30 de dezembro de 2005



"Luiza e Tomé", por Henri Cartier Bresson


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Sebastian

Através de um código, Luiza e Tomé sabiam exatamente a hora do encontro. Era sempre numa casinha afastada de onde trabalhavam. Era um casinha simples, de poucos quartos. Tão obstinados que eram, alugaram a casa e reformaram. Ninguém sabia. Só Luiza e Tomé. Colocaram uma cama e um som para satisfazer o lado bom da vida. Luiza fez questão de haver uma cozinha funcional. Tomé exigiu uma pequena adega. Na verdade, não se conteram. Pintavam uma parede, compravam um cd. Compravam uma planta, tiravam fotos e penduravam nas paredes. Ali era como a casa de árvore que toda criança sonha em ter. Um lugar secreto, só deles. E era tudo como sempre sonharam. Mas faziam sem perceber. Pintaram a parede do quarto de leitura de verde. Compraram estante, livros, poltrona, luminária. Panelas, garfos, facas, temperos, geladeira, fogão, bebedouro e até quatro lixeiros (o Tomé é desses preocupados com reciclagem). Compraram guarda-roupas, roupas, lençóis, edredons, algemas, lenços e mais lenços e um cabide lindo. Uma mesinha de madeira, jogos, abajus, pufes, televisão e um pequeno dvd. Depois de uns meses compraram um berço e pararam um de frente para o outro. "Onde estamos?", perguntou Luiza. "De vida feita", respondeu calmamente o Tomé. Luiza deu um sorriso maroto e alisou a barriga.

Sobremesa: "Quando passamos um pelo outro/ tu me dás o prazer de teus olhos, do seu rosto, da tua carne/ e eu te retribuo com o prazer do meu peito, das minhas mãos, da minha barba". (Walt Whitman)

26 de dezembro de 2005





















Madonna - Kenneth Andersson

* À mulher mais admirável que eu conheço. Da Paz no nome, e na alma.

Paz
Raquel Medeiros

Sonha. Alimenta. Gera. Cria. Trabalha. Acalenta. Constrói. Cuida. Sente. Pensa. Ri. Chora. Insiste. Enfeita. Encanta. Luta. Vence. Verbos traduzidos por um substantivo único. Feminino e singular. Mãe.

Sobremesa: "Moça, olha só o que eu te escrevi/ é preciso força pra sonhar e perceber que a estrada vai além do que se vê". (Los Hermanos)

15 de dezembro de 2005

Elliot's attraction to all things uncertain
(Joe Sorren)

Classificados
Raquel Medeiros

Compro um ano novo, 2006, com muitas portas e janelas. Com ar quente na nuca e ar frio na rua. Travas elétricas para palavras que não devem ser ditas e tapas que não devem ser dados. Alarme para os inimigos. Air bag para o perigo dos maus pensamentos. Tração nos braços e pernas para sair das situações difíceis. Bancos sem encosto e sem mau-olhado. Cintos de segurança para os dias turbulentos e teto solar para espantar o mofo da alma. Direção variável e chave de ignição codificada para o coração. Pago à vista pra receber em 12 prazerosos meses. Tratar com a proprietária deste vale.

Sobremesa: "Esperando a festa, esperando a sorte, esperando a morte, esperando o Norte/ esperando o dia de esperar ninguém, esperando enfim, nada mais além da esperança aflita, bendita e infinita do apito de um trem". (Chico Buarque)

26 de novembro de 2005




















Júlio Cortazar e um de seus gatos.

Rayuela - trecho (capítulo 5)
Júlio Cortázar

Essa vez, e só essa vez, excitado como um matador mítico para quem matar é devolver o touro ao mar e o mar ao céu, maltratou a Maga numa longa noite da qual pouco falariam mais tarde, fez dela Pasífae, dobrou-a e usou-a como a uma adolescente, conheceu-a e exigiu-lhe as servidões da mais triste puta, magnificou-a em constelação, teve-a entre os braços cheirando a sangue, fê-la beber o sêmen que corre pela boca como um desafio ao Logos, chupou-lhe a sombra do ventre e do sexo, erguendo-a depois até o seu rosto, para untá-la de si mesma, numa ótima operação de conhecimento que só o homem pode dar à mulher, exasperou-a com pele e pêlo e baba e queixumes, esvaziou-a até o máximo da sua magnífica força, lançou-a contra um travesseiro e um lençol e sentiu-a chorar de felicidade contra seu rosto, que um novo cigarro devolvia à noite do quarto e do hotel.

Sobremesa: "Nem tudo estava perdido/ que dos dois dependia tentar um encontro legítimo/ agora ela conhecia as regras do jogo/ talvez nos fossem favoráveis dado que não faríamos outra coisa senão nos procurar." (Júlio Cortázar)

19 de novembro de 2005




















Sphere port - MC Escher

Regulamento
Raquel Medeiros

No meu andamento
Passo lento
No rosto, o vento
No corpo, o tempo.

No meu comprimento
Corte e caimento
Fora, passatempo
Dentro, pensamento.

No meu centro
Eterno confrontamento
De um lado, intenso
De outro, isento.

No meu comportamento
Justo dicernimento
Aos amigos, reconhecimento
Aos inimigos, esquecimento.

No meu sentimento
O coração oriento
À dor, esmagamento
Ao amor, comprometimento.

No meu julgamento
Rimas argumento
Acerto, com intento
Erro, sem lamento.

No meu falecimento
Perfeito acabamento
Aos segredos, convento
Aos desejos, cumprimento.

No meu regulamento
Regras invento
Atenuo o envelhecimento
Acentuo o renascimento.

Sobremesa: "Eu vim com pão, azeite e aço/ Me deram vinho, apreço, abraço/ o sal eu mesmo faço." (Millôr Fernandes)

2 de novembro de 2005




















"Para a mesa que vai ser posta,
para você o que você gosta: diariamente."
(Marisa Monte e Nando Reis)


* Outdoor da Calvin Klein. Foto por Steven Klein.

As marcas do amor
Raquel Medeiros

Coca-cola de segunda à sexta. Uma taça de Merlot no sábado à noite, antes do prato principal, naquele restaurante italiano. Mais tarde, uma cama comprada na Tok&Stok, com lençóis de seda para beijos altos e tato apurado. Chet Baker no nosso Phillips. Domingo de manhã, maçãs e morangos comprados num pequeno supermercado perto de casa. À tarde, ver um filme no nosso Sony. Preguiça. Gula. Cobiça. Luxúria.

Um machucado no peito. Merthiolate spray na ferida. Já vem com sopro. Não dói, mas também não sara. Não pára. Não cala. Palavrões retirados de um texto de Millôr, devidamente cuspidos no rosto protegido com Sundown 15 FPS. Protege do sol, mas não protege do incêndio.

Tristeza e decepção afogadas em garrafas de Johnnie Walker Red e um maço do novo Free. Agora free. Agora só. Nenhuma mensagem. Nenhuma chamada não atendida no Siemens MC 60. Portishead ao vivo em Roseland. Tragos entre agudos e graves. Saudade aguda. Tristeza grave. A solidão do gato de um livro de Cortázar. Corta os pulsos com Gillette cega. Esgota-se como um conta-gotas. Não morre. Estanca o sangue com um coagulante da Roche. Estanca a vida, mas não estanca a dor. Adormece com dois comprimidos de Neozine. Acorda depois de três dias, calça um par de Havaianas, porque depois de tanto cinza, fez um dia de sol.

Sobremesa: "Para brincar na gangorra: dois". (Marisa Monte e Nando Reis)

25 de outubro de 2005














Audrey Tautou e Mathieu Kassovitz em

Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain

Taquicardia
Raquel Medeiros

Se é dia, espero
Se é noite, exaspero.

Pernas que vacilam
Tez que enrubesce
Esse desejo sempre cresce
Nas minhas mãos
Que oscilam.

Se é dia, espero
Se é noite, exaspero.

Que o amor não me cegue
Mas me cerre os olhos
E quando a noite
Pintar o céu de negro esmalte
Que o amor me agarre
E não me solte.

Se é dia, espero
Se é noite, exaspero.

Que a mão que afaga
Me apedreje
Em dias masoquistas
E que despeje em minha pele
Todas as suas
Vorazes carícias.

Se é dia, espero
Se é noite, exaspero.

Que não seja prisão
Que não seja missão
Que não seja obrigação
Que seja sina
Que seja rima
No íntimo coração

Se é dia, espero
Se é noite exaspero.

Que seja viril
Que seja charmoso
Como música no vinil
E que por hora temeroso
Jamais seja vil.

Se é dia, espero
Se é noite, exaspero.

Que me acalente
Que me tente
Sereno na dor
Ardência,
Me livre de qualquer amor
Que não seja febril.

Se é dia, espero
Se é noite, exaspero.

Que nem sempre seja alinhado
Que haja aqui e ali
Uma bifurcação na estrada
E que seja o sujeito nunca indeterminado
Da minha ação mais desejada.

Se é dia, espero
Se é noite exaspero.

Sobremesa: "We were talking.../ about the space between us all/ and the people/ who hide themselves behind a wall of illusion/ never glimpse the truth/ when it's far too late... when they pass away.../ We were talking about the love/ we all could share/ when we find it.../ to try our best to hold it there (with our love)/ with our love we could save the world/ if they only knew..." (The Beatles)

16 de setembro de 2005























"Para um substantivo pobre
Só um predicativo nobre
Aufere graça ou ilusão."
(Julliana Veloso)


Looser
(Raquel Medeiros)

Quem perde a asa
E ainda quer ser passarinho
Não merece um ninho
No quintal da minha casa.

Quem perde o respeito
E ainda quer ser amado
Não merece afago
Nem lugar no meu peito.

Quem perde a passagem
E ainda quer ser visita
Não merece a vista
No percurso da viagem.

Quem perde a esperança
E ainda quer ser lembrado
Não merece ser retrato
Na minha lembrança.

Quem perde o trato
E ainda quer ser enfeitado
Não merece cuidado
Nem delicadeza do meu tato.

Quem perde a razão
E ainda quer ser alcançado
Não merece ser amparado
No momento do furacão.

Quem perde a qualidade
E ainda quer aquisição
Não merece renovação
No prazo de validade.

Quem perde o essencial
E ainda quer ser o foco
Não merece lugar no bloco
Do meu carnaval.

Quem perde a garantia
E ainda quer ser sina
Não merece doçura da minha rima
Só merece o desprezo da minha poesia.

Sobremesa: "Tem sempre o dia em que a casa cai/ pois vai curtir seu deserto vai/ mas deixa a lâmpada acesa/ se algum dia a tristeza quiser entrar/ e uma bebida por perto/ porque você pode estar certo que vai chorar." (Vinicius de Moraes e Toquinho)

6 de setembro de 2005













"I'm so tired of playing
playing with this bow and arrow" (Portishead)

* Na foto, Beth Gibbons.

Naquele bar
Raquel Medeiros

Encontraria o amor naquele bar? Putas disputavam com travestis a atenção dos poucos homens que estavam lá. Desses poucos alguns não viam água e sabão há pelo menos três dias. Mas o que importava? Ela não queria casamento, nem filhos, nem casa hipotecada. Queria amor. E amor não precisa de cerimônias.
Era um bar deprimente. Luz pouca, balcão sujo, e uma velha máquina no canto tocando alguma coisa do Roberto. Uma música antiga, e pra ela, desconhecida.
Ela não era lá de se jogar fora. Um vestido vermelho, sedutor até certo ponto. Já gasto, já largo para o pouco corpo. Pernas finas cambaleavam num salto. O movimento desajeitado lhe emprestava algum charme, parecia elegante caminhar como se estivesse numa corda bamba.

Num canto do bar, um senhor calvo, magro. Boa aparência, barba feita. Bebia tequila e fumava um cigarro de menta. Era o que se podia chamar de uma pessoa sem rótulos. Não que isso fosse essencialmente bom. É como um vinho que você não sabe a procedência, e conseqüentemente não sabe se o tempo o fez ficar mais saboroso ou com gosto de vinagre.
Depois de algumas doses, ele chorava e falava de ter tido poucas mulheres, que lhe dedicavam palavras indecentes à noite e pela manhã sua carteira tinha algumas notas a menos, alguns objetos a menos no seu apartamento já tão vazio. Seu peito com um vazio a mais. Ele não queria casamento, nem filhos, nem cheiro de lavanda nos lençóis.Queria amor. E amor não precisa de grandes provas.

“Tem uns quartos ali atrás. Bem baratos e razoavelmente limpos”. Ela foi.Uma cama.Um ventilador barulhento. Uma luz amarelada. Tiraram os sapatos e deitaram. Um ao lado do outro. Ela olhava para o ventilador e pensava quantas voltas ainda teria que dar até que algo mudasse. Em seguida, deu um longo suspiro. Estava cansada das tantas noites que terminavam num quarto atrás de um bar. Mas ali, ao lado do homem sem rótulos, ela se sentia bem. Havia alguma mágica entre eles. Não eram duas pessoas que amenizavam a solidão um do outro. Era uma solidão conjunta, ainda assim grande, mas parecia melhor do que estar completamente só. Talvez fosse o amor. E amor precisa de cumplicidade.

Sobremesa: "Nobody loves me/ it's true/ not like you do" (Portishead)

1 de setembro de 2005














The second life of Samuel Tyne - Matt Murphy

De um gole só
Raquel Medeiros

Ele levanta e vai ao bar
Lá discute o futebol
A crise instalada
A reforma no banheiro
Tantas vezes adiada.

Ele trabalha e vai ao bar
Lá bebe a cachaça
Mas nada é de graça
Pelo menos o dinheiro da pinga
Ele precisa ganhar.

Quando volta do bar
Equilibrista nato
Eu já estou tão farta
Que quase enfarto
Só de vê-lo chegar.

Pede que lhe sirva o jantar
Eu cá nas minhas preces
“O que fiz pra merecer essa vida?”
E ponho mais um pouco de comida
No prato que depois vou lavar.

Sobremesa: “Quando a noite enfim lhe cansa/ você vem feito criança/ pra chorar o meu perdão/ qual o quê/ diz pra eu não ficar sentida/ diz que vai mudar de vida/ pra agradar meu coração/ E ao lhe ver assim cansado/ maltrapilho emaltratado/ como vou me aborrecer/ qual o quê/ logo vou esquentar seu prato/dou um beijo em seu retrato/ e abro os meus braços pra você”. (Chico Buarque)

27 de agosto de 2005















Ilustração de Mark Riden

Out of season
Raquel Medeiros

“And many rains turn to rivers
Winter’s here
And there ain’t nothing gonna change”

Doses cavalares de coragem pra levantar da cama mais trinta e cinco minutos de resistência e a dor de mais um dia começa a diminuir. Um pé na frente do outro pra qualquer lugar, que até para o precipício é preciso dar o primeiro passo.
Nas ruas, as pessoas estão sempre indo, vindo, chegando, saindo, esperando. Espera passar a chuva pra sair de casa. Espera o ônibus. Espera que a fome chegue ao meio-dia, e que o cansaço vá embora às duas da tarde. Espera que à noite haja algo melhor do que essa espera, algo que compense esse eterno ir e vir. Pode ser amor, ilusão, embriaguez, análise.
À noite, as ruas se enchem de olhares aflitos, de olhos famintos, de cigarros solitários, de corações remendados. Todas essas pessoas com um vazio que tem a audácia de querer ser preenchido. Um vazio personificado como uma divindade.

“Everybody knows this time
shadows are drifting in silence
where lost can’t be found
everybody knows this time.”

É frio que fogueira nenhuma aquece. É insônia que remédio nenhum resolve. Essa velha saudade que vem desde o dia que se descobre que veio do ventre da mãe e que não pode mais voltar pra lá. Esse choro. Essa água de lágrima onde peixe nenhum consegue nadar, pois peixes não nadam em cachoeiras.

Sobremesa: "Que seja agosto/ ao meu mais fiel gosto/ sem receio de ser exposto/ posto e deposto/ e mesmo no desgosto/ seja sempre ao meu fiel gosto." (Raquel Medeiros)

* As músicas são, respectivamente, "Funny Time Of Year" e "Sand River", da Beth Gibbons.

18 de agosto de 2005

Michelle Pfeiffer e John Malkovich no filme
Ligações Perigosas.

It’s a fire
Raquel Medeiros

Passou a língua na nuca dele como se estivesse lambendo uma gota de sorvete que escorreu pela casquinha. Delicioso aquele pescoço. Visão do paraíso com o ardor do inferno. Quarenta graus na sombra.
Música no vinil. Os estalos do disco encobriam os beijos altos. Festim de palavras indecentes, ditas em tons agudos e graves. Melodia ascendente de gemidos e sussurros.
Falta de senso. Incenso. Incêndio.
Ela derretia com o toque dele como uma pintura de Dali. Goya. Glória.
Líquida e salgada, provocava ainda mais sede. E ele a bebia como um vinho de boa procedência, guardado na melhor adega, para a ocasião perfeita.
Lutam como se o prazer do outro fosse um território a ser explorado à exaustão. Investigação com indicações óbvias. Sêmen. Suor. Saliva. Sorriso.
Embriagados. Extasiados, se aninham nos braços um do outro. Descansam. Olhos nos olhos. Insones. Insanos. O desejo não cessa. Recomeça a música. Provocaram rimas. Gozaram versos. E quando o sol já aplicava tons claros no esmalte preto da noite, eles tinham incontáveis poesias desvairadas. Incansáveis odes proclamadas. Inspiração e ansiedade na espera de mais uma madrugada.

Sobremesa: "Eu faço samba e amor até mais tarde/ e tenho muito sono de manhã." (Chico Buarque)

28 de julho de 2005


"É que eu já sei de cor qual o quê dos quais e poréns,
dos afins, pense bem ou não pense assim." (Rodrigo Amarante)

Música pop sem refrão
Raquel Medeiros

Sapatos apertados para dança
Calos e estalos em aliança
Solo em desesperança
Entrar no ritmo às vezes cansa

Faca na garganta
Sangue que nunca estanca
Palidez que avança
Morrer às vezes cansa

Minha obra completa
É uma poesia incerta
Na trajetória nem sempre reta
A postura nem sempre é ereta.

Mas vamos aos fatos
Esse texto fraco
Só reflete
A minha falta de tato
Pra jogar fora
A pedra no sapato.

Sobremesa: "Life is what happens to you while you're busy making other plans." (John Lennon)

18 de julho de 2005

* Não consegui postar imagens. nem textos meus. Vai um trecho de Rayuela, de Júlio Cortázar.

Por que nos enganaríamos um ao outro? Não é possível viver ao lado de um saltimbanco das sombras, de um domador de cupins. Não é possível aceitar um cara que passa o dia desenhando com os anéis furta-cores feitos pelo óleo nas águas do Sena. Eu, com os meus cadeados e as minhas chaves de ar, eu, que escrevo com fumaça. Vou lhe poupar a resposta, pois vejo-a chegar: não há substâncias mais letais do que as que se metem por qualquer lugar, que se respiram sem saber, nas palavras, no amor ou na amizade. Já é tempo de me deixarem sozinho, só e sozinho.

Sobremesa: "Já conheço os passos dessa estrada/ sei que não vai dar em nada." (Chico Buarque)

8 de julho de 2005


É preciso mudar a água da banheira
pra não ver só sujeira na hora de mergulhar.

Mudar é preciso
Raquel Medeiros

É preciso mudar
As coisas na sala
O choro da alma
No tom da fala.

É preciso mudar
O medo do risco
E do cisco
No olho do vício.

É preciso mudar
A cara sem cor
A pancada da dor
Na queda do amor.

É preciso mudar
A apatia insistente
A melancolia latente
Da poesia insuficiente.

É preciso mudar
O enredo
De ver-se o mesmo
No esforço a esmo.

É preciso mudar
A qualidade do olhar
E a vontade de sonhar
No ato de se dar.

É preciso mudar
O volume da voz
E a força dos nós
Na hora de ser “nós”.

Sobremesa: "Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:/ as ruas são ruas com gente e automóveis/ não há sereias a gritar pavores irreprimíveis/ e a miséria é a mesma miséria que já havia.../ e se tudo é igual aos dias antigos, apesar da Europa à nossa volta, exangüe e mártir/ eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente/ sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos/ sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta/ uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada..." (Adolfo Casais Monteiro)

6 de julho de 2005


"Disfarça e chora". (Cartola)

Lista De Preferências
Bertold Brecht

Alegrias, as desmedidas.
Dores, as não curtidas.

Casos, os inconcebíveis.
Conselhos, os inexequíveis.

Meninas, as veras.
Mulheres, insinceras.

Orgasmos, os múltiplos.
Ódios, os mútuos.

Domicílios, os passageiros.
Adeuses, os bem ligeiros.

Artes, as não rentáveis.
Professores, os enterráveis.

Prazeres, os transparentes.
Projetos, os contingentes.

Inimigos, os delicados.
Amigos, os estouvados.

Cores, o rubro.
Meses, outubro.

Elementos, os fogos.
Divindades, o logos.

Vidas, as espontâneas.
Mortes, as instantâneas.

Sobremesa: "Disfarça e chora/ todo pranto tem hora/ aproveita a voz do lamento/ que já vem a aurora." (Cartola)

27 de junho de 2005


A factory of cunning - Matt Murphy

Apoiando a língua nos dentes
Raquel Medeiros

Mãos atadas e olhos cegos
Não nego – ardo só de pensar.
As unhas que arranham a pele
A mordida que marca a carne
Que essa dor nunca me falte
E que o beijo sele mas nunca cale.
Impropérios, indecência
Mistério, imprudência
O carrasco do desejo
Nunca pede licença
Pra me executar.
Feliz condenada
Nem sempre comportada
Quando bem acompanhada.
Intensa devassidão
Ilimitada vastidão
Dor e luxúria
Variedade e fartura
Não peço a boca
Não meço a força
Onde a razão não tem espaço
E esse texto, um ínfimo pedaço
Da minha loucura.

Sobremesa: ... "E tente me expelir/ e ao me sentir ausente/ me busque novamente." (Vinicius de Moraes)

23 de junho de 2005


O bêbado, a equilibrista e seus filhotes.

O Bêbado e A Equilibrista
Na voz de Elis Regina

Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos
A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel
e nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas, que sufoco louco
O bêbado com chapéu coco fazia irreverências mil
Prá noite do Brasil, meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu num rabo de foguete
Chora a nossa pátria mãe gentil
Choram marias e clarisses no solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente
a esperança dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar, a esperança equilibrista
sabe que o show de todo artista, tem que continuar.

Sobremesa: "Sei, que o vento que entortou a flor/ passou também por nosso lar/ e foi você quem desviou/ com golpes de pincel." (Los Hermanos)

14 de junho de 2005


"'Cause I've been changing my mind" (The Cardigans)

Sintonia
Raquel Medeiros

91.5 mhz
Cícero chorava ao volante. “Já te dei meu corpo/ minha alegria/ já te dei meu sangue quando fervia”. A voz de Chico no rádio traduzia muito dele. A gota d’água que ouvia no carro, rolava sem precedentes pelo rosto de Cícero. Fim de relacionamento é sempre muito doloroso. No carro, alguns de seus pertences. No banco do lado, ao contrário de outros tempos, não estava ela. Só poucos livros. Os outros buscaria depois. Talvez.

104.3 mhz
“Hi/ how are you?/ I'm pretty fine”. Muda a estação. Essa não combina. Nunca foi muito adepto ao verão. Sol latente e toda a alegria dos veraneios na casa de amigos. The Cardigans lembrava o blah blah blah da estação de pouca roupa e muita irreverência. As caminhadas no fim de tarde. As havaianas sempre com um pouco de areia, eram banhadas no mar. E sujas de areia novamente. O relacionamento deles também era assim. A areia arranhava. Vinha uma onda de esperança, lavava a sujeira que voltava pouco depois.

87.5 mhz
O nariz já entupido sinalizava que o choro deveria cessar. Já não respirava tão bem. “Se eu ando assim tão triste/ tão cheio de langor/ é porque nada existe/ para mim sem meu amor.”
O Vinícius e sua habilidade em traduzir as pessoas. Só faltou a dedicatória:
- Essa música vai para o Cícero, que anda por aí como quem perdeu a cor. Carrega a mudança, mas esqueceu a esperança nas mãos do velho amor.

87.5 mhz
Pára. Põe gasolina no carro. Isso de viver, de amar, um dia precisa dar certo. Gira a chave. Coloca a primeira marcha. Sai. Velocidade pouca, que o recomeço é sempre mais lento. E no rádio, o Chico repete “Amanhã vai ser outro dia”.

Sobremesa: "O meu amor/ o meu amor, Maria/ é como um fio telegráfico da estrada/ aonde vêm pousar as andorinhas.../ (...)/ No entanto, Maria/ o meu amor é sempre o mesmo/ as andorinhas é que mudam." (Mário Quintana)

9 de junho de 2005


"Corre e diz a ela que eu entrego os pontos." (Chico Buarque)

*Na foto, Bruno Medina.
*Segue um texto velho que caiu da mudança.

No doce e pretenso desejo de sorver seus lábios
Raquel Medeiros

...ele sente sua presença. Ela se parece perfeitamente com a descrição feita nos jogos artificiais de uma nova tecnologia. Num segundo, os detalhes emergem daquela pálida e minúscula face que ali, a seus olhos, se desnuda. Músculo tenso em clara pele enrubesce. Ela está envolta em conversas e se mostra. Um torso branco de resplendor ímpar. À mostra um pescoço delgado e tenro delineia costas finas de nuanças impecáveis, findando em abstratas formas de ancas talhadas à perfeição.
Majestosa era aquela visão que o enchia de sudorese, afasia e mudez. O objeto de sua ânsia repousa num banco gélido da praça a eles tão afeita.
No Saara que os separava, ardia o sôfrego coração de homem feito – mascarado de imberbe – que, despojado dos desfarces, escondia-se do facho de luz emanado.

Rufam-se tambores – será que o coração dele anda no mesmo compasso? Ilegível aspecto de poesia mal feita, uma carta natimorta.

Empalidece. Seu rosto se confunde com os ladrilhos. Renuncia às idéias de se fazer presente e a ela se apresentar. Agora está só como nunca esteve e entreabre a porta da memória analisando amores que não vingaram. Que permanecem oclusos e emudecidos.
Ele ri. Ri de si mesmo. É um fingidor. Olhando para o lado de fora da sua sala, concebe a noção do sagrado e do profano naquela a quem ama. Rir-se, antes de tudo, da situação que se encontra, do medo generalizado de se mostrar – de ser quem o é.

O que os separava era uma tela. Na espinha dorsal da memória, ele não pudera dizer quase nada. Conservava a impressão de um dia dizer que já não mais se pertence.

A vontade que tinha de possuir, de ouvir seus gemidos, perpassava feito um turbilhão de protuberâncias e miasma desfarçados – crus – eminentes. Pornográficos. Humano. Ele a imaginava despida, em sua casa, desabotoando a saia, revelando o brilho voluptoso dos quadris.
Após o banho, a leva ainda molhada à cama, para ser enxuta num ventilador barulhento; ofuscação dos beijos altos à altura das coxas. Ergue-se o entumecido ventre; e a Vênus, do seu monte, o espia sequiosa. Põe os lábios no umbigo e a percorre sem restrições. Entremeia as pernas e sente a força calculada que imprime à cabeça. Diz-lhe impropérios, enquanto imprime sua marca, com os dentes, em cada mamilo dilatado. Suor, fluídos, esperma perfumam o ambiente, já impregnado de uma áurea mística, com um cheiro forte de um incenso.

As mãos dele são suaves – próprias para contornar seu corpo. E não escapa nada do alcance deste fauno propenso à bestialidade sem par, às carícias despudoradas e à exaustão dos prazeres da carne. E cometem-se todos os barbarismos, no ápice da paixão.
Ele a possui. Ela o retém. À noite, travam-se batalhas e o palco não é mais que o espaço exíguo do quarto. Varam a madrugada e extenuados sorriem, e dormem. Já é tarde e a hora é de despertar, diz ele. Resta-lhe, antes de mais nada, amá-la até o fim. A ela, reserva-se o segredo de ser enigmática, mesmo no gozo.

Sobremesa: "Há de fazer do corpo uma morada/ onde enclausure-se a mulher amada/ postar-se de fora como espada/ para viver um grande amor." (Vinicius de Moraes)

8 de junho de 2005


"Mandei a frase sonhar, e ela se foi num labirinto."
(Paulo Leminski)

Às palmas e às vaias
Raquel Medeiros

A maquiagem que não esconde.
Alguns vão entender cada linha. Outros não vão entender nada. Desses que não vão entender, é possível encontrar os que vão sugerir significados; outros não se darão esse trabalho. Passarão a página e que venha outro texto mais digerível.
Não há desejo aqui em ser a saliva que ajuda a digestão, muito menos a pedra no caminho dos rins. Aqui sou a palavra escrita. Por vezes cortada, noutras cortante. Há a falta de cuidado e por hora, algumas combinações que dão certo.

O picadeiro que não significa espetáculo.
Por opção, e por uma vontade ou doença incurável de não conseguir parar de escrever. A platéia é quem decide se aplaude ou se torce para que o leão fuja no meio do espetáculo. Se se encanta com o coelho que sai da cartola, ou contrata alguém pra cortar a corda bamba. Sem rede de segurança.

A ausência da lona que não dispensa a platéia.
Aqui não há intencão de ferir nem de curar. Sou alguns dos verbos e poucos adjetivos que residem neste vale. Admito a opção minha. Aceito a opinião alheia.
Mas por favor, quando eu tirar a maquiagem e estiver tentando – forçadamente – dormir, façam silêncio, pois já basta o pensamento me ensurdecendo. E não puxem o lençol. Faz muito frio aqui.

Sobremesa: "Que o leão nunca esteja enjaulado/ para que não haja a fuga/ e o público não saia afobado/ antes do fim/ que a alegria creditada ao palhaço/ ocupe o lugar do cansaço/ cansaço que não desprende de mim." (Raquel Medeiros)

6 de junho de 2005


Summer reading - Yuko Shimizu

Linhas
Raquel Medeiros

Linhas horizontais
Sinal de morte para os corações
Base onde pousam as palavras
Horizonte para os vagões.

Linhas verticais
Sinal de morte para os enforcados
Limite para as palavras
Alívio para os dias ensolarados.

No cruzamento
Eu brinco de jogo da velha
E cubro o teto de telha
Com a rapidez do vento.

E sem tormento
Espero a última interseção
Aquela onde repousará a minha mão
À cruz do meu pensamento.

Sobremesa: "Coisa dolorosa feita de barro e poeira/ o homem no seu quarto/ de noite/ pelejando pra escrever no papel/ com lápis/ nó e tropeço/ a dor do seu peito." (Adélia Prado)

2 de junho de 2005


Portrait of the devil & his fingers - Joe Sorren

Desculpem a ausência de textos meus. Mas é que o voyeurismo é tão demoníaco. =)

* Carta de Clarice Lispector a Fernando Sabino

Falta demônio nessa cidade
Clarice Lispector

Falta demônio em toda Suíça
Falta demônio em muitos lugares
Não falta no Brasil, e talvez seja esta a explicação para o encantamento que o país provoca em estrangeiros e nativos: é o feitiço da irreverência

Os Beatles tinham um demônio parcimonioso quando cantavam “she loves you ye ye ye” tornando-se mais famosos que Jesus Cristo. Só deixaram o demônio tomar conta em discos como “Sgt. Pepper’s”, “Álbum Branco” e “Abbey Road”, numa época em que Mick Jagger julgava-se o único representante de Lúcifer na terra. Há demônio no rock, em todas as bandas.

Há demônio no vinho, falta nos coquetéis
Há demônio no jeans, falta no linho
Há demônio nas fotos em preto e branco

Há demônio no cinema, não há na televisão
Há demônio em livros, não há em revistas

Há demônio em Picasso, Almodóvar, Wagner, Janis Joplin
Há demônio na chuva mais do que no sol
Há demônio no humor e na ironia, nenhum demônio no pastelão

Não há demônio em bichos e crianças
Espera aí! Volto atrás sobre as crianças
Em algumas há, mas somente nas muito especiais, as outras pensam que são espertas, mas são apenas mal-educadas

Na poesia há sempre demônio, na boa poesia!
Na poesia marginal
Na poesia de amor
Paixão é quando o demônio está nu
Sexo com quem ama é muito mais satânico, não precisa ser um amor pra sempre, pode ser um amor de repente, qualquer amor inferniza

Coca-cola tem mais demônio que Guaraná
A inteligência tem mais demônios que a simpatia
A vida tem mais demônio que a morte
Filosofia, psicanálise, beijo, aventura, silêncio
Um minuto de silêncio

O pensamento é o demo

O oriente tem
Manhattan tem
Berna não tem, como tudo que é neutro.

Sobremesa: "Há um estado de felicidade/ de não querer pensar nos momentos tristes/ que vão chegar/ é a influência do tempo/ assim como a felicidade/ o inverno chegou fingindo que vai ficar." (Raquel Medeiros)

30 de maio de 2005


"No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar." (Mário Quintana)

Terminal de passageiros
Fernando Bonassi

Eu tenho tanta saudade, mas tanta saudade de você, que poderia agarrar qualquer uma dessas perfumadas que me vão à frente em escadas rolantes. Roupas novíssimas pra despedidas. Encontros festivos. Passagens puídas de excitação por qualquer lugar diferente. Desaforos levados e trazidos a essa terra roxa e de fuso muito específico. Enquanto você estivesse aí viajando, alta demais pra mim, eu casaria com todas elas. Sem que me soubessem, daria a cada uma o seu carinho; sentiria em cada mordida o sabor de sua carne crua. Eu as sustentaria nos braços e nos bolsos; as amaria pra sempre e, quando você chegasse, fugiria de tudo. Me divorciaria do que poderia ser. Deixaria filhos pequenos, patrimônio hipotecado e alguma lembrança triste.

Sobremesa: "Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto/ esse eterno levantar-se depois de cada queda/ essa busca de equilíbrio no fio da navalha/ essa terrível coragem diante do grande medo/ e esse medo infantil de ter pequenas coragens." (Vinicius de Moraes)

23 de maio de 2005


In her silent way - Joe Sorren

Súplica da alma vazia
Raquel Medeiros

O corpo num silêncio de igreja vazia
O coração, o próprio Cristo-morto
E os bancos onde já sentaram
Homens de coração bom e de coração torto
São os braços que não reagem à apatia
Por força da dor
Que rejeita à razão o segredo da confissão.

Mas sim, há uma redenção!
No olhar, ainda vê-se a beleza dos vitrais
E aquela chama que sinaliza a presença
Mesmo na ausência
Consegue ver beleza nos ais.

Eu suplico
Aquele santo de olhar perdido
Não quero Pai-Nossos como castigo
Para ter o perdão
Quero é que enxergues o quanto estou aflito
E já que és perito
Dá-me logo a salvação!

Sobremesa: "Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir/ pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir/ pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair/ Deus lhe pague." (Chico Buarque)

20 de maio de 2005


Bells whistles - Yuko Shimizu

Embriaga-te
Charles Baudelaire

Deve- se estar sempre bêbado.
É a única questão.
A fim de não se sentir o fardo horrível do tempo,
que parte tuas espáduas e te dobra sobre a terra.
É preciso te embriagares sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude?
A teu gosto, mas embriaga-te.
E se alguma vez sobre os degraus de um palácio,
sobre a verde relva de uma vala,
na sombria solidão de teu quarto,
tu te encontrares com a embriaguez já minorada ou finda,
peça ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio,
a tudo aquilo que gira, a tudo aquilo que voa,
a tudo aquilo que canta, a tudo aquilo que fala, a tudo aquilo que geme.
Pergunte que horas são.
E o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio, te responderão.
É hora de se embriagar !!!
Para não ser como os escravos martirizados pelo tempo, embriaga-te.
Embriaga-te sem cessar.
De vinho, de poesia ou de virtude.
A teu gosto.

Sobremesa: "De fato, o ódio é um licor precioso/ um veneno mais caro que os dos Borgia/ pois é feito de nosso sangue/ nossa saúde/ nosso sono/ e de dois terços de nosso amor!/ devemos ser avaros com ele!" (Conselho aos jovens literatos - Charles Baudelaire)

18 de maio de 2005


"Desconfia dos que não fumam.
O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar."
(Mário Quintana)

* Na foto, Rodrigo Amarante.
* É que a música que vou postar bem que podia ter sido composta por ele. Adoraria que ele a cantasse. Não deve ser à toa que eles gostam do Cake.

Where Would I Be?
Cake

I’ve been waiting for so long
I’ve been hoping your love’s not gone
Houses are sliding in the mud
Rivers are raging in your blood

Where would I be wihout your love?
Where would I be without your arms around me?

You were to be the only one
If I knew you I would not run
You have been cloudy, distant, dark
I’m thinking of noah and the ark

Where would I be without your love?
Where would I be without your arms around me?

Sobremesa: "Quem é mais sentimental que eu?!/ eu disse e nem assim se pôde evitar." (Rodrigo Amarante)

17 de maio de 2005


Monkey photographer - Nicholas Gurewitch

Como adestrar seres humanos
Raquel Medeiros

Feliciano era um belo canário. Vivia com a mulher, mas não tinham filhotes.
Um dia, Feliciano resolveu criar seres humanos. Só pra passar o tempo mesmo.
Construiu no quintal uma bela sala com tudo que os humanos precisariam pra viver – um sofá grande e confortável, tv a cabo, uma geladeira repleta de comida congelada, um forno microondas e um banheiro.
Eram cinco pessoas. Não havia muita discussão, a não ser quando o assunto era a posse do controle remoto.
A mulher de Feliciano sentia uma certa pena em deixar aquelas criaturas ali presas. E certo dia tentou convenver o marido a soltá-los. Mas ele argumentava, dizia que eles não saberiam lidar com o mundo lá fora, se virar sozinhos. Ela, em contrapartida, dizia que o lugar deles era no mundo, conhecendo lugares e outros seres humanos, criando e melhorando as coisas lá fora.
Feliciano foi convencido pela esposa. Deixou a porta da sala aberta, e para sua surpresa, ninguém saiu. Estavam todos comprimidos no sofá, olhos atentos ao último capítulo da novela.

Sobremesa: "E agora, José?" (Carlos Drummond de Andrade)

16 de maio de 2005


"Rain down/ rain down/ come on, rain down on me". (Radiohead)

Listen, the rain is falling
Raquel Medeiros

Esse estágio de auto-conhecimento é sempre muito complicado. Doloroso. Às vezes falta esperança de que isso realmente passe. Porque essa história de “essas coisas ruins que estão acontecendo com você vão te fazer crescer, vão te fazer bem” de vez em quando soa muito como conversa de perdedor. E eu tenho perdido muito. O sonho e o sono. Tenho 2 centímetros de olheiras e tenho sido implacável com os outros e ainda mais, comigo mesma.
Dizem que a tristeza é companheira dos bons escritores, que com ela o tiro é certeiro no coração dos outros. Concordo com os outros. Discordo comigo. Primeiro porque me falta o talento de ver a tristeza como inspiração e não como carrasco. Segundo porque trocaria essa tristeza que “escreve belos textos” por felicidade.
Hoje quero a felicidade medíocre de comprar pão no domingo, na padaria da esquina. Se é que alguém consegue ser realmente feliz no domingo...

Sobremesa: "Essas tentativas de inverno/ melhoram o humor/ o que mata é esse gosto de guarda-chuva que não sai da boca/ é esse gosto de 'auto-desamor'." (Raquel Medeiros)

12 de maio de 2005


"Para que apaguem-se bruscos as marcas do meu sofrer" (Ana Cristina Cesar)

Do it yourself
Raquel Medeiros

Deitada, alma e olhar tristes. Nicole sentia-se incompetente. Nem morrer conseguia.
Um dia comprou um desses manuais para suicidas. Das opções oferecidas as únicas que lhe atraiam era cortar os pulsos, e tomar uma quantidade imensurável de remédios.

Um domingo qualquer.
Nicole decidiu que cortaria os pulsos. Tão dramático todo aquele sangue sujando o banheiro. Era clichê, ela também achava. Mas estaria morta, o que importaria depois?
Pegou a gilete, olhou o manual pra ter certeza de que faria o corte da maneira certa, mas olhou para os seus pulsos e parecia que as veias haviam fugido. A pele pálida e fria que até parecia morta. Todo o sangue passava longe dali. Perdeu a vontade. Desistiu.

Um outro domingo qualquer.
Nicole resolveu que dessa vez seria com remédios. Não falharia. Nada de pulsos pálidos. Não precisaria de sangue. Achava que esse tipo de suicídio tinha o seu glamour. O corpo caído com o melhor vestido. Os vidros de remédios vazios, um deles solto da mão, num braço esticado. Morto.
Foi até o banheiro. Não havia criatividade na escolha do lugar, é verdade. Mas e daí? Há alguma originalidade em se morrer dormindo? E mesmo assim tanta gente não deseja morrer assim?
Olhou-se no espelho e achou aquele rosto pouco familiar. Parecia outra pessoa. Não era a Nicole de antes. Parecia desfigurada. Desistiu. Suicídio tudo bem, mas daí a virar assassina era outra história. Passou o dia vendo fotos antigas, tentando reconhecer aquela que vira no espelho.

Deitada, alma e olhar tristes. Nicole não sabia. Mas estes já eram sinais de morte.

Sobremesa: "Quando eu morrer/ anjos meus/ fazei-me desaparecer/ sumir/ evaporar/ desta terra louca/ (...)/ para que eu não fique exposto/ em algum necrotério branco/ para que não me cortem o ventre/ com propósitos autopsianos." (Ana Cristina Cesar)

5 de maio de 2005


ssshhhhhh...

Agora falando sério
Preferia não falar
Nada que distraísse
O sono difícil
Como acalanto
Eu quero fazer silêncio
Um silêncio tão doente
Do vizinho reclamar.

(Chico Buarque)

Sobremesa: ssshhhhhh...

3 de maio de 2005


I can't take my eyes off of you...

Rascunho de carta. Rascunho de vida
Raquel Medeiros

Sebastian,

Essa é mais uma carta que te escrevo. Já foram tantas... todas sem resposta.
Faz frio aqui. Gela o seio e o anseio. Não é falta de ter alguém. É a sua falta. O jeito com o qual se despedia e subia na motocicleta. Colocava o capacete bem devagar e soltava um sorriso safado. Eu adorava isso... Adorava o demônio que existe em você – me tentava, me desorientava...
O cigarro acabou. O café tá amargo. A vitrola quebrou. Tudo desandou depois que você se foi. Eu desaprendi a cuidar de mim. Eu desaprendi a olhar pra mim. No espelho só vejo as marcas que você deixou no meu corpo, nos meus olhos, na minha alma.
Era pra ser pra sempre.
E eu, que sempre fui amante dos verbos, tive que me acostumar a ser mais substantivo – saudade, solidão, tristeza.
Caso você leia esta carta, saiba que estou mudando. E se você voltar, procura um quarto verde. E se eu não estiver, pode ficar à vontade. E aqui registro a vontade de te ver voltar.

Com saudades,
Claire.

Sobremesa: "So if it's true/ that love will never die/ then why do the lovers work so hard/ to stay alive?" (The Cardigans)

2 de maio de 2005


Saudades das cores de Almodóvar...

À palo seco
Belchior

Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo eu me desesperava
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 76
Eu ando um pouco descontente
Desesperadamente eu canto em português.

Tenho 25 anos de sonho e de sangue
E de América do Sul
Mas por força do meu destino
Um tango argentino
Me cai bem melhor que o blues
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 76
Eu quero é que esse canto torto feito faca
Corte a carne de vocês.

Sobremesa: "Se alguém por mim perguntar/ diga que eu só vou voltar/ quando me encontrar." (Cartola)

28 de abril de 2005


Alguma coisa que me alimente e me sustente.

* Obrigada pela foto, João. :)

Nas pálpebras cansadas, o peso das dietas fracassadas
Raquel Medeiros

Os dias me vêm sendo servidos assim como uma sopa rala. Sem carne e sem sal. Sem cor e sem graça.
Tomo colheres cheias e o prato não esvazia. Mas não enche. Não preenche. Não sacia.
Olham pra mim e dizem que eu preciso ganhar peso. Ah, se soubessem o quão pesada me sinto, o quanto penso que meu corpo é pequeno e pouco pra tanta coisa. Mas não há balança pra sentimentos, pra contratempos. Não há lugar onde a gente ponha os pés e o ponteiro indique que você precisa perder 3 quilos de tristeza, 6 de preocupação e 5 de desassossego.
“Me fale, doutor, o que preciso fazer pra ter a paz de volta?”
Ele me responde que é assim mesmo. Tem que ser sofrimento intensivo, doses diárias de reflexão – pra não se perder de si, nem dos outros; descanso e sonho.
“Sonho, doutor? Eu não tenho sonhado muito. Eu sequer consigo dormir.”

Sobremesa: "Ora sim, ora não, creio em parto sem dor/ mas o que sinto escrevo/ cumpro a sina/ (...)/ minha tristeza não tem pedigree/ já a minha vontade de alegria/ sua raiz vai ao meu mil avô/ vai ser coxo na vida é maldição pra homem/ mulher é desdobrável/ eu sou." (Adélia Prado)

22 de abril de 2005


"A coisa em si, nunca: a coisa em ti." (Mário Quintana)

Para ela o verde não trazia esperança. Só medo.
Raquel Medeiros

Era muito criança e os medos eram poucos. Não eram poucos, na verdade, mas tinham seu encanto, misturavam-se à curiosidade e ao atrevimento que lhe eram peculiares.
Tinha muito medo daquele seriado, O Incrível Hulk. Assistia sempre.
Não entendia muito bem a história, mas esperava avidamente a hora da transformação – a roupa rasgando, a pele esverdeando -mas quando chegava a hora de mostrar a face transformada e furiosa do personagem, ela corria pra debaixo da cama. E ficava lá, até sentir que ele resolvera seus desafetos e voltara à forma humana. Tudo isso pra esperar a próxima transformação. Sempre assim. Todas as tardes.
Agora é uma mulher. Seus medos são outros. Ainda guarda a curiosidade e o atrevimento característicos, mas sente falta de ficar embaixo da cama quando o medo chega ao ápice. Eles agora aparecem a qualquer hora do dia. E desde que começou a dormir na rede, não há mais cama pra se esconder.
Não tem mais medo do Hulk, agora acha até engraçado, ridículo. E torce para que os medos de agora lhe provoquem risadas depois.

Sobremesa: "Tinha que ser dor e dor/ esse processo de crescer/ tinha que vir dobrado/ esse medo de não ser/ tinha que ser mistério/ esse meu modo de desaparecer." (Paulo Leminski)

19 de abril de 2005


Me revolta a falta. Me consola a volta.

*Na foto - Rodrigo Amarante.

Descrição de um quarto qualquer
Raquel Medeiros

Este é o quarto. Aquela é a escrevaninha, onde busco palavras, onde enceno rimas pra te fazer voltar.
Aqueles são os livros. Pobres páginas, tantas banhadas por lágrimas, poucas por risadas. Já nos traduziram tanto que hei de um dia juntar frases soltas, de cada um deles, para escrever nosso próprio livro. Repetido e infalível, como todo amor.
Ali estão meus discos. Me traduzem dispersos, trazendo na melodia e nos versos, o teu instrumento que insisto em tocar; o meu sentimento que não consigo cantar.
E agora que estás aqui, já não quero essas tantas coisas.
Só quero esta cama. E que tu faças morada nos meus desarrumados e inquietos lençóis.

Sobremesa: "Se tudo soubesses como é triste/ eu saber que tu partiste/ sem sequer dizer adeus/ ah, meu amor tu voltarias/ e de novo cairias a chorar nos braços meus." (Vinícius de Moraes)

15 de abril de 2005


"Que tolo fui eu que em vão tentei raciocinar
nas coisas do amor que ninguém pode explicar."

"Chega mais perto, moço bonito
Chega mais perto meu raio de sol
A minha casa é um escuro deserto
Mas por você ela é cheia de sol
Molha a tua boca na minha boca
A tua boca é meu doce é meu sal
Mas quem sou eu nessa vida tão louca
Mais um palhaço no teu carnaval."

Sobremesa: "A felicidade é como uma gota d orvalho/ numa pétala d flor/ brilha tranqüila/ depois d leve oscila/ e cai como uma lágrima d AMOR." (Tom Jobim)

12 de abril de 2005


Tomer Hanuka

Nature boy
Eden Ahbez

There was a boy,
A very strange, enchanted boy,
They say he wandered
Very far, very far
Over land and sea
A little shy
And sad of eye,
But very wise was he
But then one day,
One magic day,
He passed my way
And while we spoke
Of many things,
Fools and kings,
This he said to me:
"The greatest thing
You'll ever learn
Is just to love
And be loved in return".

Sobremesa: "Não acabarão nunca com o amor/ nem as rusgas/ nem a distância/ está provado/ pensado/ verificado/ Aqui levanto solene minha estrofe de mil dedos/ e faço o juramento/ amo firme, fiel e verdadeiramente." (Vladmir Maiakowski)

11 de abril de 2005


Barba e Camelo

A falta de fome a deixava mais magra, mas não diminuía o peso
Raquel Medeiros

Perdeu o doce o salgado. Perdeu a poesia e a prosa. Não sobrou muita coisa – só o amargo do choro engasgado.
Aquele choro amargava mesmo – construía olheiras e doenças que ao contrário do que se possa pensar – não davam charme à tristeza. Só dor.
Não sabia rezar. Nunca soube. Mas nunca desejou tanto que existisse realmente alguém capaz de fazer tudo desaparecer. Tudo não-acontecer.
Não existe... sabe que não. E Deus? Ele adora brincar de “pega-pega” com seus títeres. E ela, só mais um deles.

Sobremesa: "Eu que já não sou assim/ muito de ganhar/ junto as mãos ao meu redor/ faço o melhor que sou capaz/ só pra viver em paz." (Los Hermanos)

6 de abril de 2005


Que em breve a alma volte a ser leve.

Quem me de longe olhe
Pedro Guedes Amaral

Quem me de longe olhe
distraído, lendo
e não colhe
meu olhar
que inquieto se descobre
não sabe

o quanto quer ser colhido

em olhos ternos
que não sejam, como escudos,
convexos,
mas côncavos, como colos.

Sobremesa: "Quero um dia para chorar/ dia de desprender-me dessa aventura mal entendida/ sobre os espelhos sem saída em que jaz minha face impressa/ chorar sem protesto/ chorar." (Cecília Meireles)

30 de março de 2005


A raposa, Janis.

Maldita (car) caça
Raquel Medeiros

Deus há de sempre me tratar com uma raposa no campo
Ele, sempre o cão a vigiar
Eu, fugindo da sua invariável sede de caçar.

Está em toda a parte
Me segue, engana e sufoca
Às vezes o desejo é de já estar morta
Pra não lhe dar de graça essa sorte.

Crava-me as unhas do cinismo
Pintadas com o esmalte do altruísmo
Esmaga com sua mão o coração alheio
Ah! Maldito Deus em sua eterna hora de recreio!

Sobremesa: "Tem dias que a gente se sente/ como quem partiu ou morreu/ a gente estancou de repente/ ou foi o mundo então que cresceu?" (Chico Buarque)

28 de março de 2005


Um homem chamado Alfredo

Na queda, a tristeza existe...
Raquel Medeiros

Entre o último gole do café frio e o banho antes de dormir, o telefone tocou três vezes.
Engano. Engano. Engano.
Nem lembrava porque tinha telefone.
Sem família. Sem amigos. Sem credores.
Na cama, deitado. Olhar triste sem cúmplice.
Desejou que sua vida inteira passasse naquela noite. Seria encontrado morto de velhice.
Sem despedidas. Sem choro. Sem lembranças.
Mas nem isso Deus faria por ele. Teria que criar coragem para dar um fim aquela espera.
Esperou a vida. Esperou o amor. Esperou a compaixão.
A morte ele mesmo foi buscar.

... na subida, a tristeza insiste.

Sobremesa: "Eu sempre o cumprimentava/ porque parecia bom/ um homem por trás dos óculos/ como diria Drummond/ num velho papel de embrulho/ deixou um bilhete seu/ dizendo que se matava/ de cansado de viver/ embaixo assinado Alfredo/ mas ninguém sabe de quê." (Toquinho e Vinicius de Moraes)

22 de março de 2005


Podia até camuflar o amor, mas não escondê-lo.

Bilhete de ousada donzela
Adélia Prado

Jonathan,
Há nazistas desconfiados.
Põe aquela sua camisa que eu destesto
- comprada no Bazar Marrocos –
e venha como se fosse pra consertar meu chuveiro.
Aproveita na terça que meu pai vai com minha mãe
visitar tia Quita no Lajeado.
Se mudarem de idéia, mando novo bilhete.
Venha sem guarda-chuva – mesmo se estiver chovendo –
não aguento mais tio Emilio que sabe e finge não saber
que te namoro escondido e vive te pondo apelidos.
O que você disse outro dia na festa dos pecuaristas
Até hoje soa igual música tocando no meu ouvido:
“Não paro de pensar em você.”
Eu também, Natinho, nem um minuto.
Na terça, às duas da tarde,
Hora em que se o mundo acabar eu nem vejo.

Com aflição,
Antônia

Sobremesa: "A minha Casa é guardiã do meu corpo/ e protetora de todas minhas ardências/ e transmuta em palavra/ paixão e veemência/ e minha boca se faz fonte de prata/ ainda que eu grite à Casa que só existo/ para sorver a água da tua boca." (Hilda Hilst)

18 de março de 2005

Que o fim-de-semana seja inteiro... =D

Preferia bolo, porque torta a vida já era
Raquel Medeiros

O bolo pra ela vinha sempre em fatias, nunca inteiro. Finas e frágeis, que desmanchavam na boca e sempre deixavam um gosto de saudades.
Às vezes o confeiteiro tirava uma fatia grossa e colocava em seu prato. “Moço, eu quero fina, mesmo”. As grossas não lhe pareciam tão atrativas e às vezes saciavam na primeira mordida.
Ela adorava querer mais, sentir vontade de voltar. Odiava estar saciada, totalmente satisfeita. “Quem se satisfaz, não quer mais, não volta pra pedir outro pedaço; e mesmo que peça é só por gula dos olhos, porque no fundo sabe que o que vier além daquilo é excesso, é dispensável”.
Ah, o amor pra ela também funcionava assim. Queria fatias diárias, mesmo finas e frágeis; mas que a deixassem com vontade de voltar, de querer mais. Mas o Sebastião detestava bolos...

Sobremesa: "Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca." (Clarice Lispector)

15 de março de 2005

Nem todas as caixas de lexotan...
Raquel Medeiros

... curam a insônia. Horas de tentativas de pensamentos amenos. Mas ele não saía da cabeça dela. Qualquer cenário que imaginasse – verão, inverno, outono ou primavera – lá estava ele. Com seu característico sorriso de menino. Pensar nele trazia fome, sede e saudades. Até tentou viajar sozinha, mas não conseguiu. Encontrava-o no avião, no metrô, e até na rua confundia outros rostos com o dele.O corpo cansa mas os ponteiros não. Sentiu preguiça de pensar, mas até a preguiça lembrava ele. Poucas horas depois já era tempo de acordar. Fome, sede e saudades. Um pouco de sono, é verdade, mas isso também lembrava ele.

Sobremesa: "Honey pie/ you are making me crazy/ I'm in love but I'm lazy/ so won't you please come home/ Oh honey pie/ my position is tragic/ come and show me the magic/ of your Hollywood song." (The Beatles)

10 de março de 2005


Helmut Newton - Fotógrafo e fetichista

Meu verso favorito
Raquel Medeiros

O meu verso favorito
Está sendo escrito
A quatro mãos
A cinco sentidos.

O meu verso favorito
Está preso à algemas
Livre de razão
E de qualquer teorema.

O meu verso favorito
Está no teu abraço
Na junção das nossas mãos
Na construção de fortes laços.

O meu verso favorito
Está no teu prazer
Que também é meu por opção
Fruto de intenção e de querer

O meu verso favorito
Está no teu olhar
Que também é meu por ambição
E por vontade de voar.

O meu verso favorito
Está no teu coração de menino
Que foi autor da invenção
De deixar o meu em desatino.

Sobremesa: "Qualquer verso que me mostre/ que não me sufoque/ que não me solte de você." (Raquel Medeiros)

8 de março de 2005

Se tu viesses ver-me
Florbela Espanca

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

Sobremesa: "No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa/ havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha/ eu queria poder pegar nela/ queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanto perfume..." (Hilda Hilst)

4 de março de 2005


Sushi-long - Tomer Hanuka

Diagnóstico
Raquel Medeiros

Coração batendo rouco
Sinal de caminho torto.

Coração batendo pouco
Prenúncio de passo novo.

Coração batendo louco
Certeza de demônio solto.

Sobremesa: "Satan is my motor/ Satan is the only one who seems to understand." (Cake)

1 de março de 2005

Cenas misturadas ao cheiro de novo
Raquel Medeiros

Exterior. Noite. Chuva. Cerveja. Barulho. Troca o pranto pelo riso. Lança mão do segredo que carrega e liberta as dezenas de borboletas que agitam as asas dentro dela. Agora todas à mostra, como as palavras, compõem juntas um movimento acelerado como o coração, ansioso como as mãos, livre como os olhos.

Interior. Noite. Calor. Suor. Música. Troca o medo pelo desejo. Lança mão do tecido que protege e liberta as dezenas de sinais que denunciam a vontade dentro dela. Agora todos à mostra, como os gestos, compõem juntos um movimento acelerado com o coração, ansioso com as mãos, livre com os olhos.

E a alma leve, como tem que ser...

Sobremesa: "Se tudo pode acontecer/ se pode acontecer qualquer coisa/ o deserto florescer/ uma nuvem cheia não chover/ pode alguém aparecer e acontecer de ser você/ um cometa vir ao chão/ um relâmpago na escuridão/ e a gente caminhando de mãos dadas de qualquer maneira/ eu quero que esse momento dure a vida inteira/ e além da vida ainda de manhã no outro dia/ se for eu e você/ se assim acontecer." (Arnaldo Antunes)

24 de fevereiro de 2005


Original beauty - Yuko Shimizu

Versos inquietos
Raquel Medeiros

Seus olhos me olham cada vez mais perto
E com o tempo com os meus se confundem
Fazendo oásis o que antes era só deserto.

Estamos vivos! Sinto seu cheiro, o gosto da sua pele
E todos os seus pensamentos lascivos
Mesmo que não me reveles.

As respirações confundidas
As palavras indecentes
Os gestos sem medidas.

E nesse jeito de te ter com loucura
Sem compostura; de maneira voraz
Cada vez que me pedes um beijo com doçura
Cravo meus dentes no teu corpo e te mordo ainda mais.

Doce é a dor da mordida
Sente prazer a alma, mesmo com a carne ferida
E somos tomados por uma febre
Que, apesar de às vezes breve,
É a melhor coisa da vida.

Me faz livre, me faz leve, me faz viva
Que esse desejo em mim não cessa
A vontade é grande; curta é a vida
E quando meu desejo termina, vem o teu e recomeça.

Sobremesa: "Hoje/ de carne e osso/ laborioso/ lascivo/ tomas-me o corpo/ E que descanso me dás/ depois das lidas/ Sonhei penhascos/ quando havia o jardim aqui ao lado/ pensei subidas onde não havia rastros." (Hilda Hilst)

22 de fevereiro de 2005

O touro e o vermelho
Raquel Medeiros

O vermelho chama o touro. O touro flerta com o vermelho. Ambos não sabem o que vai acontecer na arena. Mas isso não importa...
O homem que segura o vermelho acha que é o centro do jogo. E talvez seja, para a platéia, claro. Mas para o vermelho o que importa é que seu movimento envolva o touro. E para o touro, o desejo que o vermelho desperta.
Paloma também não sabe o que vai acontecer. Mas nem liga, nunca gostou de tourada. O que Paloma gosta mesmo é da sedução entre o touro e o vermelho. Mas para o vermelho e o touro isso também não importa...

Sobremesa: "E a ameaça do que chamamos de inferno/ para mim nada é/ ou muito pouco/ meu camarada querido/ eu confesso que o incitei a ir em frente comigo/ e que ainda incito sem a mínima idéia de qual venha a ser o nosso destino/ ou se vamos sair vitoriosos/ ou totalmente sufocados e vencidos. (...)" (Walt Whitman)

18 de fevereiro de 2005

Este...por enquanto
Paulo Leminski

esse subto não ter
esse estúpido querer
que me leva a duvidar
quando eu devia crer

esse sentir-se cair
quando não existe lugar
onde se possa ir

esse pegar ou largar
essa poesia vulgar
que nao me deixa mentir.

Sobremesa: "O que será que será/ que dá dentro da gente que não devia/ que desacata a gente que é revelia/ que é feito aguardente que não sacia/ que é feito estar doente de uma folia/ que nem dez mandamentos vão conciliar/ nem todos os unguentos vão aliviar/ nem todos os quebrantos toda alquimia/ que nem todos os santos será que será/ o que não tem descanso nem nunca terá/ o que não tem cansaço nem nunca terá/ o que não tem limite." (Chico Buarque)

16 de fevereiro de 2005


That makes my neck numb - Yuko Shimizu

Game over
Raquel Medeiros

Primeiro tempo. Sete da manhã. Ônibus para o trabalho. Sempre lotado, mas era divertido. Ele adorava escolher uma daquelas mulheres e observá-la. Não precisava ser bonita, mas tinha que ser morena e gostosa.
Naquela manhã, estranhamente, ele fitou os olhos numa magricela que estava sentada uns dois bancos à sua frente. Não conseguia tirar os olhos dela. O jeito que ela mexia os cabelos, a displicência com que olhava os passantes na rua. Dava a impressão de que não desceria nunca daquele ônibus; que a intenção era só estar em movimento sem, necessariamente, movimentar-se. O trajeto e o destino pouco importavam.

Segundo tempo. Desceu a velhinha. Desceram os meninos fardados. O cego desceu reclamando das míseras moedas que haviam lhe negado. O assento ao lado dela fica vazio. Ele hesita. Hesitar? Nunca foi disso. Respirou fundo e sentou. Olhou rapidamente e sentiu um frio na barriga.
Ali acabava o jogo. Dessa vez ele não marcou nenhum gol. E o frio na barriga... aquela mulher magra e aparentemente sem nenhum atrativo, era sua irmã. Catorze anos sem vê-la e agora estava ali, ao seu lado. Poderia falar qualquer coisa, mas não teve coragem. Levantou, pediu parada e desceu. Mas sabia que era ela, pois sentiu uma vontade imensa de abraça-la e aquele sinal no canto do olho esquerdo era inconfundível.

Sobremesa: "Eu não quero falar contigo/ eu gosto é de pensar em ti quando estou sentado sozinho/ ou acordado à noite sozinho/ Eu te esperarei/ não tenho dúvida alguma de que vou te encontrar ainda/ E terei cuidado dessa vez para que não te perca." (Walt Whitman)

12 de fevereiro de 2005

Hoje tem entrada, pato principal e sobremesa. Bom apetite! =D

Por mais raro que seja, ou mais antigo,
Só um vinho é deveras excelente:
Aquele que tu bebes calmamente
Com o teu mais velho e silencioso amigo... (Mário Quintana)

Na vida não há
Raquel Medeiros

Na vida não há descanso
E mesmo que o mar esteja manso
Sinto a sua fúria se aproximar.

Na vida não há encanto
E mesmo quando o sentimento é tanto
Sinto a dor o esmagar.

Na vida não há tanto
E mesmo quando a alma transborda em encanto
Sinto a tristeza me esvaziar.

Na vida não há canto
E mesmo quando a voz diz tanto
Sinto o pranto me engasgar.

Sobremesa: "Toda a noite choraste... e eu chorei/ talvez porque, ao ouvir-te, advinhei/ que ninguém é mais triste que nós/ Contaste tanta coisa à noite calma/ que eu pensei que tu eras a minh'alma/ que chorasse perdida em tua voz!" (Florbela Espanca)

10 de fevereiro de 2005


Depression 1 - Yuko Shimizu

A tristeza não é visita, é hóspede
Raquel Medeiros

A tristeza me encontrou
Bateu à minha porta
Achei que fosse alguém bem-vindo
Ignorou o meu não, sorrindo
Entrou e ficou.

Pediu um café amargo
Acendeu um cigarro
Ficou olhando pra mim
Tirando sarro
Da dor que me proporcionou.

Ah, se veneno eu tivesse
Daria uma grande dose
Pois é isso que ela merece
Porque de mim ela não esquece
Quando achei que morta estivesse
Ela voltou.

Sobremesa: "Tudo era questão de decidir. E, embora já tivesse decidido, continuou pensando por pensar, escolhendo e dando-se razões para escolha, até que o amanhecer começou a esfregar-se na janela, no cabelo de Ofelia dormindo, e o seibo do jardim recortou-se impreciso, como um futuro que coalha em presente, endurece pouco a pouco, entra em sua forma diurna, aceita-a e a defende e a condena à luz da manhã."(Julio Cortázar)

1 de fevereiro de 2005

O Labirinto
Jorge Luis Borges

Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.

Sobremesa: "O sentido está gravado/ no rosto com que te miro/ neste perdido suspiro/ que te segue alucinado/ no meu sorriso suspenso/ como um beijo malogrado." (Cecília Meireles)

25 de janeiro de 2005


Glub - Alexandre Fermar

* Obrigada pela ilustração, Alexandre. Tem dias que ela perece um espelho... beijos.

Ví(cio)s
Raquel Medeiros

Telefone e despertador tocando ao mesmo tempo. Não quero levantar. Ainda estou sob efeito das drogas da madrugada – o som do trem noturno no seu percurso sem desvio, alguns comprimidos coloridos, resquícios de presença masculina nos lençóis e a insônia (desta não me livro nunca!).
Telefone e despertador tocando ao mesmo tempo. Parecem ensaiados. Não levanto. Sei que não conseguiria falar com ninguém hoje. Sinto uma dor fina e insuportável no peito. E algo interrompendo a passagem da saliva. Estou irremediavelmente engasgada... Deve ter sido um daqueles comprimidos coloridos...

Sobremesa: "E agora Maria?/ o amor acabou/ a filha casou/ o filho mudou/ teu homem foi pra vida/ que tudo cria a fantasia/ que você sonhou/ apagou à luz do dia/ e agora Maria?/ vai com as outras/ vai viver com a hipocondria." (Alice Ruiz - paródia do poema "José", de Carlos Drummond de Andrade)

20 de janeiro de 2005


Letters of desire - Yuko Shimizu

Há um voyeur em cada um de nós
Raquel Medeiros

Não espere que eu diga “eu te amo”. Aliás, não espere que eu ame você. Esse amor que você grita aos quatro cantos é mero capricho seu, é um jeito de tentar me fazer ficar, de enganar alguns dos meus órgãos-não-racionais.
Mas como é bom num dia como hoje te vestir na fantasia de carrasco e contar minhas mágoas aqui. O quanto você me faz sofrer... quando nega o jogo e o fogo; quando viaja; quando volta e dorme; quando não dorme em casa...e tantas outras coisas que só dizem respeito a nós dois.
Você até fica mais sexy nessa fantasia de carrasco que na de “homem apaixonado”. Você não sabia, mas é isso que me faz ficar. Eu nunca te falei que era um pouco masoquista? Certo, talvez nem tão pouco assim... eu te amo. Volta logo que eu tô com saudades. E vontades também.

Sobremesa: "Paixão é quando o demônio está nu/ sexo com quem ama é muito mais satânico/ não precisa ser um amor pra sempre/ pode ser um amor de repente/ qualquer amor inferniza." (Clarice Lispector)

14 de janeiro de 2005

Onde está a poesia?
Raquel Medeiros

Onde está a poesia?
Dizem que foi rua acima
Reclamando a paz perdida
Dizendo que tem mais o que fazer da vida
Que se preocupar em fazer rima.

Onde está a poesia?
Dizem que foi na casa da vizinha prosa
Reclamando a alegria perdida
Dizendo que tem mais o que fazer da vida
Que ser letra dolorosa.

Onde está a poesia?
Dizem que dobrou a esquina
Reclamando a juventude perdida
Dizendo que tem mais o que fazer da vida
Que ser velha ao invés de menina.

Onde está a poesia?
Dizem que foi pra outro país
Reclamando a felicidade perdida
Dizendo que tem mais o que fazer da vida
Que ficar nesse blog infeliz.

Sobremesa: "Tem dias que ela se revolta/ com a letra torta/ com a felicidade morta/ eu que não quero confusão/ deixo ela num canto/ louvo o riso/ respeito o pranto/ e ela que volte quando estiver pronta/ quando quiser o coração." (Raquel Medeiros)

11 de janeiro de 2005


Charlie Brown - Andrei Formiga

* Adorei a foto, e o Charlie Brown. Obrigada. =)

Mesmo enrugadas, não haviam mãos tão amadas quanto as dela
Raquel Medeiros

Quando a conheci já vivia sozinha. Filhos casados morando longe. Visitas periódicas no verão, e no Natal. Mas nas segundas-feiras, dias chuvosos e tristes éramos só nós dois.
Era uma mulher de grandes silêncios e de gestos significativos. Eu ouvi seus segredos e ela sempre dizia que eu havia trazido a alegria de volta àquela casa, mesmo quando a sujava depois das brincadeiras no quintal.
E a vida que antes se resumia à lágrimas na sala grande e vazia, agora era contada por passeios, brincadeiras e carinhos ao som da tv.
Os anos foram passando, eu fui crescendo e vendo ela perder cada vez mais o viço da pele e a audição. O volume da tv cada vez mais alto. Eu também já tinha um certo cansaço, e notando o dela, já não subia mais na saia de retalhos, mas demonstrava meu carinho e gratidão balançando o rabo, e pousando minha cabeça em seu colo, quando sentava na poltrona, que de tão antiga, já tinha a forma do corpo dela.
Um dia ouvi um barulho estranho, e ao entrar na sala, lá estava seu corpo, quieto e frio. Seu sangue espalhado no assoalho escuro. Eu latia e uivava num pedido de socorro. Os vizinhos vieram, e no velório a casa estava cheia como nunca. Eu queria que ela estivesse viva pra ver todos os netos correndo pela casa, todos os filhos reunidos, abraçados.
Eu fui pra o meu canto, e senti quando uma mão me fez um carinho solidário. Mas eu sabia... Nada confortaria a ausência dela, nem tiraria a certeza de que um dia seria eu.

Sobremesa: "Irreconhecível/ me procuro lenta nos teus escuros/ como te chamas, breu?/ tempo." (Hilda Hilst)