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5 de dezembro de 2010



Anna Karina em Le Petit Soldat, do Godard.


Domingo


Manhã de domingo assim, com o céu tão azul, só aumenta a melancolia.
Na vitrola tudo é melodia de saudade, cheiro de um encontro que não vai acontecer, mesmo com olhos e boca salivando.
Não consigo continuar aquele livro, meus pensamentos vão se misturando aos capítulos deixando tudo confuso e sem propósito. Graciliano que me perdoe, mas hoje não dá.
Nem consigo falar sozinha. Os espaços grandes demais. O que digo num cômodo, no outro se perde. A solidão e o silêncio me censuram.

Vou lavar a louça, fazer almoço para encher um único prato, sem o privilégio do tempero da fome. Qualquer coisa serve.
Depois vou rever os filmes de Godard que ganhei de uma pessoa querida. Vou deixar aquelas mulheres falarem por mim e fingir que hoje nem é domingo, que esse céu azul não me incomoda e que a saudade não me comove.

Tomara que funcione.


Sobremesa: "E eis que o anjo me disse, apertando a minha mão entre um sorriso de dentes: vai bicho, desafinar o coro dos contentes". (Jards Macalé)

4 de dezembro de 2010



Entre a Hora e a Amélia.


Versinho de verão

O corpo sob esse sol fica sem sombra
Tudo ferve, transpira, esbarra, confunde
Em casa, pés no chão, banho frio, fruta, cigarro
Já noite alta, a pele ainda quente anuncia: meio-dia.


Sobremesa: Everybody's got the fever, that is something you all know. Fever isn't such a new thing, fever started long ago.

2 de agosto de 2010


Edward Hopper, Solitary figure in theater, 1902-04

Das Dores

Invejo a chuva que escorre na janela. O céu chora sem constrangimento quando a angústia aperta. Eu não. Tenho que sofrer sem soluço, sem alarde. Tenho que pagar as contas, ligar pra diarista, fazer a feira e fingir que o rio flui sem turbulência. Tenho que ser forte e distribuir bom dias como se realmente fosse.

A dor pode apontar com aquela música enviada num email, com um trecho do livro aberto ao acaso, com um perfume que caminha dentro do ônibus, num convite, entre o almoço e a sobremesa, na hora que você precisa estar centrada, concentrada.

Mas choro exige entrega, e nem sempre convém. Como evitar o olhar de estranhamento no sacolejo do coletivo, na mesa de trabalho, entre as estantes da livraria?

E vou levando, engolindo o que a essa altura já é mais veneno que desabafo. Uma guerra fria que mata a paciência, o bom humor, o apetite, o sono. E que sangra no travesseiro, encharcado de dúvidas.


Sobremesa: Um táxi, por favor.

26 de agosto de 2008


eleven a.m. - edward hopper

Sexta-feira

Acordou como sempre – com dívida de sono - mas com uma dúvida se teria sido sonho mesmo. Dava pra sentir o cheiro – pensou. Será que as pessoas se encontram enquanto dormem? Não, não, isso é roteiro pra filme existencialista belga. Eu tenho contas a pagar – constatou.

A manhã no trabalho foi leve – coisa rara numa sexta-feira.
A tarde – como de costume – demorou a passar. Mil coisas a fazer. Leia. Escreva. Revise. Tente outra vez sem essa expressão. Tente outra vez sem tédio. Tente outra vez. Tente outra.
Por volta das 18:00, enquanto olhava a tela do computador, as letras se embaralhavam em meio as lágrimas saídas de um olho só. Meu ouvido dói. Meu olho esquerdo não pisca. Minha língua está dormente. Meus lábios não se movem coordenadamente.

Você está com paralisia facial – disse a mãe.

É, existe uma paralisia facial, decorrente de um vírus no ouvido, agravada por stress – disse o médico.

Quatro comprimidos de corticóide por dia. Depois de duas semanas diminui pra dois, depois um, e então meio comprimido por dia. Antibiótico de 4 em 4 horas, por 30 dias. Colírio e gel pra não ressecar o olho. Curativo em cima pra tentar dormir.

Não leia. Não assista filmes com legenda. Não costure. Não fique no computador. Não beba. Não chocolates. (...).

Posso ouvir música?

Não muito alto, nem em fones de ouvido. Repouso, você precisa de muito repouso.


E assim a vida ganhou uma pausa inesperada. Os livros acumulando poeira. Bolor no bolo de chocolate. Cinqüenta e-mails não lidos. Trinta noites mal dormidas (além das tantas acumuladas nos seus quase 30 anos). Nenhum sorriso em um mês. Nada programado, por tempo indeterminado.


E, ao final de 30 dias, mais uma sentença:
Trinta dias desse remédio, dois comprimidos por dia. Dez sessões de fisioterapia. E duas injeções por semana, durante um mês.


Voltou rápido para o trabalho, mas o sorriso veio lento. Dores de cabeça todos os dias - nenhuma de ressaca. Chá de espinheira santa para o estômago, erva doce pra dor, camomila pra dormir. Dois pequenos hematomas na nádega e dor muscular às terças e sextas.

Às vésperas de acabar o tratamento, já 100% recuperada dos movimentos, ela só pensava o quanto era bom mastigar, enxergar e falar direito e, vez por outra, rir disso tudo.


Sobremesa: "já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou, e tudo fugiu, e tudo mofou, e agora, José?" (Carlos Drummond de Andrade)

18 de abril de 2008


woman on her way home
matt murphy


Todo dia é primeiro de abril


Pesava pouco mais de 40 quilos, mas ao final do dia, sua alma indicava uns 200.
Acordar era difícil. Levanta, come alguma coisa – quando a náusea está mais amena – toma um banho e sai. Enquanto espera o ônibus pensa “o que estou esperando aqui? O que estou fazendo aqui, esperando?".
Mesmo assim pegava o ônibus e ia para o trabalho.

“Fulano é um ótimo médico, leve seu filho lá”. E Fulano havia sido acusado de pedofilia em 3 das 5 cidades onde morou.

“Essa farmácia é ótima! Credibilidade e qualidade que você só encontra aqui”. Mas o dono – na verdade – era um traficante, que vendia farinha pra evitar filhos e lexotan fantasiado de ass infantil.

“Uma cabeleireira com um olho mágico, 5 minutos e você tem o corte dos seus sonhos”. Na verdade você tem o corte por 5 minutos, depois seus cabelos vão começar a cair.

E depois de tanto mentir por profissão, ela cansava das pessoas que mentiam por vocação. Dava náuseas ouvi-las falar, sentia nojo de olhos recheados de falsidade, de sorrisos que só escondiam a punhalada pelas costas.
O que a confortava é que a sua vida – fora do trabalho – era de verdade. O amor, as amizades (àquelas mais de colo que de copo), o ombro da mãe, a cumplicidade da irmã, o choro, o riso, o abraço, a fome e o fastio, a insônia e o cansaço, a música e a dança.
A dor de mentir não amenizava no final do mês, mas era necessária porque – ao contrário do seu trabalho – suas contas eram todas verdadeiras e não aceitavam mentiras como desculpa!
Ela não tem sonhos de grandeza, o que ela quer mesmo é – num futuro breve – ter o dia mais preenchido com pequenas verdades que com grandes mentiras.

* Os clientes citados são de mentira. Mas que diferença faz?!


Sobremesa: "Na segunda-feira, parte da família foi para os seus respectivos empregos, já que é preciso morrer de alguma coisa". (Julio Cortázar)

11 de abril de 2008


eu quero paz...


Um galho de arruda para aliviar meu coração

Raquel Medeiros

Hoje estou me sentindo cansada, como quando era criança e minha avó dizia “essa menina tá ‘mufina’, se não for doença, é mau-olhado”. A doença não vinha, mas o cansaço não saía. Era uma moleza estranha, uma fraqueza para andar, para viver. Aí vinha minha avó, me rezar com um galhinho de arruda. Depois de umas palavras de amor e fé ditas bem baixinho (porque tem gente que acha que Deus é surdo) era o pobre galho que ficava ‘mufino’.

Em mim, já não havia mais peso... era uma sensação boa e leve. Ela falava com carinho e aquelas folhas percorriam meus braços, minha cabeça, minhas pernas, minhas dores. E ao final, levavam todas elas (as dores) embora pra algum lugar longe de mim.
Era um ritual mágico. Tinha que ser num lugar aberto (pra que a dor não se escondesse debaixo de algum armário, dentro de uma gaveta esquecida aberta). Tinha que ser de dia e, o mais importante, a reza tinha que vir de alguém com o coração cheio de sentimentos bons, e isso ela tinha de sobra...
Minha mãe diz que eu pareço com ela. Era pequena, teimosa, fumante, adorava café e detestava ameixas e mamão.

Costurava uns vestidinhos com um bolso interno, pra não ser assaltada ao sair do banco com sua pequena aposentadoria. Levava rosquinhas sempre que ia lá em casa. Um maço de cigarros para o meu pai e um agrado até para o cachorro. Fazia um cafuné tão bom que a gente fazia fila pra sentar no chão entre as suas pernas. Detestava que a fizessem de boba. Não fugia de briga, nem de festa. Andava sempre cheirosa e pintava o cabelo sozinha, no alto dos seus 86 anos.
Hoje estou me sentindo cansada. Queria uma reza com galho de arruda. Queria aquelas mãos enrugadas me fazendo cafuné.

Sobremesa: "Lembra o tempo que você sentia e sentir era a forma mais sábia de saber e você nem sabia?". (Alice Ruiz)

17 de março de 2008


desde cedo eu já trocava a noite pelo dia.

Texto para não dormir

Raquel Medeiros

O dia clareando a janela e meu sono difícil. Impossível adormecer as 6 e acordar bem às 7:30. “É melhor levantar de uma vez”, lamentei. E fiz. Tomei café, e enquanto fumava o primeiro cigarro do dia, veio o sono. Água fria nele!
Uma música, um carinho no cachorro, e lá vem ele de novo – o sono. Arrumo-me às pressas (pra evitar a elaboração de uma desculpa) e saio.

O sol inclemente lá fora. Sem pilha, sem música, sem paciência. Entro no ônibus. O cobrador reclama da coluna e me dá o troco sem responder meu bom dia. Acontece. Sento e quando o veículo começa a balançar menos sinto o peso nas pálpebras. “Acorda, Raquel, sua parada é a próxima”, constato.

Desço do ônibus, acendo um cigarro. O dia está lindo, mas quente como o inferno (e há quem pense que não é aqui). Chego ao trabalho, ligo o computador. Vejo emails, algumas notícias, a pauta do dia e levanto pra tomar um café antes que eu adormeça com a testa na tecla “z”.

Um café, um cigarro. Termino a minha pauta ainda de manhã. Um alívio seguido de um bocejo. Hora do almoço, Como pouco (o sono maior que a fome), volto para o trabalho (agora sim tenho certeza que o inferno é aqui). Sento no computador: nenhum email não lido, nenhum trabalho pra fazer, o dia muito quente (mesmo aqui dentro) para tomar o terceiro café.

“Melhor escrever pra passar o sono”, penso. Termino e agora não sei mais o que fazer pra ele ir embora. Acho que vou encarar o café quente.

Sobremesa: "Eu faço samba e amor até mais tarde e tenho muito sono de manhã". (Chico Buarque)

30 de outubro de 2007



Portrait of the devil and his fingers
Joe Sorren

Retalhos do cotidiano sem backspace
Raquel Medeiros

“Computadores são demônios que as redações de jornal e as agências de publicidade usam pra infernizar a vida da gente”.
Acabo de ouvir isso de um cliente que, apesar da barba e cabelos grisalhos, não deve ter mais de 46 anos. Ele conseguiu me provar por a + b que não faz a mínima idéia do que fazer com essas criaturas sem chifre.

- Posso mandar um e-mail do seu computador?
- Claro. Fique à vontade.
- E como eu mando esse cartaz por e-mail?
- É só anexar.
- E como eu faço isso? Aliás, você faria isso?
- Faço sim, mas o arquivo está em corel. A pessoa pra quem você quer enviar tem corel?
- Não sei. O que é corel?
- Não vai por e-mail, muito pesado o arquivo.
- O que eu faço então?
- Reza.

Sobremesa: Eu adoro esses demônios que se instalam – alguns muito velhos e já sem tanto poder assim – nas redações, agências e todos os lugares (in)decentes do mundo. E me deleito com os ricos clientes mortais tão medrosos, tão teimosos, queimando no fogo do inferno, em meio a esses muitos e inevitáveis demônios. (Raquel Medeiros)

31 de maio de 2007


Ela não sabe quanta tristeza cabe numa solidão.
(Baden Powell e Vinicius de Morais)

*imagem de Joe Sorren.

Tudo embrulhado
Raquel Medeiros

Ando enjoando de tudo. Enjoada de tudo. Uma vontade de vomitar quando olho olhos rasos, sorrisos falsos e abraços desonestos. Eu odeio gente desonesta. Na fala e nos gestos. Vontade de vomitar quando ouço (começar) elogios rasgados e rasgáveis.

Argh! Odiar é forte demais, mas é preciso. É preciso navegar, odiar, amar, ser forte e dar com os ombros, com os pés, com as mãos e com silêncios aos barulhos que nos vão atrapalhando o caminho. Antes fossem pedras! Pelo menos daria pra riscar uma amarelinha no chão e tentar chegar ao céu num pé só.

Ando com desejo de tudo. Uma vontade de comer a vida, pedacinho a pedacinho. Ora devagar e com cautela; ora ávida e com urgência. Vontade de devorar cada palavra, abraço e afago amigo. Mastigar música com as pernas. Saborear as palavras, sentindo cada combinação de sílabas, doce ou salgada. Beber a saliva, o suor, o vinho e a lágrima.

Entretanto há os indigestos e desafetos. E esse feto que (me parece) há em mim, já vem com 32 dentes que rasgam minhas vísceras como um veneno de rato. Já vem com dores e odores que me deixam um tanto enjoada. Volto ao início.

Sinto as contrações e contradições. Vou ali parir uma dor, uma lágrima, uma dúvida. E quem sabe nasça em mim algo melhor.

Sobremesa: "Se não tivesse o amor/ se não tivesse essa dor/ e se não tivesse o sofrer/ e se não tivesse o chorar/ melhor era tudo se acabar". (Baden Powell)

29 de março de 2007



* imagem - Yuko Shimizu

Desabafo de um homem recém-chegado às ruas daqui
Raquel Medeiros

Eles levantam mas não acordam.

De dia essas ruas se enchem de olhos cansados
Zumbis de passos automáticos
Distraídos e descuidados.

Eles dormem mas não descansam.

À noite essas ruas se enchem de olhos risonhos
Tão cheios de graça
Tão vazios de sonho.

Eles vivem mas não sentem.

Sobremesa: "Ilusora de pessoas de outros lugares/ a cidade e sua fama vai além dos mares". (Chico Science)