28 de outubro de 2004

O pior dos atrasos
Raquel Medeiros

Cheguei tarde. Sei que cheguei. Não uso relógio. Não tenho um. Passei na banca e o jornaleiro só me disse que era tarde.
Eu devia saber. Sempre cheguei atrasada. Na aula, no trabalho, no médico, no jantar. E na tua cama não ia ser diferente.
Quando entrei no teu quarto, já tinhas vivido, amado e dormido. Lençóis amassados, com um cheiro que se misturava ao seu, mas não era o meu.
E o que faço agora? Me deprimo?
Sei que a partir de hoje não me reprimo mais. Não engulo mais o choro, não seguro a risada, não guardo mais o beijo. Que é pra não chegar tarde de novo... Que é pra não acabar antes do começo. Que é pra o fim fazer a sua parte quando realmente for o fim, quando meu amor já estiver gasto.

Sobremesa: "Estou sozinho que nem esse gato/ e muito mais sozinho ainda porque eu sei disso/ e ele não". (Julio Cortázar)

27 de outubro de 2004


O que eu adoro em ti é essa timidez que não cansa,
e teu sorriso - o mais bonito que já vi.

* Esse é Thiago Leal, na foto, com 2 anos... Hoje ele tem um pouco mais que isso, mas não perdeu esse jeito tímido... nem a doçura (mesmo negada)... Amo muito esse menino... =****************

Ao verde dos teus olhos e ao azul dos teus sonhos
Raquel Medeiros

A gente passa a vida inteira
Tentando encontrar a semelhança
Entre o adulto que perdeu a graça da brincadeira
E a criança que tinha tanta esperança.

Entre o adulto que na correria
Perdeu o movimento da dança
E não achou parceria
Para os sonhos de infância.

Mas não se afobe
Que um dia a gente acha
E tenha cuidado pra que teu adulto não afogue
A criança que deixa a gente mais leve
E torna a vida mais vasta.

Sobremesa: "Pra você faço uma prece/ pra que a dança nunca seja solitária/ pra que depois da tempestade venha sempre a bonança/ pra que a dor nunca seja autoritária/ e pra que alma seja sempre de criança" (Raquel Medeiros)

21 de outubro de 2004

Just one
Raquel Medeiros

Catarina viu Venâncio na rua. Dois anos desde a última vez, no dia em que terminaram. Ela estava no ônibus, com seu inseparável discman. Ele, andando na calçada. Usava os mesmos óculos escuros, o mesmo jeito de andar de quem está com medo que lhe dirijam a palavra. A mesma cabeça escondida entre os ombros.
Ela lembrou de quando estavam juntos, e ele falava de outros mundos, e coisas que ela sequer imaginava que existissem. Ela adorava. E acreditava. E queria viajar mais.
Ela ouvia o som da música dele mesmo na ausência. Ouvia a sua voz mesmo que ele não falasse. Ouvia o seu choro mesmo quando ele sorria. Ela adorava. E acreditava. E queria ouvir mais.
Ele dizia que eles eram inatingíveis, imensuráveis. Ela adorava. E acreditava. E queria ser mais.
Mas de repente eles já não viajavam, não se ouviam, nem eram nada juntos. Ela queria ir pra Barcelona e ele pra São Petersburgo; ele queria ouvir Wagner, e ela, Lou Reed; ela queria não ter medida, e ele queria um corpo menor pois a alma estava perdida.
Sentiu uma certa saudade de quando ouviam Bowie cantar “we can be heroes”, e hoje, no discman de Catarina, Bowie sempre repete “just one day”. Just one.

Sobremesa: "Ai daqueles que se amaram sem nenhuma briga/ aqueles que deixaram que a mágoa nova virasse a chaga antiga/ ai daqueles que se amaram sem saber que amar é pão feito em casa/ e que a pedra só não voa porque não quer/ não porque não tem asa". (Paulo Leminski)

20 de outubro de 2004

Lorena e sua sagrada vocação de faminta
Raquel Medeiros

Viu o corpo dele na fotografia
Parecia tão leve...
Ela tinha inveja mesmo era dos traços
Que não saiam da pele dele...

Através da foto – o espionava e o absorvia
Era vontade de sorver seu beijo
Era vontade de que passasse o dia
E que a noite viesse para efetivar o desejo.

Lembrava do quanto é bom quando ele está por perto
De quando brincam de ficar mudos...
O resto do mundo vira deserto
E nos olhos dele esquece tudo...

Queria livrar-se da poesia insuficiente
Que só fazia ausência
Queria que a poesia fosse eficiente
E construísse a sua presença.

Pedia repouso para as saudades
E dela, tinha dó
Pois sabia, que mesmo contra sua vontade
Não a deixava só.

Pedia compaixão
Que ele não lhe faltasse por tanto tempo...
Que dentro dela não havia um relógio; e sim um coração
E que cansava tê-lo só em pensamento.

Sobremesa: "Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida." (Clarice Lispector)

19 de outubro de 2004

"Bate outra vez com esperanças o meu coração"... Sim, as rimas estão de volta. =)

Vivo num morro... vivo, não morro
Raquel Medeiros

Morava num barraco rosa
Era uma tentativa de trazer a alegria
Era uma tentativa de trazer poesia
Pra sua vida cheia de prosa.

Seu vizinho era um velho sambista
Que dizia que “as rosas não falam”
Pois no jardim do artista
O perfume da amada, as rosas roubaram.

Januária tinha nome de canção
Aquela pra quem o sol desponta
Pra quem o sol aponta
Uma graça da qual nem tinha noção

Mas ao contrário da Carolina
Januária não esperava na janela
Sabia que pra se encontrar
Precisava ir além da esquina
Sabia que ir além tornava a vida mais bela.

Sobremesa: "Toda a gente homenageia/ Januária na janela/ até o mar faz maré cheia/ pra chegar mais perto dela". (Chico Buarque)

18 de outubro de 2004


..."olhos são mais dados a segredos". (Paulo Leminski)

Nada aqui é meu, com exceção da sobremesa e do sinal... o desenho é de Rafael Queiroz... a legenda é do Paulo Leminski... o prato principal é de Julio Cortázar...

"Me olhas, de perto me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam entre si, sobrepõem-se e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E, se nos mordemos, a dor é doce; e, se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te sinto tremular contra mim, como uma lua na água..."

Sobremesa: "E nesses olhares infinitos/ nessas reticências falantes/ ele mergulhou dentro dela, e tirou uma grande âncora/ fincada num dos abismos dos amores de antes". (Raquel Medeiros)

13 de outubro de 2004

A pedido de João, uma sobremesa doce... porque já chega o ácido do limão. =)

À falta de melhor nome
Raquel Medeiros

Às vezes ela ficava assim mesmo, sem freios, sem medida. Febril, delirava e transpirava vontade. Bastava um olhar, um leve morder de lábios, e lá estava ela - hipnotizada, fora de si; dentro do outro.
Os contornos; a falta de adornos. Cada centímetro de pele era uma descoberta - a cor, a textura, os pêlos. Tocava, beijava e contemplava cada pedacinho, como se quisesse gravá-los na mente, para as horas de fuga, nas noites de insônia. Horas de fuga?! Para ela, eram horas de encontro. De querer ser um só...
Júlia tentava fugir da passiva rotina que a esmagava, lembrando dos beijos e dos abraços. Da saliva falando ao ouvido. Das respirações confundidas. De ver seus olhos nos dele. Tantas e tantas noites tentando recordá-lo - olhos, boca, pele, sorriso, costas, nuca, cheiro e gosto. E quando, raramente, conseguia fazê-lo, ficava frustrada de não ter o toque. Ela sempre soube que pensar em feijoada não matava a fome. Sabia também que quando a gente sente o cheiro da comida, a boca saliva. A fome aumenta e fomenta o desejo.
Dieta severa de segunda à sexta. E a esperança de ter um banquete no fim-de-semana fazia com que ela não esmorecesse, não morresse de fome. Não tinha medo de vê-lo e sorvê-lo até a última gota. Não tinha medo de uma possível indigestão. O que a amedrontava era a solidão. Era a possibilidade de não tê-lo.

Sobremesa: "Põe a roupa de festa/ que hoje vamos dançar/ pois tudo o que nos resta/ são as risadas que a gente dá/ são as mágoas que a gente consegue findar/ não esqueça nunca, querida/ por mais danças solitárias/ que tenhas tido na vida/ a partir de hoje/ me tens sempre como par". (Raquel Medeiros)

11 de outubro de 2004


É proibido estacionar qualquer cor que não seja cinza

*A foto é de Gustavo Soares (não tenho certeza se ele assina assim). Valeu Guguinha =*******
www.fotolog.net/hum_rum

Colours
Raquel Medeiros

O dia cinza como ele só. Não estava frio. Estava cinza. Ponto. E eu querendo um pouco de cor. Uma que fosse, mesmo que fosse num tom bem devagarinho.
Choveu e eu fiquei esperando o arco-íris, pra ir lá e roubar um vermelho, um verde, ou um azul. Qualquer cor na verdade, contanto que não fosse esse cinza...
Eis que o bendito aparece. Andei. Andei muito. E quando já estou bem perto, vem a chuva novamente e desfaz o arco-íris. “Não podia esperar um pouquinho não?”. Eu nem queria o tal pote de ouro, não precisava. Queria só um pouco de cor.
Esperei a chuva passar lá mesmo, de pé. Água. Frio. Resisti. Muita água. Tanto frio... Desisti. Voltei pra casa cinza como o dia. E pior, peguei uma pneumonia, que me deixou ainda mais sem cor...

Sobremesa: "Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..." (Clarice Lispector)

8 de outubro de 2004

O Mágico de OZ e o nosso eterno lamento
Raquel Medeiros

Como dói essa ausência!
Essa eterna saudade que parece não cessar
Porém pior é o homem de lata
Que não tem coração para amar.

Como dói a compunção!
Por ter feito o que não devia fazer
Porém pior é o leão
Que não tem coragem de boas ações cometer.

Como doem esses meus calos!
Essas feridas que teimam em não cicatrizar
Porém pior é o espantalho
Que não tem cérebro que mande o prazer chegar.

Tantas lamúrias que chego a recordar
Que o espantalho, o leão e o homem de lata
Indo pedir ao Mágico o que lhes fazia falta
Descobrem que talvez não tivessem tanto o que reclamar.

E penso que pior que ser como o espantalho, o leão
E o homem de lata
É ter cérebro, coragem e coração
E ainda achar que a vida é ingrata.

Sobremesa: "A gente pede/ faz prece/ no copo d'água, a turbulência parece tempestade/ a gente busca um ideal de felicidade/ amor - dor + liberdade - responsabilidade + dinheiro - dívida + prazer - sofrer / e quando falta uma pitada de sal na comida/ tudo parece pela metade/ e a gente já não vê mais sentido na lida/ a gente já não vê mais graça em viver". (Raquel Medeiros)

6 de outubro de 2004

Insônia
Raquel Medeiros

O mal que me desanima
Devagarinho assim
Quisera fosse o Muro de Berlim
E não a Muralha da China.

À noite passada me visitou
Como alguém que tivesse morrido
E que não quer ser esquecido
Veio e ficou.

Se alastra como uma peste
Que remédio nenhum acaba
Às vezes parece um teste
Pra ver se meu corpo desaba.

Como teimosa eu sou!
Admito que às vezes fico cansada
Mas o prazer de me ver derrotada
Ah, este eu não lhe dou!

Sobremesa: "O olho acessa mas não recorda/ a mente se esforça tentando lembrar/ a insônia não cessa/ e a conversa dá corda/ pra coisas que o corpo insiste em desejar". (Raquel Medeiros)

* Valeu pela ajuda, Li... Por todas elas... =)

4 de outubro de 2004

Gênero predileto
Raquel Medeiros

E você pergunta meu tipo de filme predileto
Gosto de qualquer gênero, drama ou ação
Desde que o mocinho nem sempre seja reto
Que haja aqui e ali uma bifurcação.

E que no final haja um beijo ou uma morte
Pra que eu saiba que algo vai mudar
E que a música triste só toque
Se for pra me fazer chorar.

Que a mocinha goste de orquídeas ou girassóis
E que o mocinho até saber disso, lhe traga sempre rosas
Que é pra eu saber que as horas penosas
Um dia acabam desatando os nós.

Sobremesa: "Não me importo se a mocinha termina bem/ desde que ela seja humana/ e que dependendo da circuntância/ possa cometer um assalto/ ou jogar tudo para o alto/ que ela tenha alguma ferida/ que seja pervertida/ que tenha algo triste/ porque ser humano sem isso não existe/ a dor e o amor vêm pra todo mundo/ é a condição humana que insiste". (Raquel Medeiros)