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11 de agosto de 2009


às vezes eu não sei quando é chuva ou quando é choro.

Acordar

Sonhar com você no inverno
é como aguçar a saudade
é como temperar com pimenta moída
e em seguida secar as lágrimas
com as mãos ainda sujas.

Ardência que chuva nenhuma ameniza
vontade grande e grave.

Te escrevo cartas com perfume e música
e os barcos que construo com elas
descem as ruas sem encontrar teu porto
à deriva, sigo esperando o verão.

Sobremesa: "Sossegue coração/ ainda não é agora/ a confusão prossegue/ sonhos a fora". (Paulo Leminski).

25 de junho de 2008


Valentina de Guido Crepax

Intervalo

Enquanto passa
olhos de dúvida
tentando ler fumaça.

Sobremesa:"Como se pudessem chegar a algum lugar onde elas mesmas não estivessem". (Alice Ruiz)

19 de fevereiro de 2008


in the car - roy lichtenstein


Lembranças de viagem em três atos

Raquel Medeiros

Primeiro ato
Lembro de quando chegamos num novo destino. As malas bem arrumadas para não amarrotar meus vestidos, nem suas camisas. Compartilhamos o xampu, o creme dental e o espelho. Abrimos um vinho – ou cerveja, ou mesmo uma água sem gás – e brindamos o começo. Bebemos e acendemos nossos cigarros. Agora há um silêncio mútuo, um olhar cúmplice, um beijo apaixonado e o infinitivo 'enquanto durar'.

Segundo ato
Lembro das malas desarrumadas. Suas cuecas espalhadas e eu ainda tentando colocar alguma ordem como se aquele lugar fosse nosso quarto, nossa casa. Passamos o dia com uma preguiça inerente. As forças concentradas no corpo – do outro.

Terceiro ato
Lembro do nosso banho rápido, onde já nem conto teus sinais. Das roupas sendo jogadas sem paciência de volta à mala. A vontade de ficar e a porta que abre lentamente. Estamos indo para sempre.

Sobremesa: "O amor é uma agonia/ vem de noite/ vai de dia/ é uma alegria e de repente uma vontade de chorar".(Vinícius de Moraes)

11 de janeiro de 2008


Maria tinha uma pedra, um sapato e um caminho.
No meio do caminho a pedra entrou no sapato
e Maria nunca alcançou o céu. (Raquel Medeiros)

Strangers in the night
Raquel Medeiros

Quando eu e Julio nos encontramos na solidão do quarto, somos amantes contrários. Ele chega com a calma, sem a pressa de responder minhas perguntas (e são tantas!), com uma tranqüilidade admirável e intrigante. Eu chego com a ansiedade (as mulheres no geral sempre querem que o dia chegue à véspera), com a náusea a ser curada, com o vazio a ser preenchido. Mas chegamos os dois, assim como Oliveira e a Maga, sem nos procurar, mesmo sabendo que deveríamos e que vamos (inevitavelmente) nos encontrar.
Eu sigo suas indicações e me emociono “como pode um estranho saber tanto de mim?”. Da desordem que começa na minha bolsa e que se estende às questões sentimentais. O Julio sabe que o único caminho certo é o do sangue nas veias, e que todo o resto se move como num jogo de amarelinha. Um chão riscado, uma pedra na mão e fé no passo – onde quer que ele nos leve. Encontraremos o céu?

Sobremesa: "E, se nos mordermos, a dor é doce/ e, se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela/ E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura/ e eu te sinto tremular contra mim, como uma lua na água". (Julio Cortázar. O Jogo da Amarelinha, capítulo 7).

23 de novembro de 2007


Gossip face - Muntsa Vicente

Amarcadamarca
Raquel Medeiros

Amar cada marca
Amar cada mar cá
Amar cá, dá marca.

Sobremesa: "só doer/não é dor/delícia/de experimentador" (Paulo Leminski)

9 de outubro de 2007


Duas colheres de ânimo para começar o dia.

Amanhã não se sabe
Raquel Medeiros

“Não se afobe não, que nada é pra já”. Chico repete isso no meu ouvido e eu me repito como um mantra. Eu sofro de uma ansiedade quase doentia: minhas unhas estão ruídas, minhas olheiras estão enormes, minha insônia é visita constante e aqui e ali tenho ostentado um cigarro entre o indicador e o dedo médio. Mas não adianta, já diria o Leminski - que os problemas têm família grande - e cá estou eu a fazer sala para todos eles.

Não quero aqui fazer um texto pra chorar minhas pitangas, pois há coisas boas acontecendo neste tempo de semi-exílio. Tenho fumado menos que antes (apesar da angústia), tenho saído menos (e me poupado de companhias e ressacas indesejáveis), tenho dado passos – pequenos, porém firmes – para um projeto que sempre quis. Logo vocês vão saber. Tenho essa mania – agora, depois de velha – de ser mais cuidadosa em falar sobre meus planos, pra evitar a fadiga e o mau-olhado (depois de velha a gente também começa a acreditar em certas coisas).

Hoje não tem poesia, nem prosa. Só um feijão com arroz que tenho requentado nesses últimos meses. Mas sinto um gosto bom na boca, uma sensação boa no peito. É, além de uma fumante ansiosa, eu sou otimista. E apesar de ter dias – constantes – em que queria ficar invisível e deixar de ser substantivo – tristeza e dúvida -, acredito que ainda posso ser verbo – ser muito mais.

Sobremesa: "Se o tempo passou, espero que ninguém me leve a mal/ mas se o samba quer que eu prossiga/ eu não contrario não/ com o samba eu não compro briga/ do samba eu não abro mão". (Chico Buarque)

20 de setembro de 2007


Winter’s here
And there ain’t nothing gonna change. (Beth Gibbons)

Lamento
Raquel Medeiros

Noite. Ela construindo na mente cada detalhe. Primeiro foram os ombros... ah! Como queria encostar a cabeça naquele ombro e ver a vida passar como num filme. Os braços, armas de um abraço infalível. Como era difícil e doído pensar e não ter. Imaginar e não sentir.
Cada pormenor surgindo como num plano detalhe que vai abrindo e revelando todas as virtudes e discrepâncias (a essa altura tão bem-vindas). Lembrou que ele adora essa palavra – discrepância. Lembrou que o lugar ao seu lado continuava vazio.
Ainda havia uma esperança de dormir. E de encontrá-lo, quem sabe, num sonho. Mas não. O contraste das nuvens no céu ficando cada vez maior. A saudade que latejava no peito dela também.
Onde ele estaria agora? Seria possível promover hoje um encontro com o futuro? Ela sabia que não. Já era dia.

Sobremesa: Teu olhar mata mais do que bala de carabina/ que veneno extriquinina/ que pexeira de baiano/ teu olhar mata mais que atropelamento de automóvel/ mata mais que bala de revólver. (Adoniran Barbosa)

31 de maio de 2007


Ela não sabe quanta tristeza cabe numa solidão.
(Baden Powell e Vinicius de Morais)

*imagem de Joe Sorren.

Tudo embrulhado
Raquel Medeiros

Ando enjoando de tudo. Enjoada de tudo. Uma vontade de vomitar quando olho olhos rasos, sorrisos falsos e abraços desonestos. Eu odeio gente desonesta. Na fala e nos gestos. Vontade de vomitar quando ouço (começar) elogios rasgados e rasgáveis.

Argh! Odiar é forte demais, mas é preciso. É preciso navegar, odiar, amar, ser forte e dar com os ombros, com os pés, com as mãos e com silêncios aos barulhos que nos vão atrapalhando o caminho. Antes fossem pedras! Pelo menos daria pra riscar uma amarelinha no chão e tentar chegar ao céu num pé só.

Ando com desejo de tudo. Uma vontade de comer a vida, pedacinho a pedacinho. Ora devagar e com cautela; ora ávida e com urgência. Vontade de devorar cada palavra, abraço e afago amigo. Mastigar música com as pernas. Saborear as palavras, sentindo cada combinação de sílabas, doce ou salgada. Beber a saliva, o suor, o vinho e a lágrima.

Entretanto há os indigestos e desafetos. E esse feto que (me parece) há em mim, já vem com 32 dentes que rasgam minhas vísceras como um veneno de rato. Já vem com dores e odores que me deixam um tanto enjoada. Volto ao início.

Sinto as contrações e contradições. Vou ali parir uma dor, uma lágrima, uma dúvida. E quem sabe nasça em mim algo melhor.

Sobremesa: "Se não tivesse o amor/ se não tivesse essa dor/ e se não tivesse o sofrer/ e se não tivesse o chorar/ melhor era tudo se acabar". (Baden Powell)

29 de março de 2007



* imagem - Yuko Shimizu

Desabafo de um homem recém-chegado às ruas daqui
Raquel Medeiros

Eles levantam mas não acordam.

De dia essas ruas se enchem de olhos cansados
Zumbis de passos automáticos
Distraídos e descuidados.

Eles dormem mas não descansam.

À noite essas ruas se enchem de olhos risonhos
Tão cheios de graça
Tão vazios de sonho.

Eles vivem mas não sentem.

Sobremesa: "Ilusora de pessoas de outros lugares/ a cidade e sua fama vai além dos mares". (Chico Science)