26 de novembro de 2005




















Júlio Cortazar e um de seus gatos.

Rayuela - trecho (capítulo 5)
Júlio Cortázar

Essa vez, e só essa vez, excitado como um matador mítico para quem matar é devolver o touro ao mar e o mar ao céu, maltratou a Maga numa longa noite da qual pouco falariam mais tarde, fez dela Pasífae, dobrou-a e usou-a como a uma adolescente, conheceu-a e exigiu-lhe as servidões da mais triste puta, magnificou-a em constelação, teve-a entre os braços cheirando a sangue, fê-la beber o sêmen que corre pela boca como um desafio ao Logos, chupou-lhe a sombra do ventre e do sexo, erguendo-a depois até o seu rosto, para untá-la de si mesma, numa ótima operação de conhecimento que só o homem pode dar à mulher, exasperou-a com pele e pêlo e baba e queixumes, esvaziou-a até o máximo da sua magnífica força, lançou-a contra um travesseiro e um lençol e sentiu-a chorar de felicidade contra seu rosto, que um novo cigarro devolvia à noite do quarto e do hotel.

Sobremesa: "Nem tudo estava perdido/ que dos dois dependia tentar um encontro legítimo/ agora ela conhecia as regras do jogo/ talvez nos fossem favoráveis dado que não faríamos outra coisa senão nos procurar." (Júlio Cortázar)

19 de novembro de 2005




















Sphere port - MC Escher

Regulamento
Raquel Medeiros

No meu andamento
Passo lento
No rosto, o vento
No corpo, o tempo.

No meu comprimento
Corte e caimento
Fora, passatempo
Dentro, pensamento.

No meu centro
Eterno confrontamento
De um lado, intenso
De outro, isento.

No meu comportamento
Justo dicernimento
Aos amigos, reconhecimento
Aos inimigos, esquecimento.

No meu sentimento
O coração oriento
À dor, esmagamento
Ao amor, comprometimento.

No meu julgamento
Rimas argumento
Acerto, com intento
Erro, sem lamento.

No meu falecimento
Perfeito acabamento
Aos segredos, convento
Aos desejos, cumprimento.

No meu regulamento
Regras invento
Atenuo o envelhecimento
Acentuo o renascimento.

Sobremesa: "Eu vim com pão, azeite e aço/ Me deram vinho, apreço, abraço/ o sal eu mesmo faço." (Millôr Fernandes)

2 de novembro de 2005




















"Para a mesa que vai ser posta,
para você o que você gosta: diariamente."
(Marisa Monte e Nando Reis)


* Outdoor da Calvin Klein. Foto por Steven Klein.

As marcas do amor
Raquel Medeiros

Coca-cola de segunda à sexta. Uma taça de Merlot no sábado à noite, antes do prato principal, naquele restaurante italiano. Mais tarde, uma cama comprada na Tok&Stok, com lençóis de seda para beijos altos e tato apurado. Chet Baker no nosso Phillips. Domingo de manhã, maçãs e morangos comprados num pequeno supermercado perto de casa. À tarde, ver um filme no nosso Sony. Preguiça. Gula. Cobiça. Luxúria.

Um machucado no peito. Merthiolate spray na ferida. Já vem com sopro. Não dói, mas também não sara. Não pára. Não cala. Palavrões retirados de um texto de Millôr, devidamente cuspidos no rosto protegido com Sundown 15 FPS. Protege do sol, mas não protege do incêndio.

Tristeza e decepção afogadas em garrafas de Johnnie Walker Red e um maço do novo Free. Agora free. Agora só. Nenhuma mensagem. Nenhuma chamada não atendida no Siemens MC 60. Portishead ao vivo em Roseland. Tragos entre agudos e graves. Saudade aguda. Tristeza grave. A solidão do gato de um livro de Cortázar. Corta os pulsos com Gillette cega. Esgota-se como um conta-gotas. Não morre. Estanca o sangue com um coagulante da Roche. Estanca a vida, mas não estanca a dor. Adormece com dois comprimidos de Neozine. Acorda depois de três dias, calça um par de Havaianas, porque depois de tanto cinza, fez um dia de sol.

Sobremesa: "Para brincar na gangorra: dois". (Marisa Monte e Nando Reis)