5 de dezembro de 2010



Anna Karina em Le Petit Soldat, do Godard.


Domingo


Manhã de domingo assim, com o céu tão azul, só aumenta a melancolia.
Na vitrola tudo é melodia de saudade, cheiro de um encontro que não vai acontecer, mesmo com olhos e boca salivando.
Não consigo continuar aquele livro, meus pensamentos vão se misturando aos capítulos deixando tudo confuso e sem propósito. Graciliano que me perdoe, mas hoje não dá.
Nem consigo falar sozinha. Os espaços grandes demais. O que digo num cômodo, no outro se perde. A solidão e o silêncio me censuram.

Vou lavar a louça, fazer almoço para encher um único prato, sem o privilégio do tempero da fome. Qualquer coisa serve.
Depois vou rever os filmes de Godard que ganhei de uma pessoa querida. Vou deixar aquelas mulheres falarem por mim e fingir que hoje nem é domingo, que esse céu azul não me incomoda e que a saudade não me comove.

Tomara que funcione.


Sobremesa: "E eis que o anjo me disse, apertando a minha mão entre um sorriso de dentes: vai bicho, desafinar o coro dos contentes". (Jards Macalé)

4 de dezembro de 2010



Entre a Hora e a Amélia.


Versinho de verão

O corpo sob esse sol fica sem sombra
Tudo ferve, transpira, esbarra, confunde
Em casa, pés no chão, banho frio, fruta, cigarro
Já noite alta, a pele ainda quente anuncia: meio-dia.


Sobremesa: Everybody's got the fever, that is something you all know. Fever isn't such a new thing, fever started long ago.

24 de novembro de 2010



"O sexo está nelas, e o mundo está nelas. E a loucura reside nesse mundo." (Vinicius de Moraes)


Inquietude


Somos dramáticas, segundo ela. Queremos amor de mais, beleza de mais, realizações de mais. Ganhar o jogo no domingo não nos satisfaz, não ganhamos o dia numa partida de videogame. Mesmo na alegria, estamos inquietas, queremos mais, queremos tudo.

Na contramão, estamos sempre procurando o caminho do meio, o equilíbrio. Mas o que é isso para quem é – naturalmente – desequilibrada?! Nem todo mundo nasceu pra malabarista. Por isso, existem os palhaços que fazem de si a própria piada, os mágicos que iludem e há os bailarinos, que na beleza da dança esquecem os próprios calos.

Mulher tenta sempre ser um pouco equilibrista, mesmo quando a vontade é pôr fogo no circo. Um chá, yoga, comida, cerveja, sexo, cigarro, uma corrida no quarteirão. O equilíbrio está sempre em algo que não nos pertence. Não é nosso. Equilibramos a dor com o salto, o batom e a cor das unhas com o desejo, o tamanho da saia com o pecado, o cabelo com a vontade de mudar. No dia seguinte, tênis, acetona, jeans e lenço.

Somos tantas. Enlouquecidas, melancólicas, saudáveis, destrutivas, apaixonadas, incomodadas, tranqüilas, infernizadas, encantadoras. Pacote completo, sem manual de instrução.


Sobremesa: "Diz Frank Sinatra que a arte de conquistar uma mulher se resume em compreender o que ela não diz... Terá Sinatra razão?" (Clarice Lispector)

2 de agosto de 2010


Edward Hopper, Solitary figure in theater, 1902-04

Das Dores

Invejo a chuva que escorre na janela. O céu chora sem constrangimento quando a angústia aperta. Eu não. Tenho que sofrer sem soluço, sem alarde. Tenho que pagar as contas, ligar pra diarista, fazer a feira e fingir que o rio flui sem turbulência. Tenho que ser forte e distribuir bom dias como se realmente fosse.

A dor pode apontar com aquela música enviada num email, com um trecho do livro aberto ao acaso, com um perfume que caminha dentro do ônibus, num convite, entre o almoço e a sobremesa, na hora que você precisa estar centrada, concentrada.

Mas choro exige entrega, e nem sempre convém. Como evitar o olhar de estranhamento no sacolejo do coletivo, na mesa de trabalho, entre as estantes da livraria?

E vou levando, engolindo o que a essa altura já é mais veneno que desabafo. Uma guerra fria que mata a paciência, o bom humor, o apetite, o sono. E que sangra no travesseiro, encharcado de dúvidas.


Sobremesa: Um táxi, por favor.

12 de julho de 2010


Harvey Pekar e Robert Crumb.

American Splendor

É preciso acordar bem, descansada e sem olheiras. Corretivo suaviza o último. Fazer o melhor no trabalho, juntar as melhores palavras até para vender pesadelo. Alimentar-se bem e resolver todas as dívidas em duas horas de almoço. É preciso controlar o corpo e o tempo, mesmo sabendo que quem ri por último é o último. Ser melhor vizinha, irmã, filha, amiga, mulher, dona de casa, cidadã. E depois é preciso dormir oito horas. Porque é melhor. Sem contestação.

É preciso ser melhor, em tudo. E nunca somos o suficiente.

Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Salve Clarice.

As frustrações e paixões cotidianas, o funcionário da mesa ao lado, o cidadão americano, a incapacidade de ser diferente. De ser melhor?
Assim conheci Harvey Pekar, irônico, ácido e frágil. Cheio de falhas, dores e paixões. Tão talentoso e tão triste. De tão ranzinza se tornou engraçado. E sem querer ser melhor, se tornou único. Imperfeito, como qualquer humano. Perfeito como só os anti-heróis conseguem ser.


Sobremesa: Cleveland, 8 de Outubro de 1939 — 12 de Julho de 2010.

25 de abril de 2010


muso para sempre.

Vol. 1

Eu que te amo e por vezes resisto, sigo me identificando com os cronópios. Os calos nos pés decorrentes do meu descuido, as olheiras-fruto das nossas conversas insistentes madrugada afora. Nem sempre é adequado, perdemos o ônibus com a cabeça já perdida. Nos damos mal. E nessa hora, sempre aparece um fama, eu te disse. Não importa. Seguimos entrando nos bares onde a música convida, dançando nossos próprios passos, descompassados. Bebemos vinho e falamos sobre saudades, pessoas distantes, poemas e histórias inúteis.
Os famas sentados no bar riem de nós que rimos de nossos tropeços. Eles não sabem o que é ter ressaca, nunca ficam bêbados, nos condenam e seguem para suas casas. Um banho e um copo de leite quente antes de dormir.
E nós, continuamos na rua, vagando pelas calçadas do centro, rodopiando e cantando nossas canções preferidas. Depois sentamos num balcão, tomamos um café para curar nossas dores, a bebedeira, a saudade, as cicatrizes da guerra e os amores que perdemos pelo caminho.
No dia seguinte, os famas acordam cedo, tomam café com frutas e pão quente, enquanto lêem seus jornais na ordem dos cadernos. Nós cronópios acordamos sem saber que horas são, colocamos um vinil na vitrola e nos emocionamos quando toca aquele refrão. Não seguimos roteiro, a vida é que nos segue, encantada com nossos olhos de novidade sobre o horizonte, essa linha nunca reta pra nós.


Sobremesa: "Por isso ganhamos o direito de falar assim um com o outro, agora que sem a mínima possibilidade imaginável acaba de me chegar sua resposta, sua própria garrafa-ao-mar espatifando-se nos rochedos desta baía para me encher de uma delícia sob a qual pulsa uma espécie de medo, um medo que não aplaca a delícia, que a torna assustadora, situando-a fora de toda carne e de todo tempo como você e eu sem dúvida sempre quisemos, cada um à sua maneira". (Julio Cortázar)