30 de outubro de 2007



Portrait of the devil and his fingers
Joe Sorren

Retalhos do cotidiano sem backspace
Raquel Medeiros

“Computadores são demônios que as redações de jornal e as agências de publicidade usam pra infernizar a vida da gente”.
Acabo de ouvir isso de um cliente que, apesar da barba e cabelos grisalhos, não deve ter mais de 46 anos. Ele conseguiu me provar por a + b que não faz a mínima idéia do que fazer com essas criaturas sem chifre.

- Posso mandar um e-mail do seu computador?
- Claro. Fique à vontade.
- E como eu mando esse cartaz por e-mail?
- É só anexar.
- E como eu faço isso? Aliás, você faria isso?
- Faço sim, mas o arquivo está em corel. A pessoa pra quem você quer enviar tem corel?
- Não sei. O que é corel?
- Não vai por e-mail, muito pesado o arquivo.
- O que eu faço então?
- Reza.

Sobremesa: Eu adoro esses demônios que se instalam – alguns muito velhos e já sem tanto poder assim – nas redações, agências e todos os lugares (in)decentes do mundo. E me deleito com os ricos clientes mortais tão medrosos, tão teimosos, queimando no fogo do inferno, em meio a esses muitos e inevitáveis demônios. (Raquel Medeiros)

9 de outubro de 2007


Duas colheres de ânimo para começar o dia.

Amanhã não se sabe
Raquel Medeiros

“Não se afobe não, que nada é pra já”. Chico repete isso no meu ouvido e eu me repito como um mantra. Eu sofro de uma ansiedade quase doentia: minhas unhas estão ruídas, minhas olheiras estão enormes, minha insônia é visita constante e aqui e ali tenho ostentado um cigarro entre o indicador e o dedo médio. Mas não adianta, já diria o Leminski - que os problemas têm família grande - e cá estou eu a fazer sala para todos eles.

Não quero aqui fazer um texto pra chorar minhas pitangas, pois há coisas boas acontecendo neste tempo de semi-exílio. Tenho fumado menos que antes (apesar da angústia), tenho saído menos (e me poupado de companhias e ressacas indesejáveis), tenho dado passos – pequenos, porém firmes – para um projeto que sempre quis. Logo vocês vão saber. Tenho essa mania – agora, depois de velha – de ser mais cuidadosa em falar sobre meus planos, pra evitar a fadiga e o mau-olhado (depois de velha a gente também começa a acreditar em certas coisas).

Hoje não tem poesia, nem prosa. Só um feijão com arroz que tenho requentado nesses últimos meses. Mas sinto um gosto bom na boca, uma sensação boa no peito. É, além de uma fumante ansiosa, eu sou otimista. E apesar de ter dias – constantes – em que queria ficar invisível e deixar de ser substantivo – tristeza e dúvida -, acredito que ainda posso ser verbo – ser muito mais.

Sobremesa: "Se o tempo passou, espero que ninguém me leve a mal/ mas se o samba quer que eu prossiga/ eu não contrario não/ com o samba eu não compro briga/ do samba eu não abro mão". (Chico Buarque)

2 de outubro de 2007


"Mulher é desdobrável". (Adélia Prado)

As Três Marias
Raquel Medeiros

Maria das Dores
Não tinha pai nem mãe
Não sabia ler nem escrever
Mas carregava uma trouxa de roupa como ninguém
Lavava copo, prato e colher.
Enquanto vê seu reflexo no fundo da panela
Uma gota de suor escorre no rosto
Mas não há espaço para cansaço.
Nunca teve relógio
Mas sabe como o tempo é curto para tanto trabalho.
Enquanto torce a roupa ela chora sua sorte
E pensa na filha que carrega no ventre
“Antes de nascer já de bucho encostado no tanque”.

Maria Aparecida
Filha de Maria das Dores
Não tinha pai
Nasceu no quarto dos fundos
Sabia escrever o nome, mas não sabia ler
Cozinhava como ninguém
Vaca, boi, bode e o que viesse
Não tinha bicho que não morresse
Na ponta da sua faca
Não tinha gente que não a admirasse
Na ponta do garfo
Enquanto junta as penas da galinha
Sente pena da barriga já crescida.
“Cá estou eu com outra Maria no bucho”.

Maria do Socorro
Filha de Maria Aparecida
O pai foi assassinado
Apareceu no mundo antes do tempo
Aprendeu a ler e a escrever antes dos 5 anos
Cresceu e logo aprendeu a manusear arma
Não lavava, não passava
Não sabia cozinhar nem polir panela
Mas tinha sempre uma bala na agulha
E um olhar afiado
Não tinha gente que não tivesse medo dela
José foi morto na mira do seu olhar
E enquanto chorava, alisava a barriga
“Que esta Maria tenha mais sorte na vida”.

Sobremesa: "Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento/ e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas/ Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam/ mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar/ e quem chegar perto pega fogo". (Eduardo Galeano)