27 de junho de 2005


A factory of cunning - Matt Murphy

Apoiando a língua nos dentes
Raquel Medeiros

Mãos atadas e olhos cegos
Não nego – ardo só de pensar.
As unhas que arranham a pele
A mordida que marca a carne
Que essa dor nunca me falte
E que o beijo sele mas nunca cale.
Impropérios, indecência
Mistério, imprudência
O carrasco do desejo
Nunca pede licença
Pra me executar.
Feliz condenada
Nem sempre comportada
Quando bem acompanhada.
Intensa devassidão
Ilimitada vastidão
Dor e luxúria
Variedade e fartura
Não peço a boca
Não meço a força
Onde a razão não tem espaço
E esse texto, um ínfimo pedaço
Da minha loucura.

Sobremesa: ... "E tente me expelir/ e ao me sentir ausente/ me busque novamente." (Vinicius de Moraes)

23 de junho de 2005


O bêbado, a equilibrista e seus filhotes.

O Bêbado e A Equilibrista
Na voz de Elis Regina

Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos
A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel
e nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas, que sufoco louco
O bêbado com chapéu coco fazia irreverências mil
Prá noite do Brasil, meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu num rabo de foguete
Chora a nossa pátria mãe gentil
Choram marias e clarisses no solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente
a esperança dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar, a esperança equilibrista
sabe que o show de todo artista, tem que continuar.

Sobremesa: "Sei, que o vento que entortou a flor/ passou também por nosso lar/ e foi você quem desviou/ com golpes de pincel." (Los Hermanos)

14 de junho de 2005


"'Cause I've been changing my mind" (The Cardigans)

Sintonia
Raquel Medeiros

91.5 mhz
Cícero chorava ao volante. “Já te dei meu corpo/ minha alegria/ já te dei meu sangue quando fervia”. A voz de Chico no rádio traduzia muito dele. A gota d’água que ouvia no carro, rolava sem precedentes pelo rosto de Cícero. Fim de relacionamento é sempre muito doloroso. No carro, alguns de seus pertences. No banco do lado, ao contrário de outros tempos, não estava ela. Só poucos livros. Os outros buscaria depois. Talvez.

104.3 mhz
“Hi/ how are you?/ I'm pretty fine”. Muda a estação. Essa não combina. Nunca foi muito adepto ao verão. Sol latente e toda a alegria dos veraneios na casa de amigos. The Cardigans lembrava o blah blah blah da estação de pouca roupa e muita irreverência. As caminhadas no fim de tarde. As havaianas sempre com um pouco de areia, eram banhadas no mar. E sujas de areia novamente. O relacionamento deles também era assim. A areia arranhava. Vinha uma onda de esperança, lavava a sujeira que voltava pouco depois.

87.5 mhz
O nariz já entupido sinalizava que o choro deveria cessar. Já não respirava tão bem. “Se eu ando assim tão triste/ tão cheio de langor/ é porque nada existe/ para mim sem meu amor.”
O Vinícius e sua habilidade em traduzir as pessoas. Só faltou a dedicatória:
- Essa música vai para o Cícero, que anda por aí como quem perdeu a cor. Carrega a mudança, mas esqueceu a esperança nas mãos do velho amor.

87.5 mhz
Pára. Põe gasolina no carro. Isso de viver, de amar, um dia precisa dar certo. Gira a chave. Coloca a primeira marcha. Sai. Velocidade pouca, que o recomeço é sempre mais lento. E no rádio, o Chico repete “Amanhã vai ser outro dia”.

Sobremesa: "O meu amor/ o meu amor, Maria/ é como um fio telegráfico da estrada/ aonde vêm pousar as andorinhas.../ (...)/ No entanto, Maria/ o meu amor é sempre o mesmo/ as andorinhas é que mudam." (Mário Quintana)

9 de junho de 2005


"Corre e diz a ela que eu entrego os pontos." (Chico Buarque)

*Na foto, Bruno Medina.
*Segue um texto velho que caiu da mudança.

No doce e pretenso desejo de sorver seus lábios
Raquel Medeiros

...ele sente sua presença. Ela se parece perfeitamente com a descrição feita nos jogos artificiais de uma nova tecnologia. Num segundo, os detalhes emergem daquela pálida e minúscula face que ali, a seus olhos, se desnuda. Músculo tenso em clara pele enrubesce. Ela está envolta em conversas e se mostra. Um torso branco de resplendor ímpar. À mostra um pescoço delgado e tenro delineia costas finas de nuanças impecáveis, findando em abstratas formas de ancas talhadas à perfeição.
Majestosa era aquela visão que o enchia de sudorese, afasia e mudez. O objeto de sua ânsia repousa num banco gélido da praça a eles tão afeita.
No Saara que os separava, ardia o sôfrego coração de homem feito – mascarado de imberbe – que, despojado dos desfarces, escondia-se do facho de luz emanado.

Rufam-se tambores – será que o coração dele anda no mesmo compasso? Ilegível aspecto de poesia mal feita, uma carta natimorta.

Empalidece. Seu rosto se confunde com os ladrilhos. Renuncia às idéias de se fazer presente e a ela se apresentar. Agora está só como nunca esteve e entreabre a porta da memória analisando amores que não vingaram. Que permanecem oclusos e emudecidos.
Ele ri. Ri de si mesmo. É um fingidor. Olhando para o lado de fora da sua sala, concebe a noção do sagrado e do profano naquela a quem ama. Rir-se, antes de tudo, da situação que se encontra, do medo generalizado de se mostrar – de ser quem o é.

O que os separava era uma tela. Na espinha dorsal da memória, ele não pudera dizer quase nada. Conservava a impressão de um dia dizer que já não mais se pertence.

A vontade que tinha de possuir, de ouvir seus gemidos, perpassava feito um turbilhão de protuberâncias e miasma desfarçados – crus – eminentes. Pornográficos. Humano. Ele a imaginava despida, em sua casa, desabotoando a saia, revelando o brilho voluptoso dos quadris.
Após o banho, a leva ainda molhada à cama, para ser enxuta num ventilador barulhento; ofuscação dos beijos altos à altura das coxas. Ergue-se o entumecido ventre; e a Vênus, do seu monte, o espia sequiosa. Põe os lábios no umbigo e a percorre sem restrições. Entremeia as pernas e sente a força calculada que imprime à cabeça. Diz-lhe impropérios, enquanto imprime sua marca, com os dentes, em cada mamilo dilatado. Suor, fluídos, esperma perfumam o ambiente, já impregnado de uma áurea mística, com um cheiro forte de um incenso.

As mãos dele são suaves – próprias para contornar seu corpo. E não escapa nada do alcance deste fauno propenso à bestialidade sem par, às carícias despudoradas e à exaustão dos prazeres da carne. E cometem-se todos os barbarismos, no ápice da paixão.
Ele a possui. Ela o retém. À noite, travam-se batalhas e o palco não é mais que o espaço exíguo do quarto. Varam a madrugada e extenuados sorriem, e dormem. Já é tarde e a hora é de despertar, diz ele. Resta-lhe, antes de mais nada, amá-la até o fim. A ela, reserva-se o segredo de ser enigmática, mesmo no gozo.

Sobremesa: "Há de fazer do corpo uma morada/ onde enclausure-se a mulher amada/ postar-se de fora como espada/ para viver um grande amor." (Vinicius de Moraes)

8 de junho de 2005


"Mandei a frase sonhar, e ela se foi num labirinto."
(Paulo Leminski)

Às palmas e às vaias
Raquel Medeiros

A maquiagem que não esconde.
Alguns vão entender cada linha. Outros não vão entender nada. Desses que não vão entender, é possível encontrar os que vão sugerir significados; outros não se darão esse trabalho. Passarão a página e que venha outro texto mais digerível.
Não há desejo aqui em ser a saliva que ajuda a digestão, muito menos a pedra no caminho dos rins. Aqui sou a palavra escrita. Por vezes cortada, noutras cortante. Há a falta de cuidado e por hora, algumas combinações que dão certo.

O picadeiro que não significa espetáculo.
Por opção, e por uma vontade ou doença incurável de não conseguir parar de escrever. A platéia é quem decide se aplaude ou se torce para que o leão fuja no meio do espetáculo. Se se encanta com o coelho que sai da cartola, ou contrata alguém pra cortar a corda bamba. Sem rede de segurança.

A ausência da lona que não dispensa a platéia.
Aqui não há intencão de ferir nem de curar. Sou alguns dos verbos e poucos adjetivos que residem neste vale. Admito a opção minha. Aceito a opinião alheia.
Mas por favor, quando eu tirar a maquiagem e estiver tentando – forçadamente – dormir, façam silêncio, pois já basta o pensamento me ensurdecendo. E não puxem o lençol. Faz muito frio aqui.

Sobremesa: "Que o leão nunca esteja enjaulado/ para que não haja a fuga/ e o público não saia afobado/ antes do fim/ que a alegria creditada ao palhaço/ ocupe o lugar do cansaço/ cansaço que não desprende de mim." (Raquel Medeiros)

6 de junho de 2005


Summer reading - Yuko Shimizu

Linhas
Raquel Medeiros

Linhas horizontais
Sinal de morte para os corações
Base onde pousam as palavras
Horizonte para os vagões.

Linhas verticais
Sinal de morte para os enforcados
Limite para as palavras
Alívio para os dias ensolarados.

No cruzamento
Eu brinco de jogo da velha
E cubro o teto de telha
Com a rapidez do vento.

E sem tormento
Espero a última interseção
Aquela onde repousará a minha mão
À cruz do meu pensamento.

Sobremesa: "Coisa dolorosa feita de barro e poeira/ o homem no seu quarto/ de noite/ pelejando pra escrever no papel/ com lápis/ nó e tropeço/ a dor do seu peito." (Adélia Prado)

2 de junho de 2005


Portrait of the devil & his fingers - Joe Sorren

Desculpem a ausência de textos meus. Mas é que o voyeurismo é tão demoníaco. =)

* Carta de Clarice Lispector a Fernando Sabino

Falta demônio nessa cidade
Clarice Lispector

Falta demônio em toda Suíça
Falta demônio em muitos lugares
Não falta no Brasil, e talvez seja esta a explicação para o encantamento que o país provoca em estrangeiros e nativos: é o feitiço da irreverência

Os Beatles tinham um demônio parcimonioso quando cantavam “she loves you ye ye ye” tornando-se mais famosos que Jesus Cristo. Só deixaram o demônio tomar conta em discos como “Sgt. Pepper’s”, “Álbum Branco” e “Abbey Road”, numa época em que Mick Jagger julgava-se o único representante de Lúcifer na terra. Há demônio no rock, em todas as bandas.

Há demônio no vinho, falta nos coquetéis
Há demônio no jeans, falta no linho
Há demônio nas fotos em preto e branco

Há demônio no cinema, não há na televisão
Há demônio em livros, não há em revistas

Há demônio em Picasso, Almodóvar, Wagner, Janis Joplin
Há demônio na chuva mais do que no sol
Há demônio no humor e na ironia, nenhum demônio no pastelão

Não há demônio em bichos e crianças
Espera aí! Volto atrás sobre as crianças
Em algumas há, mas somente nas muito especiais, as outras pensam que são espertas, mas são apenas mal-educadas

Na poesia há sempre demônio, na boa poesia!
Na poesia marginal
Na poesia de amor
Paixão é quando o demônio está nu
Sexo com quem ama é muito mais satânico, não precisa ser um amor pra sempre, pode ser um amor de repente, qualquer amor inferniza

Coca-cola tem mais demônio que Guaraná
A inteligência tem mais demônios que a simpatia
A vida tem mais demônio que a morte
Filosofia, psicanálise, beijo, aventura, silêncio
Um minuto de silêncio

O pensamento é o demo

O oriente tem
Manhattan tem
Berna não tem, como tudo que é neutro.

Sobremesa: "Há um estado de felicidade/ de não querer pensar nos momentos tristes/ que vão chegar/ é a influência do tempo/ assim como a felicidade/ o inverno chegou fingindo que vai ficar." (Raquel Medeiros)