançar
Tem-se sempre que olhar para o alto
Mas às vezes a cabeça teima em esconder-se entre os ombros
E as coisas belas vão ficando mais difíceis de tocar.
 
O desejo de ir até elas me faz continuar
Querer, querer, querer
Subir, subir, subir
De escada, de elevador, de foguete
E só serenar quando alcançar. 
 
Sobremesa: "But still they lead me back/ To the long winding road/ You left me waiting here/ A long long time ago/ Don't leave me standing here/ Lead me to your door". (The long and winding road - The Beatles)*
* A sobremesa é a música inteira, mas eu não faria isso com vocês... e com esse pedaço dá pra ter noção do sabor.

16 de julho de 2004

Xeque-mate
Raquel Medeiros
 
Fiz uma pergunta tão simples e parecia que eu tinha feito uma grande jogada de xadrez. Ele parou – acho até que parou de respirar – e ficou olhando para o nada. Pensando... Pensando. Ficou tanto tempo assim que achei que ele estivesse devaneando sobre outras coisas; ou morrido.
Perguntei de novo – só pra ter certeza de que ele estava vivo e ali. Ele me olhou fixamente nos olhos e nada disse. Virou-se e saiu andando. “Como assim?” “É essa a resposta? Ou melhor, vou ficar sem resposta?”. Segurei seu braço e devolvi o olhar, só que com um pouco mais de coragem do que ele quando o fez. “É, eu sou covarde”, ele disse. Fiquei atônita, tonta. Minhas pernas enfraqueceram. Meu coração – tão acelerado até então – quase parou. Ele não sabe, mas naquela hora quem deu o xeque-mate foi ele.
 
Sobremesa: "Try, try, try just a little bit harder/ So I can love, love, love him, I tell myself /Well, I'm gonna try yeah, just a little bit harder/ So I won't lose, lose, lose him to nobody else". (Try (just a little bit harder) - Janis Joplin)

15 de julho de 2004

Cofrinho
Raquel Medeiros

Alice comprou um cofrinho. Um lindo porquinho. Tão lindo, que Alice não colocava dinheiro pra não ter que quebrá-lo depois.
Passaram-se semanas e nem uma moedinha no bichinho. Nem 5 centavos. Só pra fazer um barulhinho. O porquinho tinha até pena da Alice, “pobrezinha, não tem sequer uma moedinha pra me deixar feliz”.
Em seu aniversário, Alice ganhou da avó uma generosa quantia em dinheiro. Ao entrar no seu quarto, para sua surpresa, a passagem das moedas no porquinho não era mais nas costas, e nem tão pequena. O pobre coitado, desesperado, abriu a boca o máximo que pôde, e ficou gritando “põe aqui! Põe aqui!”.

Sobremesa: "Money, it's a crime/Share it fairly but don't take a slice of my pie/Money, so they say/Is the root of all evil today/But if you ask for a raise it's no surprise that they're/giving none away". (Money - Pink Floyd)

14 de julho de 2004

Diga-me qualquer coisa, desde que seja o que eu quero ouvir
Raquel Medeiros

Tudo o que ela disse deu errado.
Até agora não vi a cor do dinheiro
nem a casa em Ibiza
nem o husky
nem as férias em Viena.
O que me intriga mesmo era a certeza
com a qual ela me falava sobre essas coisas
falava como se fosse Deus
ou a mensageira direta dele.
Nem acredito que Ele exista
mas nela eu acreditei.
Tinha os olhos verdes
distendia a pupila cada vez que me olhava
e dava pra ver as falsas verdades em seus olhos.
E eu que só queria um amor
E eu que só queria o amor
não o tive sequer por um instante.
Espero que, ouvindo os meus ais
ele venha e me traga amiúde a paz.
Mas se ele não vier
eu mato aquela cartomante!

Sobremesa: "Vou te contar/os olhos já não podem ver/coisas que só o coração pode entender/fundamental é mesmo o amor/é impossível ser feliz sozinho". (Wave - Tom Jobim)

9 de julho de 2004

Foi você
Raquel Medeiros

Foi você quem me quis assim
Cara pálida
Palavra cálida
Como se houvesse um espelho
Refletindo você em mim.

Foi você quem quis assim
Um amor ardente
De desejo permanente
Como se não houvesse nada
Que livrasse você de mim.

Foi você quem quis fugir assim
Sem beijo de despedida
Sem abraço na partida
Como se houvesse uma vida
Separando você de mim.

Sobremesa: "But I don't know/what I would give of myself/how I would live with myself/if you don't go". (Caramel - Suzanne Vega)

8 de julho de 2004

O mundo é um moinho
Raquel Medeiros

Ela não queria que notassem sua tristeza. Tinha vergonha, sem falar na fama de forte. Resolveu ir à festa mesmo assim. Caprichou na maquiagem e foi.
Chegou lá, distribuiu sorriso pra todo mundo. Até parecia feliz. Dançou, bebeu, beijou. Foi até o banheiro dar uma olhada na aparência, e, para sua surpresa a maquiagem borrou. Não era um borrado qualquer – isso seria comum. Um traço de lápis escorrera dos seus olhos, e escreveu – com todas as letras – “fake” no seu rosto.

Sobremesa: "Preste atenção, querida/de cada amor tu herdarás só o cinismo/quando notares estás à beira do abismo/abismo que cavastes com teus pés". (O mundo é um moinho)

5 de julho de 2004

Senhoras e senhores
Raquel Medeiros

Fui até o centro do picadeiro. Ô coisa deprimente, o tal do circo! Aquelas pessoas olhando pra mim, querendo que eu fizesse algo extraordinário; ou engraçado; ou bizarro. Todos em silêncio. Dava pra ouvir o barulho dos dentes destruindo a pipoca. Não consegui fazer nada. Não queria fazer nada. Fiz birra. Cruzei os braços e sentei ali no meio.
Depois do longo silêncio, vieram vaias, muitas vaias, da platéia. Saí de lá correndo. E se não bastasse, ainda veio um palhaço (desses fantasiados) e disse que eu era sem graça. Ah, pelo menos eu não me escondo atrás de maquiagem.

Sobremesa: "Tristeza não tem fim/felicidade sim". (Felicidade - Tom Jobim)

3 de julho de 2004

5 graus
Raquel Medeiros

Não é só lá fora que o cinza predomina. Aqui dentro também.
Adoro o inverno, esses dias nublados. Isso tudo é muito bom quando se tem algumas frestas de sol na alma. Do contrário, o frio é interno, e não há cobertor ou chocolate quente que dê jeito.

Sobremesa: "Rain down/rain down/come on rain down on me/from a great height/from a great height". (Paranoid android - Radiohead)

2 de julho de 2004

Hoje o cardápio só oferece sobremesa. Pra trazer doçura ao paladar, e suavizar um pouco a vida.

"Tenho 25 anos de sonho e de sangue
E de América do Sul
Por força desse destino
Um tango argentino me vai bem melhor que o blues".
(À palo seco - Belchior)

1 de julho de 2004

Cerração
Raquel Medeiros

Fica aqui e não vai embora
Fica assim e não me censura
Eu sou impulsiva
Não sei o que é razão
Não tenho juízo.
Tudo o que tenho
São esses sentimentos movediços
E essa insônia que já virou um vício
E que se encontra nas minhas veias
E se perde na minha cama
Onde construo a minha teia
Onde sou implacável
Nas coisas que te escrevo
Nos segredos que te revelo
Nos desejos que te exponho
Nas máscaras que fabrico.
Porque todo mundo precisa delas
De vez em quando
Não para os outros
Mas para si mesmo
Para ter coragem de olhar-se no espelho
E encarar as atitudes que toma
Os sucessos; os fracassos
As lágrimas não contidas
As palavras arrependidas
O riso dissimulado.

Sobremesa: "'Cause this life is a farce/I can't breathe through this mask/like a fool/so breathe on, sister, breathe on" (It's a fire - Portishead)