Just one
Raquel Medeiros
Catarina viu Venâncio na rua. Dois anos desde a última vez, no dia em que terminaram. Ela estava no ônibus, com seu inseparável discman. Ele, andando na calçada. Usava os mesmos óculos escuros, o mesmo jeito de andar de quem está com medo que lhe dirijam a palavra. A mesma cabeça escondida entre os ombros.
Ela lembrou de quando estavam juntos, e ele falava de outros mundos, e coisas que ela sequer imaginava que existissem. Ela adorava. E acreditava. E queria viajar mais.
Ela ouvia o som da música dele mesmo na ausência. Ouvia a sua voz mesmo que ele não falasse. Ouvia o seu choro mesmo quando ele sorria. Ela adorava. E acreditava. E queria ouvir mais.
Ele dizia que eles eram inatingíveis, imensuráveis. Ela adorava. E acreditava. E queria ser mais.
Mas de repente eles já não viajavam, não se ouviam, nem eram nada juntos. Ela queria ir pra Barcelona e ele pra São Petersburgo; ele queria ouvir Wagner, e ela, Lou Reed; ela queria não ter medida, e ele queria um corpo menor pois a alma estava perdida.
Sentiu uma certa saudade de quando ouviam Bowie cantar “we can be heroes”, e hoje, no discman de Catarina, Bowie sempre repete “just one day”. Just one.
Sobremesa: "Ai daqueles que se amaram sem nenhuma briga/ aqueles que deixaram que a mágoa nova virasse a chaga antiga/ ai daqueles que se amaram sem saber que amar é pão feito em casa/ e que a pedra só não voa porque não quer/ não porque não tem asa". (Paulo Leminski)
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