20 de janeiro de 2006


"Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo"
(Vinícius de Moraes)


* Parceria de letras e de vida. De prosa e de poesia. Somos "Rodrigueanas".

Na companhia da luz
Tyara Veriato

Ela estava ocupada em esperar, por isso passou o dia alimentando a ansiedade com pequenos indícios, que iam do toque do telefone, passando pelos os sons vindos da esquina, até a imaginação de como seria a chegada. Acomodou-se na calçada pra ver o carro chegar, depois viu que a melhor estratégia era esperar no pé do portão, com a causalidade de quem acabou de sair. Gostava de provocar encontros furtivos, eram acasos friamente planejados. "Já que o destino não faz, faço eu", a lógica era essa. Às vezes entrava, tomava um copo d'água, olhava para o relógio e dava uma volta na casa, sempre atenta a qualquer barulho. Quando ouvia, saía desembestada, parava a um metro do portão e desfilava calmamente em direção à rua. Foi um dia de pupilas dilatadas e reflexos aguçados. Quando o sol se pôs, estava exausta, mas não desistiu da espera, passou a observar da varanda os faróis dos carros, afinal, na noite as surpresas vêm na companhia da luz.

Sobremesa: "Vou colocar batom vermelho escrevendo "desejo" nos lábios/ sapatos altos calçados lentamente entre uma tragada e outra/ vou arrumar a casa/ enfeitar com flores e fazer um delicioso jantar/ vou colocar gotas de perfume enquanto penso em dedos a acompanhar essas gotas que percorrem o arrepio da pele/ vou acender outro cigarro e caminhar em direção ao portão/ vestido justo colado ao corpo/ espera injusta colada à alma." (Raquel Medeiros)

17 de janeiro de 2006


Let's play together

Rayuela (trecho)
Julio Cortázar

O jogo da amarelinha joga-se com uma pequena pedra que é preciso empurrar com a ponta do sapato. Ingredientes: uma calçada, uma pedrinha, um sapato e um belo desenho feito com giz, preferivelmente colorido. No alto, fica o Céu, em baixo a Terra, é muito difícil chegar com a pedrinha ao Céu, quase sempre se calcula mal e a pedra sai do desenho.
Pouco a pouco, porém, vai-se adquirindo a habilidade necessária para salvar as diferentes casinhas (caracol, retângulo, fantasia, esta pouco usada) e um dia se aprende a sair da Terra e levar a pedrinha até o Céu, até entrar no Céu (...) o pior é que, justamente nesse momento, quando ainda quase ninguém aprendeu a levar a pedra até o Céu, a infância acaba de repente e se chega nos romances, na angústia do divino foguete, na especulação do outro Céu ao qual também é necessário aprender a chegar. E, por se ter saído da infância (...) esquece-se que, para alcançar o Céu, é preciso ter como ingredientes, uma pedrinha e a ponta do sapato.

Sobremesa: Maria tinha uma pedra, um sapato e um caminho/ no meio do caminho, a pedra entrou no sapato/ e Maria nunca alcançou o Céu". (Raquel Medeiros)

6 de janeiro de 2006




"Sem você sou pá furada."
(Rodrigo Amarante)

Sem sinal de fumaça
Raquel Medeiros

Noite insone, como de costume. Na mesa, um maço de cigarros. Vazio. Sinto vontade de fumar e me culpo por isso. O dia não foi bom. Ensolarado por fora. Nublado por dentro. Uma vontade de deixar tudo pra trás. De me deixar pra trás. De não saber quem sou. Por isso desejo um cigarro. Não consigo levantar nem pra contar os trocados para um maço. A que horas você volta? Não quero jantar sozinha de novo. Não quero ver Before Sunrise sozinha pela quinta vez e ficar com saudades dos nossos diálogos. Não quero adormecer no sofá e acordar sozinha, nessa espera vã. Não quero levantar e ter que encarar os outros e a mim mesma. Não quero enfrentar a rotina sozinha. Não consigo. E aquelas nuvens de chuva resolveram se espremer sobre os meus olhos. Mas apesar da dor, do choro e desse imenso vazio, só te peço que quando voltares traga-me um maço de cigarros.

Sobremesa: "O inverno aqui durou muito tempo/ não sei precisar, mas tive crises de choro fantasiadas de resfriados contínuos/ foi uma pneumonia branda/ Eu suo frio só de pensar em injeção/ mas todos os dias me forçava a tomar uma dose cavalar de ânimo pra enfrentar a vida". (Raquel Medeiros)