27 de dezembro de 2004


"Agora, imediatamente, é aqui que começa o primeiro
sinal do peso do corpo que sobe." (Ana Cristina Cesar)

* Imagem de "Vincent", primeira animação de Tim Burton.
Ambos dispensam comentários ("Vincent" e seu criador)

Degraus
Raquel Medeiros

De vez em quando levo um tropeço
De vez em quando carrego o cansaço.

De vez em quando vejo o fim da escada
De vez em quando não enxergo nada.

De vez em quando sinto solidão
De vez em quando alguém me dá a mão.

E enquanto escrevo continuo subindo
Já consigo até ver a porta do sótão.

Sobremesa: "Parece que há uma saída exatamente aqui onde eu pensava que todos os caminhos terminavam. Uma saída de vida. Em pequenos passos, apesar da batucada." (Ana Cristina Cesar)

25 de dezembro de 2004

Tentei postar uma foto, mas o hello não quis.
Hoje não tem sobremesa. Relevem... nem o prato principal eu consegui fazer...

Desejos Vãos
Florbela Espanca

Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...

21 de dezembro de 2004


"Custa-me a acreditar que se chegue um dia à
demonstração de que somos obra de um ser
supremo e não, como parece, de um ser muito
imperfeito que nos fabricou à laia de passatempo."
(Lichtenberg)

* Foto feita por Win Wenders, que era fotógrafo antes de ser cineasta.

Cada um tem, em seu próprio labirinto, o minotauro que merece
Raquel Medeiros

És imenso
E mais forte que eu
Minha fé já morreu
Desse teu veneno intenso.

E ter que enfrentar
Quando quero fugir
E ter que resgatar
O tão fragil palpitar
Do coração que não pára de partir.

Esperar ou me atirar?
A fumaça do cigarro que nunca encerra
E que não traz resposta ou alento
A esta criatura
Pequena demais pra tanto sofrimento.

Sobremesa: "Avançavam assim pelas páginas/ maldizendo e fascinados/ e a maga terminava sempre por enroscar-se como um gato sobre uma poltrona/ cansada de incertezas." (Julio Cortázar)

13 de dezembro de 2004


Hapless - Edward Gorey

*Adoro demais esse Gorey. Desenhos e textos.
Esse desenho aí em cima é uma "tradução" das minhas últimas semanas...
Tô cansada pra atualizar isso aqui também. Já já eu volto. Mas a minha medida de "já" pode ser diferente da sua...

Inveja daquela que nunca cansa do salto
E nem tem calos no pé
Eu já joguei tudo pra o alto
Inclusive a fé.
(Raquel Medeiros)

Sobremesa: "Abraço rima com cansaço/ mas abraço é bom/ e o cansaço já me tirou o tom". (Raquel Medeiros)

6 de dezembro de 2004


...amor, amigo e riso são as únicas coisas que satis(fazem) o dia.

* O meu melhor e maior abraço pra você, Tiago. =**************

Não esquece
Raquel Medeiros

Não esquece
Que aqui tens a minha melhor palavra
Aquela que vai da minha alma
Pra sua alma.

Não esquece
Que aqui tens o meu melhor sorriso
Aquele que nunca é falso
Ou indeciso.

Não esquece
Que aqui tens o meu melhor abraço
Aquele que construiu tantos laços
Aquele que vence qualquer cansaço.

Não esquece
Que aqui tens a minha mão
Aquela que não deixa cair
Nem o corpo; nem o coração.

Sobremesa: "Mãe é verbo/ é substantivo/ é adjetivo/ é exclamação/ e mesmo que a voz cale/ tudo o que ela disse/ fica na memória/ na alma/ e não tem ausência/ que tire a presença do coração." (Raquel Medeiros)

3 de dezembro de 2004


A vontade que nunca vai embora - A vontade de nunca ir embora.

* Carola e João. Um mês de amor. Dois queridos. Queridos demais. Apaixonados. Que é assim que a vida vale a pena.
E podia ser qualquer um de nós, de vocês. Mas hoje o dia é deles... Beijos. =)

Que a saudade que traz o pranto nunca seja maior que a vontade de ser tanto
Raquel Medeiros

Me dá uma gota da tua saliva quente
Que eu faço um mar
Porque o teu desejo deixa o meu ascendente
Não é chuva que molha somente
É tempestade que faz tudo transbordar.

Me dá um pedaço da tua carne quente
Que eu faço um banquete
Porque o teu desejo deixa o meu ardente
Não é entrada somente
É refeição completa que faz tudo saciar.

Me dá um tempo do teu movimento quente
Que eu faço uma dança
Porque o teu desejo deixa o meu permanente
Não é rebuliço de ancas somente
É uma agitação no corpo e na mente
Que não quer findar.

Sobremesa: "Hoje é dia de arrumar a mala/ pra viajar/ hoje é dia de arrumar a casa/ e colocar a saia rodada/ pra esperar o amor chegar/ no coração a vontade faz morada/ e a saudade vai ficar na passagem comprada/ manda um abraço pra aquela tangerina/ um abraço bem apertado/ pois nunca vi um ser tão amado/ como essa menina." (Raquel Medeiros)

1 de dezembro de 2004

O refrão (in)cansável dos dias
Raquel Medeiros

Mais uma manhã. Ela, sentindo-se aquela mulher que faz tudo sempre igual. Com a diferença que ela não tinha ninguém pra esperar, nem pra beijar-lhe a boca cheia de feijão.

Café fraco e com adoçante. Duas torradas, pra não engordar. Pra quê? Se não tinha ninguém que lhe notasse a evidência das costelas. E se o corpo estava mais leve, o coração pesava mais que uma daquelas grandes melancias.

Faxina na casa e lençóis limpos. Pra quê? Se aquela cama não sentia outro cheiro senão o do amaciante. Fazia tanto tempo que não tocava o corpo de um homem, que sequer lembrava o nome do último. Talvez Haroldo... lembrava de algum Haroldo... lembrança distante. Podia ser alguém com quem deitou. Ou o enfermeiro que aplicou a glicose no seu último grande porre.

Mais uma manhã. Ela sentindo-se aquela mulher que faz tudo sempre igual. Com a diferença que ela não tinha ninguém pra esperar, nem pra beijar-lhe a boca com paixão.

Café fraco e amargo. O adoçante acabou.

A única coisa que não acaba na vida da Sandra é a rotina maçante. E a lembrança distante de um certo Haroldo... que podia ser alguém com quem deitou. Ou o cara do andar de baixo, que levou o resto do seu adoçante.

Sobremesa: "Últimos dias do ano/ Andava no ar uma agitação insólita/ todos indo e vindo/ se encontravam/ se separavam/ Pela manhã/ depois de uma noitada no bar ou em casa de alguém/ Eduardo se interrogava ao espelho/ um dia mais velho/ Que estou fazendo da vida?/ se perguntava, e saía para o trabalho." (Fernando Sabino)

29 de novembro de 2004

Textos antigos, só pra tirar um pouco o mofo.

Amanhã
Raquel Medeiros

Amanhã eu não sei
Talvez eu acorde sedado
E pegue o ônibus errado
Só pra ver onde vai dar.

Amanhã eu não sei
Talvez eu acorde inspirado
E minta desavergonhado
Só pelo prazer de enganar.

Amanhã eu não sei
Talvez eu acorde endemoniado
E mate o cara errado
Só pela distração de ver sangrar.

Amanhã eu não sei
Talvez eu acorde finado
E finja estar acordado
Só pra esse verso rimar.


Poema deixado embaixo da porta
Raquel Medeiros

E se falta o abraço
Eu posso desatar esse maldito laço
Que me enforca
Ao invés de me enfeitar.

Por mais que me sobre bondade
A grande verdade
É que o desdém me sufoca
Mais do que posso suportar.

Mas não se importe
Que com um pouco de sorte
Em breve me verás morta
E nem precisa fingir chorar.

Sobremesa: "Esse papel de parede de fungo/ não combina com a decoração do teu quarto/ mas cai bem com a do coração/ no entanto, não deixa isso se alastrar/ abre portas e janelas/ arranca o teto/ e deixa o sol entrar". (Raquel Medeiros)

23 de novembro de 2004

A insustentável certeza de não ter
Raquel Medeiros

Sobrava ainda um pouco de café. Restavam ainda alguns poucos cigarros, e uma tristeza tão grande que não cabia no pequeno apartamento.
Há três horas antes, ele ainda estava lá – esvaziando o guarda-roupa, embrulhando os livros e o estômago dela, levando a Billie Holiday embora... Ao som de ofensas, socos e pontapés morais.
Fim de relacionamento sempre dói, deixa alguma cicatriz, nem que seja lá no cantinho do tornozelo. Com ela não era diferente. Tinha marcas nos pulsos, e nos seios. O peito apertado e a cabeça rodando tanto que precisou sentar, ali, na poltrona dele, que dali a alguns dias ele mandaria buscar, e seria mais um lugar vazio - além da cama, e do coração dela.
Não tinha força pra levantar. Queria sair, comprar mais café, cigarros, e quem sabe um pouco de alegria. Mas não conseguia. Nunca foi a menina que levantava rápido da queda e limpava displicentemente o joelho.
Sempre foi a que ficava muito tempo ainda no chão, vendo os arranhões, o sangue, e a sua incapacidade de lidar com a visão de quem está embaixo, esperando a mão, a ajuda, o abraço.
Acabou o café. Acabaram os cigarros. Mas a tristeza estava lá – mais espaçosa que nunca.
Conseguiu levantar com grande esforço. Foi no quarto, pegar a bolsa pra ir à rua. O cheiro dele espalhado no quarto, as gavetas vazias, a ausência dos sapatos dele. Foi um choro doído. O choro que não saiu quando ele bateu a porta.
Despencou na cama, que assim como a tristeza, parecia grande demais pra ela. Mas agora era só dela.

Sobremesa: "Se você me ama/ por que não se concentra?" (Ana Cristina Cesar)

22 de novembro de 2004

texto velho... de uma época em que a esperança vencia a espera.

Na balança, a espera pesa mais que a esperança
Raquel Medeiros

Um postal da dor
Na esperança de um amor
Essa é a vida da Mariah.

Sonhos pálidos
Olhos já cansados
Da lida difícil de levar.

Pôs um vestido estampado
Cheirando a guardado
Com um perfume pra enganar.

Um pouco de cor nos lábios
Há tempos ressecados
Pela ausência do beijar.

Esperou mas ele não veio
E sua vida ficou assim sem recheio
Morreu, entediada, esperando o amor chegar.

Sobremesa: "A esperança deseja o abraço/ a espera fomenta o cansaço/ pelo menos uma hora na vida/ a gente já morreu na ponta da faca da demora/ que faz passar a hora/ faz esgotar o tempo/ faz a beleza ir embora/ e estragar o sentimento". (Raquel Medeiros)

18 de novembro de 2004


"Sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada,
uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudades...sei lá de quê!''
(Florbela Espanca)

*A foto é de Gustavo Soares. =****

Ninguém perde a gente. A gente é que se perde.
Raquel Medeiros

Hoje é dia de mudar a alma de casa. Desocupar os cômodos. Acabar com o incômodo. Esvaziar o corredor, com malas cheias de coisas velhas e em desuso. Jogar fora as panelas vazias, cuja ferrugem já me causou diversas doenças – algumas reais outras inventadas por mim. Porque doença costuma trazer um certo charme à tristeza, dá credibilidade.

Hoje é dia de esquecer sentimentos como afeto, esperança e alegria. É dia de ficar entre a coragem e a covardia. É a bulimia de bons sentimentos. Eu os tomo pra mim, me alimento e depois os vomito. E isso não começou hoje. Já faz tanto tempo que já devo ter uma úlcera emocional – mais uma doença inventada.
Há tempos meus olhos já não se atrevem a fitar os olhos dos outros, desses estranhos, que um dia me foram tão familiares. Meus olhos agora só procuram por uma porta, uma saída...

Hoje é dia de, apesar da distância, dar uma certa satisfação às pessoas que dividem esta casa comigo. Fico em dúvida se escrevo uma carta, se escrevo com batom em todos os espelhos dos banheiros, se ponho um recado na geladeira – bem ali, junto da foto do nosso último verão. Eu e meu corpo que não preenchia o biquini, e a cada onda mais forte lá se ia a parte de cima. Na foto, parecia divertido. Mas hoje não é mais, e minha condição não me deixa lembrança daquela menina que adorava construir castelos. Hoje não construo nada, nem castelo de cartas.

Amanhã é dia de nascer de novo. Num outro lugar, quem sabe até mais bonita. Mais saudável de corpo e mente. Mais confiante. Quem sabe até eu nasça numa família de pessoas conhecidas. Nasça homem e tenha com o que preencher o calção de banho.

Mas hoje, nada de cartas. Nada de espelhos de banheiros riscados com batom. Nada de recado junto à foto do último verão. Eu não sei fazer isso. Nunca soube o que dizer a eles. Hoje não vai ser diferente. Afinal, o que se diz quando se precisa morrer?

Meus olhos acharam, enfim, a saída. Não era uma porta, mas a janela serviu.

Sobremesa: "Não terei podido fazer-te viver isto/ escrevo assim mesmo para você que me lê/ porque é uma maneira de quebrar o cerco/ de te pedir que procures em ti mesmo se não tens também um desses gatos/ desses mortos que amaste/ e que estão nesse aí que já me exaspera mencionar com palavras de papel." (Julio Cortázar)

16 de novembro de 2004

Sleep darling, do not cry
Raquel Medeiros

Da última vez
Trocamos sorrisos pequenos
E abraços amenos
Que não eram meus nem seus.

Agora vês!
Nem abraços nem beijos na despedida
E na hora da partida
Respondestes o meu “até breve”
Com um “adeus”.

Sobremesa: Lutar contra a foice do tempo é vão/ tentar esconder a tristeza é covardia/ hoje é dia de sangrar o coração/ é dia de admitir que amanhã pode ser de alegria/ mas hoje não. (Raquel Medeiros)

11 de novembro de 2004

A difícil condição
Raquel Medeiros

Os gatos vêm aqui com suas unhas afiadas
As pessoas sentam com suas aflições
Sentam com seus cigarros e me queimam o braço
E ainda tem quem ache fácil ser sofá...

As pessoas discutem seus problemas
Discutem sobre o cardápio
Discutem sobre o assoalho
E me batem com os punhos
E ainda tem quem ache fácil ser mesa...

As pessoas vêm com seus pesadelos
Com seus sonhos bizarros
Trazem qualquer um pra deitar em mim
E me causam insônia
E ainda tem quem ache fácil ser cama...

Os gatos vêm com suas unhas afiadas
As pessoas vêm com seus problemas
Discutem o cardápio, o assoalho
Me batem com o punho
E me causam insônia
E ainda tem quem ache fácil ser gente...

Sobremesa: "Traz qualquer coisa de sobremesa/ pudim ou torta de limão/ que às vezes cansa ser assim/ às vezes eu não quero ser são/ tudo o que faço é zombar de mim/ é rir da eterna condição/ e disso tudo ter um fim/ a paixão e a batida do coração/ bom é quando morre o sentimento ruim/ e no lugar fica o perdão/ se isso não fizer sentido/ esquece, que é coisa de coração doído/ não tenta encontrar razão". (Raquel Medeiros)

9 de novembro de 2004

Balanço das perdas
Raquel Medeiros

- O que nós perdemos nessa vida, Maria?
- Perdemos nosso filho mais novo, contrariando as leis naturais, num acidente de automóvel.
- Perdemos nosso filho mais velho, morto pela “quantidade excessiva de substâncias tóxicas em seu sangue”, disse o médico. Mas acho que ele morreu de tristeza, porque a Amália o deixou, e ainda levou as crianças – nossos netos. Perdemos nossos netos também, que nesse momento devem estar brincando na neve em algum país europeu.
- Você perdeu seus cabelos negros. Eu perdi o viço da pele. Você perdeu o vigor e boa parte da sua capacidade auditiva. Eu perdi a rigidez dos seios e a visão num dos olhos. Você perdeu o campeonato de futebol. Eu perdi o show do Roberto.
- Você esqueceu nosso filho do meio, querida.
- Não esqueci, Horácio, mas ele nós ainda não perdemos.
- Ele nos esqueceu, Maria...
- Assim é a vida, querido... Um dia os filhos acabam esquecendo os pais... Vão embora, casam-se, batem a porta e não voltam mais... É verdade que no caso do Fernando fomos nós quem batemos a porta pra ele... O colocamos num lugar onde todos são esquecidos, onde todos estão perdidos....
- É, no final das contas, perdemos o Fernando também... Põe aí na lista, Maria...

Sobremesa: "Deus sabe o que eu quis foi te proteger/ do perigo maior que é você/ e eu sei que parece o que não se diz/ no seu caso é o tempo passar/ quem fala é o doutor/ (...) / e foi difícil ter que te levar aquele lugar/ como é que hoje se diz/ você não quis ficar/ os poucos que viram você aqui/ me disseram que mal você não faz/ e se eu numa esquina qualquer te vir/ será que você vai fugir?/ se você for eu vou correr/ se for eu vou..." (Los Hermanos)

8 de novembro de 2004

O amor que a gente tinha
Raquel Medeiros

Não me peça pra calar agora. Essa é a minha hora de falar, está bem escrito aqui, no roteiro. Eu não preciso ter um final triste. Também está escrito aqui.
Onde foi que meu personagem se perdeu do teu? Foi na hora da mudança?! Eu devia saber... Senti que algo tinha ficado no caminho, tinha se perdido. Nos perdemos.
Quando ouvi o barulho abafado de vidro quebrado, achei que fosse algum prato, algum copo. Mas nem era, era o amor que a gente tinha...
Eu pensava que ele era forte, que resistiria ao tempo e ao vento, à má-sorte... Ele não resistiu a mudança. Caiu naquela rua, como é mesmo o nome? ... Desesperança.

Sobremesa: "Se a comida não estiver na temperatura adequada/ pode estar certo que mais cedo ou mais tarde vai estragar/ e se ainda sim, você quiser saboarear/ por insistência/ por persistência/ pra ver o que dá pra aproveitar/ tenha em mente que certas coisas quando estragam não tem geladeira ou fogão que dê jeito/ e se você comer/ pode sentir vontade de vomitar". (Raquel Medeiros)

4 de novembro de 2004

O duelo
Raquel Medeiros

Saudade rima com maldade
Saudade faz a hora sempre ser tarde
Saudade que causa alarde
Saudade que zomba da minha vontade.

Vontade rima com liberdade
Vontade faz a hora sempre ser eternidade
Vontade que causa felicidade
Vontade que desafia a minha saudade.

No desfecho desse duelo
O sarcasmo perde para o belo
Vacila a saudade que embaralha o verso
Prevalece a vontade que deixa tudo eterno.

Sobremesa: "Dentro dos meu braços/ os abraços hão de ser milhões de abraços/ apertado assim/ colado assim/ calado assim/ abraços e beijinhos/ e carinhos sem ter fim". (Tom Jobim)

3 de novembro de 2004

As man(ias) de Cícero
Raquel Medeiros

Foram três facadas, em pontos estrategicamente escolhidos. Ela era assim mesmo – meticulosa, presa a detalhes, pormenores, ponto e vírgulas.
Quando estavam juntos, Olivia observava em Cícero coisas que foram deixando a convivência insuportável. A maneira como ele pegava a xícara - o mindinho formando um ângulo de 45 graus com a asa. A maneira como ele lavava a louça – os pratos antes dos copos. As camisas brancas misturadas às camisas coloridas. Ela odiava isso tudo.
Questionava-se como poderia ter casado com ele. Não o teria feito se soubesse dessas pequenas – grandes coisas. Casou com um homem que não conhecia.
Começou a ficar com medo dele. Apavorada. “Do que ele seria capaz?. Alguém que gosta de feijão gelado é capaz de qualquer coisa”, pensava.
Um dia, quando Olívia chegou em casa, encontrou Cícero preparando um molho branco com a mesma colher com a qual ela mexia os doces. Aquilo foi a gota d’água.
Olívia foi lentamente até a gaveta dos talheres, pegou a faca de cortar carne, chamou a atenção do Cícero, e deu o primeiro golpe, certeiro, no mindinho. “Agora você não levanta mais esse maldito”. Depois foi nas mãos. “Onde já se viu usar colher de mexer doces pra mexer molhos salgados?”. A terceira foi num dos olhos. “Já que você não consegue diferenciar o branco das outras cores, talvez não precise de dois”.
Cícero – desesperado – perguntou a Olívia a razão de toda aquela fúria. Ela disse que ele era um louco, e que ela tinha medo do que ele poderia fazer com ela. Aqueles não eram hábitos de pessoas normais.
Ele disse que a amava. E ela disse “Vá embora, Cícero, aproveite que você ainda tem os pés”.
E assim acabou o único casamento de Olívia. Com três facadas, em pontos estrategicamente escolhidos. Ela era assim mesmo – meticulosa, presa a detalhes, pormenores, ponto e vírgulas.

Sobremesa: "A gente sempre destrói aquilo que mais ama/ em campo aberto ou em uma emboscada/ alguns com a leveza do carinho/ outros com a dureza da palavra/ os covardes destroem com um beijo/ os valentes com uma espada". (Oscar Wilde)

28 de outubro de 2004

O pior dos atrasos
Raquel Medeiros

Cheguei tarde. Sei que cheguei. Não uso relógio. Não tenho um. Passei na banca e o jornaleiro só me disse que era tarde.
Eu devia saber. Sempre cheguei atrasada. Na aula, no trabalho, no médico, no jantar. E na tua cama não ia ser diferente.
Quando entrei no teu quarto, já tinhas vivido, amado e dormido. Lençóis amassados, com um cheiro que se misturava ao seu, mas não era o meu.
E o que faço agora? Me deprimo?
Sei que a partir de hoje não me reprimo mais. Não engulo mais o choro, não seguro a risada, não guardo mais o beijo. Que é pra não chegar tarde de novo... Que é pra não acabar antes do começo. Que é pra o fim fazer a sua parte quando realmente for o fim, quando meu amor já estiver gasto.

Sobremesa: "Estou sozinho que nem esse gato/ e muito mais sozinho ainda porque eu sei disso/ e ele não". (Julio Cortázar)

27 de outubro de 2004


O que eu adoro em ti é essa timidez que não cansa,
e teu sorriso - o mais bonito que já vi.

* Esse é Thiago Leal, na foto, com 2 anos... Hoje ele tem um pouco mais que isso, mas não perdeu esse jeito tímido... nem a doçura (mesmo negada)... Amo muito esse menino... =****************

Ao verde dos teus olhos e ao azul dos teus sonhos
Raquel Medeiros

A gente passa a vida inteira
Tentando encontrar a semelhança
Entre o adulto que perdeu a graça da brincadeira
E a criança que tinha tanta esperança.

Entre o adulto que na correria
Perdeu o movimento da dança
E não achou parceria
Para os sonhos de infância.

Mas não se afobe
Que um dia a gente acha
E tenha cuidado pra que teu adulto não afogue
A criança que deixa a gente mais leve
E torna a vida mais vasta.

Sobremesa: "Pra você faço uma prece/ pra que a dança nunca seja solitária/ pra que depois da tempestade venha sempre a bonança/ pra que a dor nunca seja autoritária/ e pra que alma seja sempre de criança" (Raquel Medeiros)

21 de outubro de 2004

Just one
Raquel Medeiros

Catarina viu Venâncio na rua. Dois anos desde a última vez, no dia em que terminaram. Ela estava no ônibus, com seu inseparável discman. Ele, andando na calçada. Usava os mesmos óculos escuros, o mesmo jeito de andar de quem está com medo que lhe dirijam a palavra. A mesma cabeça escondida entre os ombros.
Ela lembrou de quando estavam juntos, e ele falava de outros mundos, e coisas que ela sequer imaginava que existissem. Ela adorava. E acreditava. E queria viajar mais.
Ela ouvia o som da música dele mesmo na ausência. Ouvia a sua voz mesmo que ele não falasse. Ouvia o seu choro mesmo quando ele sorria. Ela adorava. E acreditava. E queria ouvir mais.
Ele dizia que eles eram inatingíveis, imensuráveis. Ela adorava. E acreditava. E queria ser mais.
Mas de repente eles já não viajavam, não se ouviam, nem eram nada juntos. Ela queria ir pra Barcelona e ele pra São Petersburgo; ele queria ouvir Wagner, e ela, Lou Reed; ela queria não ter medida, e ele queria um corpo menor pois a alma estava perdida.
Sentiu uma certa saudade de quando ouviam Bowie cantar “we can be heroes”, e hoje, no discman de Catarina, Bowie sempre repete “just one day”. Just one.

Sobremesa: "Ai daqueles que se amaram sem nenhuma briga/ aqueles que deixaram que a mágoa nova virasse a chaga antiga/ ai daqueles que se amaram sem saber que amar é pão feito em casa/ e que a pedra só não voa porque não quer/ não porque não tem asa". (Paulo Leminski)

20 de outubro de 2004

Lorena e sua sagrada vocação de faminta
Raquel Medeiros

Viu o corpo dele na fotografia
Parecia tão leve...
Ela tinha inveja mesmo era dos traços
Que não saiam da pele dele...

Através da foto – o espionava e o absorvia
Era vontade de sorver seu beijo
Era vontade de que passasse o dia
E que a noite viesse para efetivar o desejo.

Lembrava do quanto é bom quando ele está por perto
De quando brincam de ficar mudos...
O resto do mundo vira deserto
E nos olhos dele esquece tudo...

Queria livrar-se da poesia insuficiente
Que só fazia ausência
Queria que a poesia fosse eficiente
E construísse a sua presença.

Pedia repouso para as saudades
E dela, tinha dó
Pois sabia, que mesmo contra sua vontade
Não a deixava só.

Pedia compaixão
Que ele não lhe faltasse por tanto tempo...
Que dentro dela não havia um relógio; e sim um coração
E que cansava tê-lo só em pensamento.

Sobremesa: "Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida." (Clarice Lispector)

19 de outubro de 2004

"Bate outra vez com esperanças o meu coração"... Sim, as rimas estão de volta. =)

Vivo num morro... vivo, não morro
Raquel Medeiros

Morava num barraco rosa
Era uma tentativa de trazer a alegria
Era uma tentativa de trazer poesia
Pra sua vida cheia de prosa.

Seu vizinho era um velho sambista
Que dizia que “as rosas não falam”
Pois no jardim do artista
O perfume da amada, as rosas roubaram.

Januária tinha nome de canção
Aquela pra quem o sol desponta
Pra quem o sol aponta
Uma graça da qual nem tinha noção

Mas ao contrário da Carolina
Januária não esperava na janela
Sabia que pra se encontrar
Precisava ir além da esquina
Sabia que ir além tornava a vida mais bela.

Sobremesa: "Toda a gente homenageia/ Januária na janela/ até o mar faz maré cheia/ pra chegar mais perto dela". (Chico Buarque)

18 de outubro de 2004


..."olhos são mais dados a segredos". (Paulo Leminski)

Nada aqui é meu, com exceção da sobremesa e do sinal... o desenho é de Rafael Queiroz... a legenda é do Paulo Leminski... o prato principal é de Julio Cortázar...

"Me olhas, de perto me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam entre si, sobrepõem-se e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E, se nos mordemos, a dor é doce; e, se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te sinto tremular contra mim, como uma lua na água..."

Sobremesa: "E nesses olhares infinitos/ nessas reticências falantes/ ele mergulhou dentro dela, e tirou uma grande âncora/ fincada num dos abismos dos amores de antes". (Raquel Medeiros)

13 de outubro de 2004

A pedido de João, uma sobremesa doce... porque já chega o ácido do limão. =)

À falta de melhor nome
Raquel Medeiros

Às vezes ela ficava assim mesmo, sem freios, sem medida. Febril, delirava e transpirava vontade. Bastava um olhar, um leve morder de lábios, e lá estava ela - hipnotizada, fora de si; dentro do outro.
Os contornos; a falta de adornos. Cada centímetro de pele era uma descoberta - a cor, a textura, os pêlos. Tocava, beijava e contemplava cada pedacinho, como se quisesse gravá-los na mente, para as horas de fuga, nas noites de insônia. Horas de fuga?! Para ela, eram horas de encontro. De querer ser um só...
Júlia tentava fugir da passiva rotina que a esmagava, lembrando dos beijos e dos abraços. Da saliva falando ao ouvido. Das respirações confundidas. De ver seus olhos nos dele. Tantas e tantas noites tentando recordá-lo - olhos, boca, pele, sorriso, costas, nuca, cheiro e gosto. E quando, raramente, conseguia fazê-lo, ficava frustrada de não ter o toque. Ela sempre soube que pensar em feijoada não matava a fome. Sabia também que quando a gente sente o cheiro da comida, a boca saliva. A fome aumenta e fomenta o desejo.
Dieta severa de segunda à sexta. E a esperança de ter um banquete no fim-de-semana fazia com que ela não esmorecesse, não morresse de fome. Não tinha medo de vê-lo e sorvê-lo até a última gota. Não tinha medo de uma possível indigestão. O que a amedrontava era a solidão. Era a possibilidade de não tê-lo.

Sobremesa: "Põe a roupa de festa/ que hoje vamos dançar/ pois tudo o que nos resta/ são as risadas que a gente dá/ são as mágoas que a gente consegue findar/ não esqueça nunca, querida/ por mais danças solitárias/ que tenhas tido na vida/ a partir de hoje/ me tens sempre como par". (Raquel Medeiros)

11 de outubro de 2004


É proibido estacionar qualquer cor que não seja cinza

*A foto é de Gustavo Soares (não tenho certeza se ele assina assim). Valeu Guguinha =*******
www.fotolog.net/hum_rum

Colours
Raquel Medeiros

O dia cinza como ele só. Não estava frio. Estava cinza. Ponto. E eu querendo um pouco de cor. Uma que fosse, mesmo que fosse num tom bem devagarinho.
Choveu e eu fiquei esperando o arco-íris, pra ir lá e roubar um vermelho, um verde, ou um azul. Qualquer cor na verdade, contanto que não fosse esse cinza...
Eis que o bendito aparece. Andei. Andei muito. E quando já estou bem perto, vem a chuva novamente e desfaz o arco-íris. “Não podia esperar um pouquinho não?”. Eu nem queria o tal pote de ouro, não precisava. Queria só um pouco de cor.
Esperei a chuva passar lá mesmo, de pé. Água. Frio. Resisti. Muita água. Tanto frio... Desisti. Voltei pra casa cinza como o dia. E pior, peguei uma pneumonia, que me deixou ainda mais sem cor...

Sobremesa: "Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..." (Clarice Lispector)

8 de outubro de 2004

O Mágico de OZ e o nosso eterno lamento
Raquel Medeiros

Como dói essa ausência!
Essa eterna saudade que parece não cessar
Porém pior é o homem de lata
Que não tem coração para amar.

Como dói a compunção!
Por ter feito o que não devia fazer
Porém pior é o leão
Que não tem coragem de boas ações cometer.

Como doem esses meus calos!
Essas feridas que teimam em não cicatrizar
Porém pior é o espantalho
Que não tem cérebro que mande o prazer chegar.

Tantas lamúrias que chego a recordar
Que o espantalho, o leão e o homem de lata
Indo pedir ao Mágico o que lhes fazia falta
Descobrem que talvez não tivessem tanto o que reclamar.

E penso que pior que ser como o espantalho, o leão
E o homem de lata
É ter cérebro, coragem e coração
E ainda achar que a vida é ingrata.

Sobremesa: "A gente pede/ faz prece/ no copo d'água, a turbulência parece tempestade/ a gente busca um ideal de felicidade/ amor - dor + liberdade - responsabilidade + dinheiro - dívida + prazer - sofrer / e quando falta uma pitada de sal na comida/ tudo parece pela metade/ e a gente já não vê mais sentido na lida/ a gente já não vê mais graça em viver". (Raquel Medeiros)

6 de outubro de 2004

Insônia
Raquel Medeiros

O mal que me desanima
Devagarinho assim
Quisera fosse o Muro de Berlim
E não a Muralha da China.

À noite passada me visitou
Como alguém que tivesse morrido
E que não quer ser esquecido
Veio e ficou.

Se alastra como uma peste
Que remédio nenhum acaba
Às vezes parece um teste
Pra ver se meu corpo desaba.

Como teimosa eu sou!
Admito que às vezes fico cansada
Mas o prazer de me ver derrotada
Ah, este eu não lhe dou!

Sobremesa: "O olho acessa mas não recorda/ a mente se esforça tentando lembrar/ a insônia não cessa/ e a conversa dá corda/ pra coisas que o corpo insiste em desejar". (Raquel Medeiros)

* Valeu pela ajuda, Li... Por todas elas... =)

4 de outubro de 2004

Gênero predileto
Raquel Medeiros

E você pergunta meu tipo de filme predileto
Gosto de qualquer gênero, drama ou ação
Desde que o mocinho nem sempre seja reto
Que haja aqui e ali uma bifurcação.

E que no final haja um beijo ou uma morte
Pra que eu saiba que algo vai mudar
E que a música triste só toque
Se for pra me fazer chorar.

Que a mocinha goste de orquídeas ou girassóis
E que o mocinho até saber disso, lhe traga sempre rosas
Que é pra eu saber que as horas penosas
Um dia acabam desatando os nós.

Sobremesa: "Não me importo se a mocinha termina bem/ desde que ela seja humana/ e que dependendo da circuntância/ possa cometer um assalto/ ou jogar tudo para o alto/ que ela tenha alguma ferida/ que seja pervertida/ que tenha algo triste/ porque ser humano sem isso não existe/ a dor e o amor vêm pra todo mundo/ é a condição humana que insiste". (Raquel Medeiros)

30 de setembro de 2004


Para o bem das águas e das almas, o sol se põe e o poeta se expõe.

*A foto é do João Faissal. Valeu, João. =***

O poema
Raquel Medeiros

O poema é como o sol se pondo
Compondo um cenário de consoantes e vogais
É a alma expondo
Suas alegrias e seus ais.

O poema é como uma ferida exposta
Que nem todo mundo quer ver
Que nem todo mundo gosta
Mas é só o que o poeta sabe fazer.

O poema é como um mar de letras
Que assim como as ondas - vem e vão
É um troço que sai da cabeça
Com o objetivo de atingir o coração.

Mas a intenção aqui não é aprisionar o tema
É só uma linha para onde o verso aponta
Pois pra explicar o poema
Não há rima que dê conta...

Sobremesa: "O poema gosta das reticências/ não quer ponto final/ porque ponto final pode ser morte/ e o poema é imortal". (Raquel Medeiros)
Texto antigo, porque a inspiração não tem vindo me visitar esses dias... =)

Espera
Raquel Medeiros

Ela só queria que ele aparecesse. Não queria um beijo ardente. Nem pedido de casamento. Nem um casal de filhos. Nem casa de praia em Majorca. Só queria que ele aparecesse. Afinal de contas, havia colocado roupa nova. Sapato alto. Esmalte e batom vermelhos. Seria muita desfeita...
Sentada num bar, sozinha. Pediu uma cerveja. Pediu um cigarro ao rapaz na mesa do lado. Nem fumava, mas ajudava a passar o tempo. “Garçom, outra cerveja, por favor!”. E assim ela ficou durante algumas horas. Pedindo cerveja ao garçom; cigarro ao rapaz da mesa ao lado.
Ele não veio. Ela já estava sem os sapatos. A roupa nova manchada de cerveja. Batom borrado. Unhas vermelhas ruídas.
Voltou pra casa querendo quebrar o relógio. Queimar o calendário. Era seu aniversário.
Na manhã seguinte, uma ressaca das grandes. Decidiu comprar um jornal, “sempre tem alguém que teve uma noite pior que a sua”. Foi até a banca, comprou o jornal e uma carteira de cigarros. O senhor da banca disse “moça, cigarro mata”. “Não” – disse ela - “o que mata é esperar”.

Sobremesa: "Meu coração não se cansa/ de ter esperança/ de um dia ter tudo o que quer/ meu coração de criança/ não é só lembrança de um vulto feliz de mulher". (Caetano Veloso)

27 de setembro de 2004

Salve Bresson e suas fotografias que ilustram cozinhas
Raquel Medeiros

E como quase tudo na vida, a gente sempre busca um sentido pra as coisas que nos acontecem; pra as coisas que gostamos; pra as que não gostamos...
E não precisa ser um senhor acontecimento... uma catástrofe... ganhar na loteria...
Pode ser qualquer coisa – um ônibus perdido, um filme, a falta de luz numa noite de domingo...
Dia desses me peguei pensando naquela famosa fotografia do Bresson, a do menininho andando na rua Mouffetard, segurando umas garrafas de vinho. E, ao contrário do que geralmente leio sobre ela – que tem a beleza da infância “capturada” – sempre me deu uma certa angústia contemplá-la... um nó na garganta...
Cartier-Bresson era um fotógrafo fantástico, mas ao contrário do que muitos pensam, ele não gostava de falar sobre fotografia. Achava que não era essa grande arte da qual todos falam; não era assunto pra homens de bem discutirem. Também não gostava de ver fotografias; nem suas nem dos outros. E o lugar de “destaque” de seus trabalhos era entre o freezer e o fogão; ao lado do espelho do banheiro...
E por que a gente se comove tanto com um trabalho que, na casa do próprio realizador, tinha tanta função e destaque quanto um ímã de geladeira?? Talvez por isso mesmo... pela falta de deslumbramento de Bresson, por parecer tão comum e tão natural ...
Assim é o verdadeiro poeta. Escreve porque se angustia, porque dói, porque ri; porque chora... não é porque acha bonito fazer rima... nem porque é sublime fazer poesia... é porque é o que ele sabe fazer pra manifestar o que há dentro, o que vê lá fora... e às vezes ele acha feio... acha pequeno... acha insuficiente... e coloca numa gaveta, num guardanapo de bar, num papel sujo...
E por que a gente se emociona?
Porque o que importa não é o que o fotógrafo aprisiona na fotografia; nem o que o poeta aprisiona no papel... O que importa é o que está livre, o que está em você e em mim... e que nenhuma razão explica, encerra.


Sobremesa: "E se não faz sentido/ e você precisa de um/ então finge que tem/ ou aprende que nem sempre a razão vem/ E se não tem um fim/ e você precisa de um / então finge que tem/ ou aprende que às vezes o fim não convém”. (Raquel Medeiros)

24 de setembro de 2004

Volte sempre
Raquel Medeiros

Loja de perfumes. Vidros de todos os tamanhos e formas, e cores. Prateleiras impecáveis de tão limpas. Nina trabalhava atrás do balcão. Única vendedora da loja. De lá, ela podia ver e analisar cada cliente que entrava. Esse era o seu passatempo predileto.

“ Primeira cliente: Mulher branca, estatura mediana, aparenta uns 30 anos. Nem feia, nem bonita. Precisa de um pouco mais de peito. Não deve Ter tido muitos namorados.” – Bom dia posso ajudar? ...
“Segunda cliente: baixinha, cabelos pretos. Jeito franzino. Tem um nariz horrível, de resto é até bonitinha." – Volte sempre!
“Terceiro cliente: Homem. 45 anos. Nem mais, nem menos. Deve ter uma namorada que tem idade pra ser sua filha. Acho que vou oferecer a linha infantil, só pra ver a cara dele." – Boa tarde, o que o senhor deseja?

Nina quase fechando a loja. Já estava fazendo o saldo do dia. Vinte e seis clientes, ao todo. Uma senhora entra. Era então a vigésima sétima cliente do dia. Nina detestava números ímpares. Ainda mais aquele... A senhora tinha cerca de 60 anos, magra. Uma aristocrata. Um exemplar perfeito dessas mulheres que escondem suas frustrações atrás de um belo colar de esmeraldas. Como ela podia usar uma roupa daquelas?? Onde ela estava nos últimos 20 anos?” – Boa tarde, posso ajudar?.
A senhora pediu um perfume. Pediu outro. Pediu um sabonete. E foi pedindo mais coisas, experimentando mais perfumes. Tinha um jeito antipático, autoritário. Olhava Nina de cima pra baixo. Decidiu, enfim o que levaria.

Acidentalmente, quando Nina foi pegar o perfume pra fazer a nota, o vidro caiu no chão. Foi vidro e perfume pra todo lado. A cliente começou a gritar com ela. Insultá-la.
Nina abaixou pra recolher os pedaços de vidro. Aquela mulher não parava de falar. Nina virou o rosto. Dava pra ver os pés e parte da pantourrilha da mulher. Nina pensava “Como alguém pode usar um sapato desses?. E essas pernas... ela devia ter comprado um hidratante ao invés de um perfume...”
Os pensamentos tomavam conta de Nina. A voz da senhora foi ficando distante, distante. Até que Nina se levantou, pegou o gargalo do vidro e enfiou no pescoço da cliente, bem fundo e segurou lá dentro.
Depois limpou o sangue no rosto. Abaixou e continuou a limpar os restos de vidro. Tranquilamente.

Sobremesa: "Tudo bonito/ tudo limpo/ pode entrar que eu vendo/ mas não me irrite/ não me menospreze/ pois dependendo da dose/ até perfume pode ser veneno". (Raquel Medeiros)

23 de setembro de 2004

Sutil Traço
Raquel Medeiros

Nessas ruas me desfaço
No teu endereço permaneço
No tua boca me esqueço
Na tuas mãos me refaço.

Bom é andar de pés descalços
E desfazer os cadarços
Já é um bom começo
Não seja cruel; nem seja falso
Pois se me falta o abraço
Eu desapareço.

Sobremesa: "Não há borracha que apague/ não há papel pra rasgar/ É um traço/ é um laço/Não há entrega ao cansaço/ Preenche o espaço/ aponta o lápis/ e continua a desenhar". (Raquel Medeiros)

22 de setembro de 2004

Domênico Silva
Raquel Medeiros

Escrevo diante da janela aberta. Os tímidos raios de sol das primeiras horas do dia criam um leve contraste com o verde-lodo do prédio. Apartamentos apertados e fedorentos. Gritos, gemidos e garrafas quebradas são a trilha sonora da madrugada. Por isso só consigo escrever a essa hora do dia. Hora em que a maioria dorme. Alguns tranquilamente; outros com o "couro quente".
Moro sozinho. De vez em quando minha mãe me visita. Sabe como é, filho único... Reclama da minha bagunça e do meu cigarro; da minha barba mal-feita e do queijo mofado. Reclama e joga na minha cara os arranhões nos seus joelhos, frutos de suas orações, de centenas de contas de rosário, repetidas fervorosamente ao longo desses meus quase trinta anos. Ela era uma vítima. Sempre fôra. Primeiro de Deus; depois do meu pai. E agora do único filho.
Eu sempre quis escrever sobre outras coisas. Coisas belas, como a harmonia do canto dos pássaros no verão, a sensualidade discreta das escolares, amores bem-sucedidos... mas o que me era servido como inspiração eram vizinhos barulhentos e asquerosos, e uma mãe que parecia carregar consigo as chagas de Cristo.
Eu até conseguia enxergar meu único livro acabado, empoeirado e abandonado, na prateleira de uma livraria vagabunda. Livro curto, dividido em três capítulos.
A Patética Vida de Domênico Silva. Primeiro capítulo: Filho céptico de mãe devota. Segundo capítulo: Como conseguir tirar inspiração do lodo. Terceiro capítulo: Aqui jaz Domênico Silva, carrasco da própria mãe.

Sobremesa: "Meu pai sempre me dizia/ meu filho tome cuidado/ quando eu penso no futuro/ não esqueço o meu passado". (Paulinho da Viola)

21 de setembro de 2004

Hoje tem visita. Prato principal feito a duas mãos*. Alex e Elisa. Eles conseguiram traduzir muito do que há em mim, ultimamente. E "somos lúdicos disfarçados", não é Li?! Às vezes nem tão disfarçados assim... =)
Bom, e chega de conversa que o que importa aqui é a poesia. Nas palavras... No amor... Na vida...
* "Mãos" aqui é pura metonímia...

Bomba
Elisa e Alex

Às vezes meu coração bate mais que deveria
E me bate. Judia.
Mas mesmo assim é muito pouco, perto do que ele queria.

A ferro, fogo e poesia bate, queima, dissocia
Pois cada letra que ele escreve
Tem o único fim de fazer o meu músculo cardíaco explodir,
A razão se partir, pra fazer de carne o que antes era só fantasia.

Arde, rasga, alivia, tira o véu de quem dormia
Mostra em língua o que diria
Desnuda o que se encobria,
Tira do meio da penumbra os traços de quem se extasia.

Mas afinal, para que ter um coração batendo certo, comportado, calmo, sem taquicardia?

Sobremesa: “Prato principal e sobremesa/ Sirva-se/ o coração está na mesa/ Mas saboreie com atenção / E não deixe que ele morra no prato/ ele quer desejo e amor/ de fato/ e se você não estiver apto/ trate de procurar outra refeição”. (Raquel Medeiros)

20 de setembro de 2004

Noite insone
Raquel Medeiros

Como é difícil escrever uma carta...
Mentiras aqui eu posso dizer
E isso pode fazer sentido
Podem parecer verdades pra você
Mas atrás de inúteis armas
A alma não quer se esconder...
Fico aqui, olhando a margem
E tentando, através destas palavras
Contruir uma imagem
Que expresse o que eu não consigo dizer...
Daqui tenho a janela aberta
E vejo que parou de chover
As pessoas começam a sair de suas casas
Ainda temerosas com a água
Mas com muita vontade de viver
E só eu fico a escrever cartas
Pra quem nunca vai responder...
Mas um dia eu crio asas
E essa maldita dúvida há de morrer!

Sobremesa: "O que será que me dá/ que me queima por dentro será que me dá/ que me perturba o sono será que me dá/ que todos os ardores me vem atiçar/ que todos os tremores me vem agitar/ e todos os suores me vem encharcar/ e todos os meus nervos estão a rogar/ e todos os meus órgãos estão a clamar". (Chico Buarque)


18 de setembro de 2004

Hoje é aniversário de Guga, menino lindo!!! Por dentro, por fora. Atrás de lentes de óculos ou de câmeras fotográficas. Fez uma foto linda, que provocou esse texto e sobremesa. A foto era pra ser a entrada. Parceria...primeira de muitas... Mas acontece que o programa não ajudou muito... E já que é assim, deixo o meu pedido de desculpas a Guga, o endereço do fotolog dele - o texto junto com a foto estão lá - www.fotolog.net/hum_rum . Obrigada pelas fotos. Os abraços eu vou dar pessoalmente. =)

Parceria
Raquel Medeiros

Adorávamos aquele lago
Eu e você
Íamos com nossas bicicletas
Nadávamos
Você adorava dar aqueles mergulhos longos
Que tanto me preocupavam.

Um dia você mergulhou e demorou
Deixou-me preocupado por horas
Dias e meses
Deixou-me preocupado até agora
Depois de anos esperando, você não voltou.

E todos os domingos de manhã
Eu volto naquele lago
Vou de carro porque as pernas
Já não aguentam pedalar
Mas levo sempre sua bicicleta
No caso de você voltar.

Sobremesa: "Fazer tudo do mesmo jeito/ e quando pega-se o jeito/ as coisas podem ficar banais/ mas quando a bicicleta do lado fica vazia/ nada mais é igual/ nem o lago/ nem a poesia/ e certas coisas perdem a graça/ certos sabores não voltam mais". (Raquel Medeiros)

17 de setembro de 2004

I've got you under my skin
Raquel Medeiros

Acordado do sono
Diluído no meu pranto
Espalhado no meu sonho

Estacionado no meu colo
Protegido de qualquer medo
Dilatado no meu olho

Diluído na minha boca
Algemado ao meu desejo
Colado à minha nuca

Aquecido como o dia
Hipnotizado com o meu canto
Apaixonado como a poesia.

Sobremesa: "Encerre tudo que não te revele/ a palavra sugere/ percebe e descreve tudo o que pede a pele". (Raquel Medeiros)

16 de setembro de 2004

Na mesa
Raquel Medeiros

Sentamos à mesa
Eu e você
Casamento fracassado
Cachorro traumatizado
Pedimos divisão de bens na entrada
E no prato principal
Mágoas e marcas
Deixamos o pedido de desculpas
Pra sobremesa
Mas já era tarde
Já estávamos tão cheios
Que só levantamos da mesa.
"Adeus Antônio"
"Adeus Tereza".

Sobremesa: "Às vezes é melhor pedir sopa/ dispensar as facas/ Basta a navalha da língua/ basta a dor/ Difícil é admitir que tudo tem fim/ o jantar/ e o amor". (Raquel Medeiros)

15 de setembro de 2004

Dúvida sádica
Raquel Medeiros

A dúvida me tirou a força
Colocou-me na forca
E a alma fraca
Não consegue fugir.

Dilema que me trava a garganta
Cala a minha voz de aflição
É a dor de dar resposta à interrogação que se levanta
É a dor de escolher entre o sim e o não.

Incerteza que esfria a noite alta
E quase me queima com a chegada do dia
O sono, é verdade, faz falta
Mas o que me mata é essa apatia.

É a certeza de que Deus é uma farsa
E que meu destino não há outro quem faça
A não ser eu mesma, covarde carcaça
Que se amedronta e se amordaça
Mas sabe que não adianta fazer pirraça
Pois a dúvida instiste; não passa
E de mim não tem dó
Ao contrário, acha graça.

Sobremesa: "Será que a rainha consegue dormir/ agir com desdém/ quando tem que decidir se corta ou não a cabeça de alguém?!" (Raquel Medeiros)

14 de setembro de 2004

Menino ou Menina?
Raquel Medeiros

Suzana estava grávida. Três meses, julgava. Cólicas, enjôos, desejos. Tudo o que mulheres nesse estado costumam ter. Ou dizem que têm. Suzana se recusava a ir ao médico. Nada de pré-natal, nada de ultra-sonografia. Não queria saber o sexo do bebê antes do parto.
As pessoas na rua achavam que seriam gêmeos. Era uma barriga imensa. Quem sabe não seriam três? Ou até quatro?! Era realmente uma senhora barriga!
Rompe a bolsa. Suzana corre para o hospital. Não pode ser parto normal. O médico aplica a anestesia. Suzana dorme.
Horas depois, Suzana acorda. Muitas pessoas em volta. Nenhuma sorria. “O que houve? Onde está o meu filho? Ou será filha? Ele não está com fome?”. A enfermeira aproxima-se e diz “Senhora, me desculpe, mas não há filho algum. Nunca houve. A senhora é estéril".

Sobremesa: "Gravidez psicológica/ amor psicológico/ fome psicológica/ o estômago obedece ao cérebro/ mas não se importa se este está com a razão/ o estômago só faz o papel dele/ pede/ e se não lhes dão o que comer, tanto faz se é psicológico ou não". (Raquel Medeiros)

13 de setembro de 2004

Palavras que tiram o sono; desenhos que devolvem o sonho
Raquel Medeiros

Veridiana era escritora. Pediu demissão da revista onde trabalhava. Queriam que ela escrevesse matérias sobre mulheres que não conseguiam chegar ao orgasmo. Um tipo de guia. Mas ela nunca tinha tido um, como poderia aconselhar outras mulheres?
O que Veridiana queria era poesia. Poesia. No trabalho, na vida. Tinha alma de poeta. Alma que não queria ter orgasmos em três lições. Queria ter orgasmos em versos, em rimas.
Um dia rabiscou uma de suas poesias na parede de uma obra abandonada. Era muito sentimento pra ficar preso dentro de um papel. Era muito sentimento pra ficar preso dentro dela.
Outro dia passou em frente a obra e viu um desenho feito ao lado do poema. Achou coincidência. "Outra alma que precisa de mais espaço que o corpo oferece". E escreveu mais um texto. No outro dia, mais um desenho. Veridiana se deu conta que talvez aquilo fosse intencional. Os traços, Os tons de cinza. Um pedido de socorro de um solitário. Uma declaração de amor. E desta vez Veridiana não escreveu poema. Escreveu um convite, um apelo.
No dia seguinte acordou mais cedo, esperava encontrá-lo lá, talvez ainda desenhando. Para surpresa de Veridiana não havia desenhos e mesmo seus poemas foram cobertos por cartazes de políticos. Ficou desesperada.
Voltou pra casa e desatou a escrever poesias sobre os desencontros, sobre sua má sorte, sobre a falta de amor. Enclausurou-se. Enlouqueceu. Vizinhos do prédio onde morava, resovelram avisar aos familiares para que estes tomassem uma providência. Nenhuma notícia. Os próprios vizinhos resolveram interná-la num sanatório.
Semanas depois, um novo inquilino achou os escritos de Veridiana, e resolveu publicá-los. Textos viscerais, cheios de sangue e de lágrimas. Cheios de desilusão e dor. Resolveu ir no sanatório conhecer a autora.
Chegando lá, disse "Veridiana publiquei seus escritos, coisas lindas, me emocionaram muito. Espero que gostes. Até chamei um amigo para ilustrar o livro. Vou trazê-lo aqui, pra você conhecê-lo".
Veridiana, que até então não tinha dito palavra alguma, abriu a boca e disse "tarde demais...tarde demais...".

Sobremesa: "A poesia sente-se atraída por dores e desamores/ mas o pobre poeta só busca o amor e seus sabores". (Raquel Medeiros)


11 de setembro de 2004

Rotina
Raquel Medeiros

Pedro e Joana estavam casados há pouco mais de um ano, porém já não viviam mais a tal "lua-de-mel". Há muito tempo não se procuravam. Viam TV até o sono chegar e este não tardava.
Numa noite de verão, faltou luz. Pára o ar-condicionado. Cala a televisão. O calor impossibilita o sono. Silêncio. Nada pra fazer. Pedro procura a cintura de Joana e lhe beija a nuca. Joana finge tentar dormir, então Pedro lhe toca os seios, por cima da fina camisola. Joana volta seu corpo para Pedro e lhe beija a boca como há tempos não fazia. Pedro tira a camisola de Joana e lhe beija avidamente o pescoço. Todos os sinais de excitação latentes. Volta a luz.
- Você engordou? - Perguntou Pedro.
Joana veste a camisola.
- Não, emagreci 2 quilos.
- Se importa se eu mudar o canal?
- Não. Estou com sono. Vou dormir.
Silêncio.
- Se importa de apagar a luz, Pedro?
- Não.
- Obrigada. Boa noite.
- Boa noite.

Sobremesa: "Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito/ exijo respeito, não sou mais um sonhador/ chego a mudar de calçada quando aparece uma flor/ e dou risada do grande amor". (Chico Buarque)

8 de setembro de 2004

Desilusão
Raquel Medeiros

Esquece essa história de fidelidade
Que isso só aumentou a tentação
Isso só me tirou a liberdade.

Esquece essa história de desejo
Que isso só trouxe decepção
Isso só me tirou o sabor do beijo.

Esquece essa história de amor
Que isso matou a razão
Isso só me causou mais dor.

Sobremesa: “Acontece que o meu coração ficou frio/ e o nosso ninho de amor está vazio/se eu ainda pudesse fingir que te amo/ ah, se eu pudesse/ mas não quero, não devo fazê-lo/ isso não acontece”. (Cartola)

3 de setembro de 2004

Hoje é dia de prosa. É dia de homenagear os amigos também. Amanhã é aniversário do confeiteiro, e essa foi a nossa primeira parceria. Feliz aniversário, Tiago! =*******

Assim nasce o fim
Raquel Medeiros

Eu era uma criança triste. Solitário por opção. Inventava histórias e amigos – achava-os melhores que os reais. Meu pai, professor numa escola de tiro. Sentia por ele um misto de admiração e medo. Nos falávamos pouco. Mas ele sempre dizia que um dia eu seria um professor tão bom quanto ele. E eu queria ser; ou achava que queria. Aos nove anos, ganhei minha primeira arma, de brinquedo.
Na escola, tirava notas boas, mas não gostava das aulas. Ficava na sala, atirando nos colegas. Era divertido: alguém dizia uma bobagem, e eu estourava a sua cabeça. De mentira, por falta de opção.
Um dia, o professor me tomou a arma e me mandou pra casa. Tive medo de ligar para o meu pai e dizer-lhe o que havia acontecido. Seria uma surra daquelas. Física e moral. Saí da escola e não consegui achar o caminho de casa. Isso acontece quando se é muito disperso, e não se presta atenção ao caminho.
Encontrei uma estação de metrô e lá fiz moradia. Ganhava uns trocados contando histórias às pessoas que esperavam, aos solitários, aos mendigos que também moravam lá. Algumas histórias eram realmente boas e me rendiam um bom dinheiro; outras só me traziam um riso de pena no canto da boca. Dava pra não morrer de fome. Dava pra não morrer de frio. Dava pra não morrer de solidão. Dava pra sobreviver; mas não era vida. Percebi a diferença assim.
Um dia, já quase homem de corpo – porque na alma já era um homem desde muito cedo, vi meu pai na estação. Segui-o, entrei no metrô, mas não tive coragem de chegar perto. O que eu diria? O que eu faria? Resolvi que só iria descobrir o caminho de casa, e pensaria numa maneira de ir até lá e criar coragem pra falar com o velho.
Semanas depois, pensando, pensando, decidi que era a hora de encará-lo.
Parei na calçada de casa. Não havia mudado nada. A grama precisava de um corte, é verdade, mas o resto continuava igual. Senti como se estivesse chegando da escola, no dia da expulsão. Fiquei com medo da surra adiada. Fiquei com medo de não saber o que falar. Fiquei com medo do meu pai.
Entrei – meu pai não gostava de portas trancadas – sentei-me no sofá. Não tinha ninguém em casa. Resolvi fazer um café, cairia bem na hora em que estivéssemos conversando. Enquanto estava passando o café, ouço o barulho da porta. Era ele. Paralisei. Fiquei esperando que ele fosse até a cozinha e me visse. Diria “oi, sou eu, o Vicente”. Deixei cair uma maldita xícara.
Meu pai entrou na cozinha atirando. E foi assim que morri. Ele não me reconheceu. Ele nunca me conheceu. Fomos dois desconhecidos um pra o outro. Ele não matou o filho. Matou um estranho.

Sobremesa: "Não se levantem ainda / A sobremesa tá na mesa / pudim de amor / manjar de ódio / quindim de surpresa / Não esperem a torta de gentileza / tive esse trabalho todo / alguém me ajuda a tirar a mesa?". (Tiago Tenório)

1 de setembro de 2004

Hoje tem visita no prato principal. Culinária de primeira. Cozinheiro que sabe quando deve dosar cada ingrediente; ou quando precisa caprichar na pimenta.

Despedaçando
Alex Camilo

Um pedaço de carne sangrando, um pedaço de alma partindo entre os dentes de alguém.
Um pedaço de alma sangrando, um pedaço de carne partindo ante o flagelo de alguém.
Um pedaço de tempo passando, um pedaço de vida perdida entre os dedos de alguém.
Um pedaço de tempo perdido, um pedaço de vida partindo ante o julgo de alguém.
Um pedaço de dor crescendo, um pedaço de mente sucumbindo entre os dias de alguém.
Um pedaço de mente crescendo, um pedaço de amor sucumbindo ante o desejo de alguém.
Alguém sangrando, alguém partindo, alguém passando, alguém perdido, alguém crescendo, alguém sucumbindo.
Carne sucumbindo, alma crescendo, dor sangrando, amor partido, dedos perdidos, desejo passando.sem compaixão, sem Misericórdia, sem tolerância, sem volta, sem fim, sem ninguém...

Sobremesa: "Se há só um pedaço sadio/ a gente quer que o todo esteja também/ se há um pedaço doente/ a gente tem a impressão que é o todo/ que é tudo". (Raquel Medeiros)

31 de agosto de 2004

Quem é morto pelo raio não ouve o trovão
Raquel Medeiros

No jardim

Eu peço perdão
Pelos palavrões em vão
Pelo presente jogado no chão
Por não ter segurado a sua mão
Na hora do furacão.

Na sala

Eu peço perdão
Por não ter feito a correção
Nos diálogos sem emoção
Nos silêncios sem razão
Na dança sem canção.

No quarto

Eu peço perdão
Por dizer sim quando queria o não
Pela distração e indisposição
Quando tentavas atrair a minha atenção.

Na despedida

Eu peço perdão
Porque estás a sete palmos do chão
Inativo como um canhão
Indefeso à provocação
Mudo como a solidão
Morto como a inspiração.

Sobremesa: "O perdão não põe a mesa/ mas pode salvar o jantar/ o erro repete o feito/ repete o feio/ e pode ser tarde pra voltar". (Raquel Medeiros)

30 de agosto de 2004

Segunda-feira
Raquel Medeiros

Na segunda-feira é difícil pôr os sapatos
Depois dos dias de pés descalços
Depois de andar sem contar os passos
Depois dos beijos e abraços
Que criam tantos laços
Mas laços não são cadarços
Ah, malditos sapatos!

Sobremesa: "Segunda não é dia de sobremesa/ é dia de feijão com arroz/ é dia de pensar como dois, sem ser dois". (Raquel Medeiros)

27 de agosto de 2004

Viagem de ida
Raquel Medeiros

Vamos sair desse lugar
Essa casa já deu o que tinha que dar
Os tapetes estão cheios de dores
E a parede prestes a desabar.

A hora é de arrumar a mala
Colocar a comida da alma
E o cheiro que esse café exala
Porque certas coisas não podem faltar.

Põe as roupas antigas
Tão acostumadas com a pele
Leva também as palavras amigas
Ditas, quem sabe, na hora do jantar.

Mas deixa a ferida
A fúria e a vontade de ficar
Leva força e doçura na lida
Pois acredite, é preciso muita sede de vida
Pra espantar o medo de mudar.

Sobremesa: "Vamos viajar agora? / viagem de verdade / tudo planejado em cima da hora / já falei pra minha mãe que tenho idade / mesmo assim ela me lembra / leve sua escova e que Deus o tenha". (Tiago Tenório)

26 de agosto de 2004

Pretensão de poesia...rima o tempo inteiro. E na sobremesa, o mesmo confeiteiro.

Fuga
Raquel Medeiros

Corre até aquela ponte
Antes que ela desmonte
Antes que eu te desaponte
E desista de esperar.

Anda até aquele parque
Antes que o fogo se alastre
Antes que a polícia venha e lacre
E macule o nosso lugar.

Caminha até aquela praia
Antes que a barreira caia
E invada o nosso mar.

Sobe até aquele monte
Até que dê pra ver no horizonte
Um lugar pra gente se aninhar.

Sobremesa: "Eu andei escutando 'eu tenho pressa de vencer, eu tenho pressa!'/ mas pressa pra quê?/ vencer é chegar ao final, e final soa bem mal/ Vamos voltar ao começo?/ quando a gente se conheceu?!/ e aquele primeiro beijo!/ Pensando melhor... vamos nos apressar, o ônibus vai partir!/ e sem você eu não vou conseguir!". (Tiago Tenório)


25 de agosto de 2004

A alma insiste em escrever, em descrever. E a sobremesa é de um amigo. Amigo de pouco tempo contado e muito vivido.

Armadura – Arma dura
Raquel Medeiros

O corpo vai ao sol. A alma ainda tímida, até ameaça ver os primeiros raios. Pobre alma, tão medrosa, tão hesitante. Se a carne é fraca; a alma é covarde.
O grande sonho da alma é que o ano tenha apenas duas estações: outono e inverno. Impossível, já falei pra ela. Mas ela insiste: ‘no verão, eu não saio’.
Então fica aí, presa dentro deste corpo apertado, muito menor que você. Fica aí escondida do sol; escondida da gente; escondida da vida. Parece que é feita de água; tem medo de evaporar. Parece que é feita de sorvete; tem medo de derreter.
Ela é feita mesmo de sonho. Tem medo que o sol evapore seus sentimentos; derreta suas aspirações. Fica aí mesmo... pensando no que poderia ser aqui fora. Bem ou mal, você está a salvo dentro do corpo. Ou não...

Sobremesa: "Prepara-se o café / mistura-se o leite / molha-se o pão / cria-se o silêncio / ouve-se apenas o coração / não agüento mais me escutar / é sempre o mesmo discurso / dor, medo e solidão". (Tiago Tenório)

23 de agosto de 2004

Neste verão, vou mergulhar no inverno
Raquel Medeiros

Mais uma carta. Mais uma vez a tristeza, a melancolia.
Me sinto ora pisando em ovos - e tenho medo de quebrá-los; ora pisando em cacos de vidros, tentanto, em vão, fazer com que a dor física sufoque a emocional.
Faz um lindo dia de sol lá fora. Coloquei as roupas e os sapatos pra secarem. Mas a alma, esta insiste em permanecer no inverno. Estação que gosto muito - é verdade - e que alma está mergulhada há um tempo. Temo que ela morra afogada, ou mesmo não queira sair de lá. Será que pra ela é mais confortável? Movimentos mais lentos, ausência de sons externos, nada de humanos egoístas. Só peixes tranqüilos, preocupados com a sua próxima refeição.
Sabe, até que a água parece um lugar bastante agradável. No inverno as pessoas têm medo de entrar nela. E isso proporciona tempo suficiente pra se ficar sozinho, pensar sobre as coisas, com movimentos e pensamentos lentos; sem pressa de emergir.
Sabe de um coisa? Acho que vou dar um mergulho. Um profundo mergulho. Volto já. Porém minha concepção de "já" pode ser diferente da sua.

Sobremesa: "Faço longas cartas pra ninguém/ e o inverno no Leblon é quase glacial". (Inverno - Adriana Calcanhoto)

20 de agosto de 2004

Black letter day
Raquel Medeiros

Esta é um carta triste. Triste porque assim estou eu. Triste por saber que devo fazer algo, mas tenho as mãos atadas. Revejo os fatos e reparo, tal qual o pensamento do poeta inglês, Blake: "quem deseja, mas não age, gera a pestilência". Eu acrescento: fica cada dia mais triste.
A tela de um computador frio fita-me sem graça. Ele é minha ponte a quem desejo. A todo momento borro a tela com palavras buscadas a esmo. Tento fazer, ao mesmo tempo em que me acho, uma poesia singela nestas poucas linhas pra te encantar. Não consigo rimar poesia com alegria, só com melancolia. A dor é fria, fria.
Nos dias frios, melhor seria não nascer; parece que foram feitos para se amar. Para se contar rugas de expressão formadas em cada sorriso bobo a frente do espelho. Tristeza? Não, confiança num dia ensolarado que vem após a tempestade. Até prefiro o inverno ao verão, mas de vez em quando sinto necessidade de dar um banho de sol nas roupas, na alma.
Essa carta está prolixa. Temerosa e instável, como a vida. Queria conseguir organizar as idéias de maneira simples. Porque sei que, apesar da complexidade do dia, é na simplicidade que está a verdade.

Sem sobremesa.

17 de agosto de 2004

Knives out
Raquel Medeiros

Cheiro forte; cheiro de morte
Porque você, com uma faca de bom corte
Acabou com tudo.

E agora já não me resta sorte
Nem sombra de quem um dia foi forte
A poesia é finda
O poeta, mudo.

Sobremesa: "Give me a reason to love you/ give me a reason to be a woman". (Glory box - Portishead)

13 de agosto de 2004

O velho e o gato
Raquel Medeiros

Antônio, seus 87 anos, sua cadeira de balanço, seu cochilo depois do almoço. O gato sentado no seu colo, pensava na quantidade de coisas pelas quais Seu Antônio já teria passado. Viu tantas coisas serem inventadas; tantas coisas serem destruídas. Viu três dos seus nove filhos morrerem. Também perdeu um neto, o Luizinho, atropelado por um ônibus. Seu Antônio detestava ônibus - pelo Luizinho, e também porque preferia a viagem de trem.
O gato se perguntava se nas sete vidas as quais tinha direito, veria tanta coisa quanto o velho.
Seu Antônio dormia com a tranquilidade de quem cumpriu a missão aqui. Poderia morrer ali mesmo, naquela cadeira. Aliás, seria um belo fim para ele. Morrer na sua cadeira, durante o seu cochilo pós-almoço. A cadeira balançando, diminuindo o ritmo do balanço, até parar. Seria perfeito. Seria poético. E ele - o gato - ali no seu colo, presenciando tudo. O único espectador.
A pessoa da família que o gato mais gostava era o velho. Pensando bem, a sua vida não teria muita graça sem ele. O gato olhou atentamente para o velho, viu que ele ainda respirava e ficou aliviado. Desejou morrer antes de Seu Antônio. Ali mesmo, no seu colo. Na sua cadeira de balanço. No cochilo depois do almoço.

Sobremesa: "Deixo tudo assim/ não me importo em ver a idade em mim/ ouço o que convém/ eu gosto é do gasto". (O velho e o moço - Los Hermanos)

12 de agosto de 2004

Por favor, entre sem bater
Raquel Medeiros

Ele vinha da rua, da boemia, de outras camas. Ela, já cansada de outros orgasmos – dos outros. A noite tinha sido intensa, mas a visita dele ela não podia recusar.
Tudo foi sarado com um beijo – a porta batida na cara, os palavrões inflamados, os insultos à sua perna manca. Ele sabia que para ela o dinheiro não valia muita coisa; mas doses de carinho compravam quase tudo. E assim ele comprou, inclusive o amor dela.

Sobremesa: “Mas é carnaval/ não me diga mais quem é você/ amanhã tudo volta ao normal/ deixa a festa acabar/ deixa o barco correr/ deixa o dia raiar que hoje eu sou da maneira que você me quer/ o que você pedir eu lhe dou/ seja você quem for/ seja o que Deus quiser”. (Noite dos mascarados – Chico Buarque)

9 de agosto de 2004

Sem abraço na despedida
Raquel Medeiros

Broncas e brigas me tiram do sério
Faça dar certo, por favor
E traga de volta aquela música
Porque eu já estou até me acostumando
Com a sua dor.

Eu fingindo dormir
Pra não te ver arrumando as malas
Esvaziando as gavetas
E escrevendo num bilhete
As suas últimas falas.

Levantei mecânica
Como fazia quando ainda era sozinha
Tive noções de saudade
Ao ver tudo pela metade
No quarto, na sala, na cozinha.

No bilhete, "até logo"
Mas sinto que não vais voltar
E a sua tatuagem
Vai virar miragem
Quando eu te ver passar.

Sobremesa: "Adeus você/ eu hoje vou pro lado de lá/ estou levando tudo de mim/ que é pra não ter razão pra chorar/ vê se te alimenta e não pensa que eu fui por não te amar". (Adeus você - Los Hermanos)

6 de agosto de 2004

Derreta
Raquel Medeiros

Há uma fina, mas resistente camada de gelo acima de mim, dificultando minha respiração, congelando meus sentimentos. Não consigo quebrá-la. Quebrei o punho e alguns órgãos internos tentando.
Aqui embaixo está muito frio. Perdi a cor. Perdi a dor. Tudo está dormente – meus lábios, seios, braços e anseios.
E você que me julgava forte. Venha aqui e veja com seus olhos o que restou da minha solidez. Veja o estrago da sua sordidez.
Eu fiquei aqui esperando você. Veio a noite e você... nada. Veio o dia e você... nada. Eu nado, nado e nada. Nada de você.

Sobremesa: "Oh can anybody see the light/ where the morn meets the dew/ and the tide rises". (Strangers - Portishead)

3 de agosto de 2004

Versos a duas mãos*
Raquel Medeiros

Palavras batizam filhos; batizam armas
Desistem dos desafios; desistem das más ações
Riem à falsidade dos elogios
Explodem à sinceridade dos palavrões.

Tão bom brincar com elas no céu da boca
Ruim é procurar a que melhor expressa
A que melhor descreve; a que melhor se adapta.

Desejo ou vontade?
Saudade ou falta?

Que as palavras estejam afiadas
Mas não te cortem a carne
Que cada verso seja a redenção dos meus pecados
Que perdoem a má escolha das sílabas,
A má disposição
A preguiça de procurar sinônimos
E só querer jogar com as que tenho à mão.

Dê-me uma delas; a mais bonita
A que condiz com a tua vontade
"Preciso pensar - essa é difícil
Mas acho que a palavra é liberdade".

Sobremesa: La dispute - Yann Tiersen (trilha sonora de O fabuloso destino de Amélie Poulin)

* Co-autor me fez prometer que não colocaria seu nome. Pronto. Promessa cumprida.

29 de julho de 2004

O texto é antigo e a sobremesa - outra vez - um pedaço do Chico.
 
Valsa das Horas
Raquel Medeiros

O encontro
As horas
Ansiedade
Demoras
Me visto
Me dispo
As horas
Me pinto
Me borro
Demoras

Tu chegas
São horas?!
É noite
Relevo
As horas
Nos olhos
Na boca
Na pele
Não nego
Que horas!

É manhã
Vais embora
Por favor
Não choras
Não esqueças
Meu relógio
Não atrasa
Amanhã
Voltarei
Na mesma hora.

Sobremesa: "Se eu demorar uns meses convém às vezes você sofrer/ mas depois de um ano eu não vindo/ ponha roupa de domingo e pode me esquecer". (Acorda amor - Chico Buarque)

28 de julho de 2004

De um gole só
Raquel Medeiros

Põe tudo no liquidificador
Raiva, medo e dor
E segura o botão pra misturar.

Coloca na potência mais alta
Que o ar pode fazer falta
Vai ser melhor se menos tempo durar.

Quando tudo estiver bem misturado
Coloca um pouco de choro engasgado
Pra ver se fica mais fácil de passar.

Hora de beber
É difícil, mas mamãe diz que faz crescer
E a hora da sobremesa
Não se preocupe, vai chegar.

Sobremesa: "Ouça um bom conselho/ que eu lhe dou de graça/ inútil dormir que a dor não passa/ espere sentado/ ou você se cansa/ está provado, quem espera nunca alcança/ venha, meu amigo/ deixe esse regaço/ brinque com meu fogo/ venha se queimar/ faça como eu digo/ faça como eu faço/ aja duas vezes antes de pensar/ corro atrás do tempo/ vim de não sei onde/ devagar é que não se vai longe/ eu semeio o vento/ na minha cidade/ vou pra rua e bebo a tempestade". (Bom conselho - Chico Buarque)

27 de julho de 2004

Mirror
Raquel Medeiros

Voltou e olhou novamente para o espelho. Não era mais a mesma de cedo. Leu o jornal; tomou café; pôs comida para o cachorro; tomou banho. As olheiras ainda estavam lá, mas toda a sua expressão havia mudado – mais triste; ou mais cansada – não sabia dizer. No entanto, estava diferente – isso ela tinha certeza.
Saiu. Voltou para almoçar. E no espelho – outra. Nem a de cedo; nem a de antes; nem a de nunca, até ali. Ficou pensando quem seria ela no outro dia de manhã; depois do jantar; dali a algumas horas. Foi tomada por um medo terrível de si mesma. Das muitas que tinha sido. Das muitas que ainda seria.
Daquele dia em diante, ela acordava e se chamava por nomes diferentes. Mas os espelhos foram todos quebrados. Podia transformar-se em alguém da qual não gostasse. Preferia imaginar o contrário – que cada vez que mudava, apesar de diferente, era uma pessoa melhor que antes.

Sobremesa: "Sei que vou morrer, não sei o dia/ levarei saudades da Maria/ sei que vou morrer, não sei a hora/ levarei saudades da Aurora/ quero morrer numa batucada de bamba/ na cadência bonita do samba". (Na cadência do samba)

25 de julho de 2004

A roupa preferida
Raquel Medeiros

Dentro da banheira, com sua blusa preferida, a de listras pretas e amarelas. Maquiada - já meio borrada, é verdade - mas assim ficava até mais dramático. Só o rosto fora da água.
Pensou no seu ex-namorado que a abandonara há 5 horas. Pensou no seu primeiro beijo e na sua primeira vez, ambos terríveis. Pensou nos 4 quilos ganhos nas últimas férias. Agora, estava 6 quilos acima do seu peso. Pensou nas suas aulas de latim. Decidiu a morte.
Pensou na sua mãe, e de como aquela água morna lembrava o ventre. Aquela sensação lhe deixou mais confortável, certa do que iria fazer. Olhou para o seu corpo. A blusa de listras pretas e amarelas. A sua preferida. Pensou que talvez fosse melhor deixá-la para o velório. Saiu da água. Trocou a blusa, colocou a de listras no varal - pra enxugar a tempo - e escreveu um “ps” na carta de despedida, exigindo a blusa listrada no velório. Voltou para a banheira. A água estava fria. Desistiu.

Sobremesa: "I can't face the grazes/I cannot contain this/I can't fake the traces/I can't fake the grazes". (Grazes - Sneaker Pimps)

22 de julho de 2004

Faz de novo! Faz de novo!
Raquel Medeiros

Hélio, anão de nascença
Que a mãe com descrença
À sorte abandonou.

Não se fingiu de rogado
E pensando ser engraçado
Num circo ingressou.

E como quem da vida muito apanha
Trabalha muito; e pouco ganha
Um dia, Hélio cansou.

"Anda Hélio, vê se esquece esse cansaço
E põe teu nariz de palhaço
Porque o respeitável público já chegou".

Hélio entrou no picadeiro como de costume fazia
Mas no meio do espetáculo rasgou a fantasia
E com a corda bamba se enforcou. 

A platéia achou engraçado
No dia seguinte o ingresso vendeu dobrado
Mas Hélio não ressuscitou.

Sobremesa: "Deixa eu brincar de ser feliz/deixa eu pintar o meu nariz". (Todo carnaval tem seu fim - Los Hermanos)

20 de julho de 2004

Verão
Raquel Medeiros
 
Ela bem que tentou fugir dele, mas fazia tanto calor. A temperatura estava alta. E a previsão não era das melhores "o verão mais quente dos últimos tempos". Não era fácil. Principalmente pra ela. Acostumada a andar sempre vestida - de vergonha; de dúvida; de medo.
Encarou-o como jamais o fizera antes. Era inevitável o contato. Ele olhava pra ela com uma expressão de desafio. Mas ela era muito medrosa - fingia que não via - e quase derrete com aquela temperatura alta.
Um dia não teve jeito. "Vai, liga o botão", dizia a si mesma. Criou coragem e ligou. Aquelas hélices... Ela sabia... Colocou na potência máxima, e como desde criança tentava, desta vez conseguiu. Pôs o indicador, depois os outros dedos. Sangue. Sangue por toda a parte.
Depois dos dedos cortados, ela sentiu-se aliviada. Poderia fazer o mínimo de calor dali pra frente - ela o ligaria. Agora já não tinha dedos, já não tinha o que esconder dentro das mãos. E os braços? Esses não entravam no ventilador.
 
Sobremesa: "Tarde sem nuvem/50 graus/talvez por sua ausência/tudo derreta". (Calor - Adriana Calcanhoto) 

17 de julho de 2004

So far, so close
Raquel Medeiros
 
Tão distante do que posso ter
Tão perto – eu quero
Guardo ainda em mim
As rimas dedicadas
As marcas deixadas
Os beijos presenteados
Os desejos revelados.
 
Não sei escrever
Sou incapaz de descrever
A sensação de tê-lo próximo
É como estar no céu
Ou no que imagino que seja.
 
As coisas mais belas estão lá – no céu
O problema é não poder alcançar
Tem-se sempre que olhar para o alto
Mas às vezes a cabeça teima em esconder-se entre os ombros
E as coisas belas vão ficando mais difíceis de tocar.
 
O desejo de ir até elas me faz continuar
Querer, querer, querer
Subir, subir, subir
De escada, de elevador, de foguete
E só serenar quando alcançar. 
 
Sobremesa: "But still they lead me back/ To the long winding road/ You left me waiting here/ A long long time ago/ Don't leave me standing here/ Lead me to your door". (The long and winding road - The Beatles)*
* A sobremesa é a música inteira, mas eu não faria isso com vocês... e com esse pedaço dá pra ter noção do sabor.

16 de julho de 2004

Xeque-mate
Raquel Medeiros
 
Fiz uma pergunta tão simples e parecia que eu tinha feito uma grande jogada de xadrez. Ele parou – acho até que parou de respirar – e ficou olhando para o nada. Pensando... Pensando. Ficou tanto tempo assim que achei que ele estivesse devaneando sobre outras coisas; ou morrido.
Perguntei de novo – só pra ter certeza de que ele estava vivo e ali. Ele me olhou fixamente nos olhos e nada disse. Virou-se e saiu andando. “Como assim?” “É essa a resposta? Ou melhor, vou ficar sem resposta?”. Segurei seu braço e devolvi o olhar, só que com um pouco mais de coragem do que ele quando o fez. “É, eu sou covarde”, ele disse. Fiquei atônita, tonta. Minhas pernas enfraqueceram. Meu coração – tão acelerado até então – quase parou. Ele não sabe, mas naquela hora quem deu o xeque-mate foi ele.
 
Sobremesa: "Try, try, try just a little bit harder/ So I can love, love, love him, I tell myself /Well, I'm gonna try yeah, just a little bit harder/ So I won't lose, lose, lose him to nobody else". (Try (just a little bit harder) - Janis Joplin)

15 de julho de 2004

Cofrinho
Raquel Medeiros

Alice comprou um cofrinho. Um lindo porquinho. Tão lindo, que Alice não colocava dinheiro pra não ter que quebrá-lo depois.
Passaram-se semanas e nem uma moedinha no bichinho. Nem 5 centavos. Só pra fazer um barulhinho. O porquinho tinha até pena da Alice, “pobrezinha, não tem sequer uma moedinha pra me deixar feliz”.
Em seu aniversário, Alice ganhou da avó uma generosa quantia em dinheiro. Ao entrar no seu quarto, para sua surpresa, a passagem das moedas no porquinho não era mais nas costas, e nem tão pequena. O pobre coitado, desesperado, abriu a boca o máximo que pôde, e ficou gritando “põe aqui! Põe aqui!”.

Sobremesa: "Money, it's a crime/Share it fairly but don't take a slice of my pie/Money, so they say/Is the root of all evil today/But if you ask for a raise it's no surprise that they're/giving none away". (Money - Pink Floyd)

14 de julho de 2004

Diga-me qualquer coisa, desde que seja o que eu quero ouvir
Raquel Medeiros

Tudo o que ela disse deu errado.
Até agora não vi a cor do dinheiro
nem a casa em Ibiza
nem o husky
nem as férias em Viena.
O que me intriga mesmo era a certeza
com a qual ela me falava sobre essas coisas
falava como se fosse Deus
ou a mensageira direta dele.
Nem acredito que Ele exista
mas nela eu acreditei.
Tinha os olhos verdes
distendia a pupila cada vez que me olhava
e dava pra ver as falsas verdades em seus olhos.
E eu que só queria um amor
E eu que só queria o amor
não o tive sequer por um instante.
Espero que, ouvindo os meus ais
ele venha e me traga amiúde a paz.
Mas se ele não vier
eu mato aquela cartomante!

Sobremesa: "Vou te contar/os olhos já não podem ver/coisas que só o coração pode entender/fundamental é mesmo o amor/é impossível ser feliz sozinho". (Wave - Tom Jobim)

9 de julho de 2004

Foi você
Raquel Medeiros

Foi você quem me quis assim
Cara pálida
Palavra cálida
Como se houvesse um espelho
Refletindo você em mim.

Foi você quem quis assim
Um amor ardente
De desejo permanente
Como se não houvesse nada
Que livrasse você de mim.

Foi você quem quis fugir assim
Sem beijo de despedida
Sem abraço na partida
Como se houvesse uma vida
Separando você de mim.

Sobremesa: "But I don't know/what I would give of myself/how I would live with myself/if you don't go". (Caramel - Suzanne Vega)

8 de julho de 2004

O mundo é um moinho
Raquel Medeiros

Ela não queria que notassem sua tristeza. Tinha vergonha, sem falar na fama de forte. Resolveu ir à festa mesmo assim. Caprichou na maquiagem e foi.
Chegou lá, distribuiu sorriso pra todo mundo. Até parecia feliz. Dançou, bebeu, beijou. Foi até o banheiro dar uma olhada na aparência, e, para sua surpresa a maquiagem borrou. Não era um borrado qualquer – isso seria comum. Um traço de lápis escorrera dos seus olhos, e escreveu – com todas as letras – “fake” no seu rosto.

Sobremesa: "Preste atenção, querida/de cada amor tu herdarás só o cinismo/quando notares estás à beira do abismo/abismo que cavastes com teus pés". (O mundo é um moinho)

5 de julho de 2004

Senhoras e senhores
Raquel Medeiros

Fui até o centro do picadeiro. Ô coisa deprimente, o tal do circo! Aquelas pessoas olhando pra mim, querendo que eu fizesse algo extraordinário; ou engraçado; ou bizarro. Todos em silêncio. Dava pra ouvir o barulho dos dentes destruindo a pipoca. Não consegui fazer nada. Não queria fazer nada. Fiz birra. Cruzei os braços e sentei ali no meio.
Depois do longo silêncio, vieram vaias, muitas vaias, da platéia. Saí de lá correndo. E se não bastasse, ainda veio um palhaço (desses fantasiados) e disse que eu era sem graça. Ah, pelo menos eu não me escondo atrás de maquiagem.

Sobremesa: "Tristeza não tem fim/felicidade sim". (Felicidade - Tom Jobim)

3 de julho de 2004

5 graus
Raquel Medeiros

Não é só lá fora que o cinza predomina. Aqui dentro também.
Adoro o inverno, esses dias nublados. Isso tudo é muito bom quando se tem algumas frestas de sol na alma. Do contrário, o frio é interno, e não há cobertor ou chocolate quente que dê jeito.

Sobremesa: "Rain down/rain down/come on rain down on me/from a great height/from a great height". (Paranoid android - Radiohead)

2 de julho de 2004

Hoje o cardápio só oferece sobremesa. Pra trazer doçura ao paladar, e suavizar um pouco a vida.

"Tenho 25 anos de sonho e de sangue
E de América do Sul
Por força desse destino
Um tango argentino me vai bem melhor que o blues".
(À palo seco - Belchior)

1 de julho de 2004

Cerração
Raquel Medeiros

Fica aqui e não vai embora
Fica assim e não me censura
Eu sou impulsiva
Não sei o que é razão
Não tenho juízo.
Tudo o que tenho
São esses sentimentos movediços
E essa insônia que já virou um vício
E que se encontra nas minhas veias
E se perde na minha cama
Onde construo a minha teia
Onde sou implacável
Nas coisas que te escrevo
Nos segredos que te revelo
Nos desejos que te exponho
Nas máscaras que fabrico.
Porque todo mundo precisa delas
De vez em quando
Não para os outros
Mas para si mesmo
Para ter coragem de olhar-se no espelho
E encarar as atitudes que toma
Os sucessos; os fracassos
As lágrimas não contidas
As palavras arrependidas
O riso dissimulado.

Sobremesa: "'Cause this life is a farce/I can't breathe through this mask/like a fool/so breathe on, sister, breathe on" (It's a fire - Portishead)

29 de junho de 2004

Duas linhas
Raquel Medeiros

- Por que a tristeza faz a gente escrever tanto?
- Não sei, mãe. Mas talvez o papai soubesse responder, se estivesse vivo.

Sobremesa: "E a vida se perdeu/se existe Deus em agonia/manda essa cavalaria/que hoje a fé me abandonou". (O pouco que sobrou - Los Hermanos)

27 de junho de 2004

Palavras tempestivas
Raquel Medeiros

Eu vou tentar começar as coisas de outro jeito, que não esse que a gente fez. Não deu certo, não funcionou. Acho que não falei o suficiente sobre mim, sobre o que gosto, mas principalmente sobre o que NÃO gosto.
Tudo parece maculado – o meu carinho por você; o respeito que eu achava que existia; a sua imagem no porta-retrato.
Até tentei deixar a banda passar, mas não deu. A música achou de sentar na minha frente e repetir o mesmo refrão ‘Eu sem chão; e você sem perdão...’.

Sobremesa: "Se alguém por mim perguntar/diga que eu só vou voltar/quando eu me encontrar". (Preciso me encontrar - Cartola)

22 de junho de 2004

Rascunho
Raquel Medeiros

Resolvi retocar meu rascunho de vida. Difícil... Comecei pelos pés que já não andam tão bem como antigamente – costumavam pisar mais firme. As pernas já não me obedecem, dançam tango ao invés de ballet. O estômago...embrulhado como ele só, nem água agüenta. Os braços cansados, nem abraço dão mais.
Quando fui ao coração, tinha tanta coisa pra retocar que desisti. A cabeça, então, nem se fala. Apaguei tudo e vou começar de novo. Desenhar outra vida que não essa. Desenho de verdade, porque não dá pra ficar o tempo todo rascunhando. Mas hoje não tem clima. Amanhã talvez eu comece. Hoje, não existo.

Sobremesa: "E essa vida é uma atriz/que corta o bem na raiz/e faz do mal cicatriz/Vai ver até que essa vida é morte/e a morte é a vida que se quer". (Refém da Solidão - Baden Powell e Paulo César Pinheiro)

21 de junho de 2004

Punishing kiss
Raquel Medeiros

Tomei até o último gole. Acordei com uma ressaca daquelas. Só lembro do rótulo e de ter ouvido você dizer que eu ia me arrepender. Você tinha razão. Me arrependi. Mas não foi do porre, foi de você. É isso – me arrependi de você.

Sobremesa: "Me deixem amolar e esmurrar a faca/cega da paixão/e dar tiros a esmo e ferir sempre o mesmo/cego coração(...)/Eu não posso causar mal nenhum/a não ser a mim mesmo". (Cazuza)

20 de junho de 2004

Intimidade
Raquel Medeiros

Meu olhar deve te dizer alguma coisa. Ou pelo menos deveria. Eu queria que você conseguisse saber através deles, sem que eu precisasse falar. Não é preguiça não. É porque eu vou gaguejar, vou medir as palavras, e não vou conseguir dizer tudo. Entende? Não, né?!.
Eu imaginei, aliás, eu devia ter imaginado desde o início. Nunca teria aberto a boca pra dizer nada. Nada dessas coisas que agora você está usando contra mim. A covardia é mais sua que minha. O cinismo é mais seu do que meu. A maldade é mais sua que minha. É verdade que a tristeza é mais minha que sua; mas todo o resto é mais seu. Inclusive eu.

Sobremesa: "Se entornaste a nossa sorte pelo chão/ se na bagunça do teu coração/meu sangue errou de veia e se perdeu". (Eu te amo - Chico Buarque)

19 de junho de 2004

A cor da dor
Raquel Medeiros

Acorda dor. Pois não é que ela me ouviu?! Despertou gritando, acabando com meus tímpanos. “Pare! Pare!”. Nada. “Se não agüenta, então por que chamou?”. Eu prometi que não faria novamente. Deixaria ela quietinha aqui – sabe-se onde – no peito, nos rins, na alma, na consciência. Ela aceitou o acordo, mas demorou pra voltar a dormir.

Sobremesa: "Tudo vermelho/os meus olhos pegando fogo/minha paciência encardida, meu sufoco/eu já quebrei o espelho/terminei meu namoro/tudo vermelho de novo". (Cabidela - Mombojó)

18 de junho de 2004

Na prateleira
Raquel Medeiros

Parei com os meus pensamentos românticos. Saltei do Lord Byron para o Machado de Assis num breve espaço de tempo. Foi brusco. Parece que se está num daqueles elevadores que nunca chegam ao térreo, e quando a porta se abre você vê que foi parar num subsolo escuro.
No início fiquei confusa. Chorei. Mas agora já está quase tudo em seu devido lugar na prateleira, e etiquetado com seu novo preço. Alguns estão em promoção e não permitem devolução. Escolha bem e não se arrependa.
Tá duvidando da validade? Não precisa comprar. Não mesmo. Hoje não sou produto de primeira necessidade. Sou supérfluo, honey. Supérfluo.

Sobremesa: "Life is bad/gloom and misery everywhere/stormy weather, stormy weather/and I just can get my poor self together/oh I’m weary all of the time/the time, so weary all of the time". (Stormy weather - Etta James)

17 de junho de 2004

Kiss me
Raquel Medeiros

- Me dá um beijo...
- Por que eu te daria?
- Por que eu quero tanto... e porque vou morrer em breve. Tenho uma doença incurável.
- Mesmo?! Putz, então tá. Eu dou.
- ...
- Que doença você tem?
- Nenhuma, eu tava brincando. Mas o beijo foi bom, não foi?!
- Foi. E agora você também tem herpes.

Sobremesa: "So kiss me". (Kiss me - Sixpense None The Richer)

16 de junho de 2004

Descupem-me pelo jejum de alguns dias...

Coralina
Raquel Medeiros

Veríssimo dominado por uma raiva incontrolável, mata Coralina. Foram 11 facadas, bem distribuídas nos 1,67 e 50 kg dela. Enquanto a esfaqueava, Veríssimo chorava, parecia que estava doendo em seu próprio corpo. Depois começou a rir de tal forma que mal conseguia segurar a faca com firmeza. Deu um beijou na testa da vítima e disse “Adeus, Coralina”.
Horas depois estava Veríssimo no parapeito do seu apartamento, pronto pra acabar com tudo. Morreria em plena Avenida Paulista. 12 andar. Morte certa. Não tinha como errar. Foi salvo por um amigo que estava indo para a Áustria e veio despedir-se. Foram para a Áustria juntos. O amigo se encontraria com a noiva e Veríssimo poderia ficar um tempo com eles. Desistiu de pular e foi embora.
Nove horas da noite. O casal entra no apartamento e encontra um bilhete de Veríssimo, dizendo “Ótima idéia ter vindo para Viena. O inverno europeu é o cenário perfeito pra isso. Obrigado”. Olharam pela janela e o corpo de Veríssimo estava lá, inevitavelmente morto. Usava um vestido da Coralina.

Sobremesa: "Sim, vai e diz/diz assim que eu rodei, que eu bebi, que eu caí, que eu não sei/eu só sei que cansei, enfim, dos meus desencontros/corre e diz a ela que eu entrego os pontos." (Desalento - Chico Buarque)

9 de junho de 2004

Sirvam-se da sobremesa, é da mesma confeitaria, mas desta vez pedi torta de limão. =)

Exaustão
Raquel Medeiros

Meus pés cansados
dessa dança sem par
sem compasso; sem canção.
Meus braços marcados
desses amores fadados à prisão.
Meus lábios ressecados
desses beijos sem paixão.
Meus olhos mareados
desses sonhos vazios
sem desafio; sem superação.
Minha cabeça pesada
dessa vida distraída
destituída de razão.

Sobremesa: "I'm so tired of playing/playing with this bow and arrow/Gonna give my heart away/leave it to the other girls to play". (Glory box - Portishead)

8 de junho de 2004

Amanda
Raquel Medeiros

Saí correndo. Parei. Achei que tinha sido o bastante. Estava cansada e ofegante. Relaxei. E quando pensei que até conseguiria dormir, vem você novamente. Incomoda o sossego; machuca a paciência; despedaça a felicidade. Acabe com isso de uma vez. Eu não quero morte com comprimidos não. Quero na veia. Fácil e rápido.
Nunca fui muito boa em lidar com o coração. Ele requer atenção demais, e eu tenho outros órgãos, sabe? Já conversei, argumentei, bati, troquei por outro, mas nada resolveu. Você existe demais em mim, e isso me apavora.
Pra completar, dia desses vieram me dizer que o meu nome – Amanda - significa ‘para ser amada’. Piada. Ha ha ha. Piada...

Sobremesa: "Covered by the blind belief, that fantasies of sinful screams/ bear the facts or soon will die, end the vows no need to lie, enjoy." (Sour times - Portishead)

7 de junho de 2004

O fim de semana rendeu muito...textos inclusive. Eis um deles.

LOVE LOVE LOVE
Raquel Medeiros

Bruno estava sentado na calçada. Acima, havia um letreiro, escrito LOVE. Letras grandes.
Justine passou e perguntou se ele tinha um cigarro. Ele estava demorando pra encontrar. Ela sentou ao seu lado. Acenderam seus respectivos cigarros e começaram a conversar sobre as amenidades da vida. Daí a trocarem nome e telefone foi um passo.
Encontraram-se outras vezes – cinema, jantar, andar de bicicleta – começaram a namorar. Relação tórrida, dessas onde tudo é visto numa proporção maior do que realmente é – as brigas, as pazes.
Aniversário de um ano de namoro. Bruno esperava Justine embaixo do mesmo letreiro. Ela não estava atrasada. Ele chegara mais cedo.
De repente, um súbito vento forte derruba o letreiro em cima de Bruno. Morreu na hora.
O amor é assim – quando não o temos, parece alto demais. Mas às vezes cai sobre nossas cabeças tão violentamente, que acaba destruindo tudo.

Sobremesa: "When you give half of you/I want all of you.
When you give half of you/I want all of you." (Half of you - Cat Power)