30 de maio de 2005


"No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar." (Mário Quintana)

Terminal de passageiros
Fernando Bonassi

Eu tenho tanta saudade, mas tanta saudade de você, que poderia agarrar qualquer uma dessas perfumadas que me vão à frente em escadas rolantes. Roupas novíssimas pra despedidas. Encontros festivos. Passagens puídas de excitação por qualquer lugar diferente. Desaforos levados e trazidos a essa terra roxa e de fuso muito específico. Enquanto você estivesse aí viajando, alta demais pra mim, eu casaria com todas elas. Sem que me soubessem, daria a cada uma o seu carinho; sentiria em cada mordida o sabor de sua carne crua. Eu as sustentaria nos braços e nos bolsos; as amaria pra sempre e, quando você chegasse, fugiria de tudo. Me divorciaria do que poderia ser. Deixaria filhos pequenos, patrimônio hipotecado e alguma lembrança triste.

Sobremesa: "Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto/ esse eterno levantar-se depois de cada queda/ essa busca de equilíbrio no fio da navalha/ essa terrível coragem diante do grande medo/ e esse medo infantil de ter pequenas coragens." (Vinicius de Moraes)

23 de maio de 2005


In her silent way - Joe Sorren

Súplica da alma vazia
Raquel Medeiros

O corpo num silêncio de igreja vazia
O coração, o próprio Cristo-morto
E os bancos onde já sentaram
Homens de coração bom e de coração torto
São os braços que não reagem à apatia
Por força da dor
Que rejeita à razão o segredo da confissão.

Mas sim, há uma redenção!
No olhar, ainda vê-se a beleza dos vitrais
E aquela chama que sinaliza a presença
Mesmo na ausência
Consegue ver beleza nos ais.

Eu suplico
Aquele santo de olhar perdido
Não quero Pai-Nossos como castigo
Para ter o perdão
Quero é que enxergues o quanto estou aflito
E já que és perito
Dá-me logo a salvação!

Sobremesa: "Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir/ pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir/ pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair/ Deus lhe pague." (Chico Buarque)

20 de maio de 2005


Bells whistles - Yuko Shimizu

Embriaga-te
Charles Baudelaire

Deve- se estar sempre bêbado.
É a única questão.
A fim de não se sentir o fardo horrível do tempo,
que parte tuas espáduas e te dobra sobre a terra.
É preciso te embriagares sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude?
A teu gosto, mas embriaga-te.
E se alguma vez sobre os degraus de um palácio,
sobre a verde relva de uma vala,
na sombria solidão de teu quarto,
tu te encontrares com a embriaguez já minorada ou finda,
peça ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio,
a tudo aquilo que gira, a tudo aquilo que voa,
a tudo aquilo que canta, a tudo aquilo que fala, a tudo aquilo que geme.
Pergunte que horas são.
E o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio, te responderão.
É hora de se embriagar !!!
Para não ser como os escravos martirizados pelo tempo, embriaga-te.
Embriaga-te sem cessar.
De vinho, de poesia ou de virtude.
A teu gosto.

Sobremesa: "De fato, o ódio é um licor precioso/ um veneno mais caro que os dos Borgia/ pois é feito de nosso sangue/ nossa saúde/ nosso sono/ e de dois terços de nosso amor!/ devemos ser avaros com ele!" (Conselho aos jovens literatos - Charles Baudelaire)

18 de maio de 2005


"Desconfia dos que não fumam.
O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar."
(Mário Quintana)

* Na foto, Rodrigo Amarante.
* É que a música que vou postar bem que podia ter sido composta por ele. Adoraria que ele a cantasse. Não deve ser à toa que eles gostam do Cake.

Where Would I Be?
Cake

I’ve been waiting for so long
I’ve been hoping your love’s not gone
Houses are sliding in the mud
Rivers are raging in your blood

Where would I be wihout your love?
Where would I be without your arms around me?

You were to be the only one
If I knew you I would not run
You have been cloudy, distant, dark
I’m thinking of noah and the ark

Where would I be without your love?
Where would I be without your arms around me?

Sobremesa: "Quem é mais sentimental que eu?!/ eu disse e nem assim se pôde evitar." (Rodrigo Amarante)

17 de maio de 2005


Monkey photographer - Nicholas Gurewitch

Como adestrar seres humanos
Raquel Medeiros

Feliciano era um belo canário. Vivia com a mulher, mas não tinham filhotes.
Um dia, Feliciano resolveu criar seres humanos. Só pra passar o tempo mesmo.
Construiu no quintal uma bela sala com tudo que os humanos precisariam pra viver – um sofá grande e confortável, tv a cabo, uma geladeira repleta de comida congelada, um forno microondas e um banheiro.
Eram cinco pessoas. Não havia muita discussão, a não ser quando o assunto era a posse do controle remoto.
A mulher de Feliciano sentia uma certa pena em deixar aquelas criaturas ali presas. E certo dia tentou convenver o marido a soltá-los. Mas ele argumentava, dizia que eles não saberiam lidar com o mundo lá fora, se virar sozinhos. Ela, em contrapartida, dizia que o lugar deles era no mundo, conhecendo lugares e outros seres humanos, criando e melhorando as coisas lá fora.
Feliciano foi convencido pela esposa. Deixou a porta da sala aberta, e para sua surpresa, ninguém saiu. Estavam todos comprimidos no sofá, olhos atentos ao último capítulo da novela.

Sobremesa: "E agora, José?" (Carlos Drummond de Andrade)

16 de maio de 2005


"Rain down/ rain down/ come on, rain down on me". (Radiohead)

Listen, the rain is falling
Raquel Medeiros

Esse estágio de auto-conhecimento é sempre muito complicado. Doloroso. Às vezes falta esperança de que isso realmente passe. Porque essa história de “essas coisas ruins que estão acontecendo com você vão te fazer crescer, vão te fazer bem” de vez em quando soa muito como conversa de perdedor. E eu tenho perdido muito. O sonho e o sono. Tenho 2 centímetros de olheiras e tenho sido implacável com os outros e ainda mais, comigo mesma.
Dizem que a tristeza é companheira dos bons escritores, que com ela o tiro é certeiro no coração dos outros. Concordo com os outros. Discordo comigo. Primeiro porque me falta o talento de ver a tristeza como inspiração e não como carrasco. Segundo porque trocaria essa tristeza que “escreve belos textos” por felicidade.
Hoje quero a felicidade medíocre de comprar pão no domingo, na padaria da esquina. Se é que alguém consegue ser realmente feliz no domingo...

Sobremesa: "Essas tentativas de inverno/ melhoram o humor/ o que mata é esse gosto de guarda-chuva que não sai da boca/ é esse gosto de 'auto-desamor'." (Raquel Medeiros)

12 de maio de 2005


"Para que apaguem-se bruscos as marcas do meu sofrer" (Ana Cristina Cesar)

Do it yourself
Raquel Medeiros

Deitada, alma e olhar tristes. Nicole sentia-se incompetente. Nem morrer conseguia.
Um dia comprou um desses manuais para suicidas. Das opções oferecidas as únicas que lhe atraiam era cortar os pulsos, e tomar uma quantidade imensurável de remédios.

Um domingo qualquer.
Nicole decidiu que cortaria os pulsos. Tão dramático todo aquele sangue sujando o banheiro. Era clichê, ela também achava. Mas estaria morta, o que importaria depois?
Pegou a gilete, olhou o manual pra ter certeza de que faria o corte da maneira certa, mas olhou para os seus pulsos e parecia que as veias haviam fugido. A pele pálida e fria que até parecia morta. Todo o sangue passava longe dali. Perdeu a vontade. Desistiu.

Um outro domingo qualquer.
Nicole resolveu que dessa vez seria com remédios. Não falharia. Nada de pulsos pálidos. Não precisaria de sangue. Achava que esse tipo de suicídio tinha o seu glamour. O corpo caído com o melhor vestido. Os vidros de remédios vazios, um deles solto da mão, num braço esticado. Morto.
Foi até o banheiro. Não havia criatividade na escolha do lugar, é verdade. Mas e daí? Há alguma originalidade em se morrer dormindo? E mesmo assim tanta gente não deseja morrer assim?
Olhou-se no espelho e achou aquele rosto pouco familiar. Parecia outra pessoa. Não era a Nicole de antes. Parecia desfigurada. Desistiu. Suicídio tudo bem, mas daí a virar assassina era outra história. Passou o dia vendo fotos antigas, tentando reconhecer aquela que vira no espelho.

Deitada, alma e olhar tristes. Nicole não sabia. Mas estes já eram sinais de morte.

Sobremesa: "Quando eu morrer/ anjos meus/ fazei-me desaparecer/ sumir/ evaporar/ desta terra louca/ (...)/ para que eu não fique exposto/ em algum necrotério branco/ para que não me cortem o ventre/ com propósitos autopsianos." (Ana Cristina Cesar)

5 de maio de 2005


ssshhhhhh...

Agora falando sério
Preferia não falar
Nada que distraísse
O sono difícil
Como acalanto
Eu quero fazer silêncio
Um silêncio tão doente
Do vizinho reclamar.

(Chico Buarque)

Sobremesa: ssshhhhhh...

3 de maio de 2005


I can't take my eyes off of you...

Rascunho de carta. Rascunho de vida
Raquel Medeiros

Sebastian,

Essa é mais uma carta que te escrevo. Já foram tantas... todas sem resposta.
Faz frio aqui. Gela o seio e o anseio. Não é falta de ter alguém. É a sua falta. O jeito com o qual se despedia e subia na motocicleta. Colocava o capacete bem devagar e soltava um sorriso safado. Eu adorava isso... Adorava o demônio que existe em você – me tentava, me desorientava...
O cigarro acabou. O café tá amargo. A vitrola quebrou. Tudo desandou depois que você se foi. Eu desaprendi a cuidar de mim. Eu desaprendi a olhar pra mim. No espelho só vejo as marcas que você deixou no meu corpo, nos meus olhos, na minha alma.
Era pra ser pra sempre.
E eu, que sempre fui amante dos verbos, tive que me acostumar a ser mais substantivo – saudade, solidão, tristeza.
Caso você leia esta carta, saiba que estou mudando. E se você voltar, procura um quarto verde. E se eu não estiver, pode ficar à vontade. E aqui registro a vontade de te ver voltar.

Com saudades,
Claire.

Sobremesa: "So if it's true/ that love will never die/ then why do the lovers work so hard/ to stay alive?" (The Cardigans)

2 de maio de 2005


Saudades das cores de Almodóvar...

À palo seco
Belchior

Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo eu me desesperava
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 76
Eu ando um pouco descontente
Desesperadamente eu canto em português.

Tenho 25 anos de sonho e de sangue
E de América do Sul
Mas por força do meu destino
Um tango argentino
Me cai bem melhor que o blues
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 76
Eu quero é que esse canto torto feito faca
Corte a carne de vocês.

Sobremesa: "Se alguém por mim perguntar/ diga que eu só vou voltar/ quando me encontrar." (Cartola)