23 de novembro de 2007


Gossip face - Muntsa Vicente

Amarcadamarca
Raquel Medeiros

Amar cada marca
Amar cada mar cá
Amar cá, dá marca.

Sobremesa: "só doer/não é dor/delícia/de experimentador" (Paulo Leminski)

30 de outubro de 2007



Portrait of the devil and his fingers
Joe Sorren

Retalhos do cotidiano sem backspace
Raquel Medeiros

“Computadores são demônios que as redações de jornal e as agências de publicidade usam pra infernizar a vida da gente”.
Acabo de ouvir isso de um cliente que, apesar da barba e cabelos grisalhos, não deve ter mais de 46 anos. Ele conseguiu me provar por a + b que não faz a mínima idéia do que fazer com essas criaturas sem chifre.

- Posso mandar um e-mail do seu computador?
- Claro. Fique à vontade.
- E como eu mando esse cartaz por e-mail?
- É só anexar.
- E como eu faço isso? Aliás, você faria isso?
- Faço sim, mas o arquivo está em corel. A pessoa pra quem você quer enviar tem corel?
- Não sei. O que é corel?
- Não vai por e-mail, muito pesado o arquivo.
- O que eu faço então?
- Reza.

Sobremesa: Eu adoro esses demônios que se instalam – alguns muito velhos e já sem tanto poder assim – nas redações, agências e todos os lugares (in)decentes do mundo. E me deleito com os ricos clientes mortais tão medrosos, tão teimosos, queimando no fogo do inferno, em meio a esses muitos e inevitáveis demônios. (Raquel Medeiros)

9 de outubro de 2007


Duas colheres de ânimo para começar o dia.

Amanhã não se sabe
Raquel Medeiros

“Não se afobe não, que nada é pra já”. Chico repete isso no meu ouvido e eu me repito como um mantra. Eu sofro de uma ansiedade quase doentia: minhas unhas estão ruídas, minhas olheiras estão enormes, minha insônia é visita constante e aqui e ali tenho ostentado um cigarro entre o indicador e o dedo médio. Mas não adianta, já diria o Leminski - que os problemas têm família grande - e cá estou eu a fazer sala para todos eles.

Não quero aqui fazer um texto pra chorar minhas pitangas, pois há coisas boas acontecendo neste tempo de semi-exílio. Tenho fumado menos que antes (apesar da angústia), tenho saído menos (e me poupado de companhias e ressacas indesejáveis), tenho dado passos – pequenos, porém firmes – para um projeto que sempre quis. Logo vocês vão saber. Tenho essa mania – agora, depois de velha – de ser mais cuidadosa em falar sobre meus planos, pra evitar a fadiga e o mau-olhado (depois de velha a gente também começa a acreditar em certas coisas).

Hoje não tem poesia, nem prosa. Só um feijão com arroz que tenho requentado nesses últimos meses. Mas sinto um gosto bom na boca, uma sensação boa no peito. É, além de uma fumante ansiosa, eu sou otimista. E apesar de ter dias – constantes – em que queria ficar invisível e deixar de ser substantivo – tristeza e dúvida -, acredito que ainda posso ser verbo – ser muito mais.

Sobremesa: "Se o tempo passou, espero que ninguém me leve a mal/ mas se o samba quer que eu prossiga/ eu não contrario não/ com o samba eu não compro briga/ do samba eu não abro mão". (Chico Buarque)

2 de outubro de 2007


"Mulher é desdobrável". (Adélia Prado)

As Três Marias
Raquel Medeiros

Maria das Dores
Não tinha pai nem mãe
Não sabia ler nem escrever
Mas carregava uma trouxa de roupa como ninguém
Lavava copo, prato e colher.
Enquanto vê seu reflexo no fundo da panela
Uma gota de suor escorre no rosto
Mas não há espaço para cansaço.
Nunca teve relógio
Mas sabe como o tempo é curto para tanto trabalho.
Enquanto torce a roupa ela chora sua sorte
E pensa na filha que carrega no ventre
“Antes de nascer já de bucho encostado no tanque”.

Maria Aparecida
Filha de Maria das Dores
Não tinha pai
Nasceu no quarto dos fundos
Sabia escrever o nome, mas não sabia ler
Cozinhava como ninguém
Vaca, boi, bode e o que viesse
Não tinha bicho que não morresse
Na ponta da sua faca
Não tinha gente que não a admirasse
Na ponta do garfo
Enquanto junta as penas da galinha
Sente pena da barriga já crescida.
“Cá estou eu com outra Maria no bucho”.

Maria do Socorro
Filha de Maria Aparecida
O pai foi assassinado
Apareceu no mundo antes do tempo
Aprendeu a ler e a escrever antes dos 5 anos
Cresceu e logo aprendeu a manusear arma
Não lavava, não passava
Não sabia cozinhar nem polir panela
Mas tinha sempre uma bala na agulha
E um olhar afiado
Não tinha gente que não tivesse medo dela
José foi morto na mira do seu olhar
E enquanto chorava, alisava a barriga
“Que esta Maria tenha mais sorte na vida”.

Sobremesa: "Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento/ e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas/ Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam/ mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar/ e quem chegar perto pega fogo". (Eduardo Galeano)

20 de setembro de 2007


Winter’s here
And there ain’t nothing gonna change. (Beth Gibbons)

Lamento
Raquel Medeiros

Noite. Ela construindo na mente cada detalhe. Primeiro foram os ombros... ah! Como queria encostar a cabeça naquele ombro e ver a vida passar como num filme. Os braços, armas de um abraço infalível. Como era difícil e doído pensar e não ter. Imaginar e não sentir.
Cada pormenor surgindo como num plano detalhe que vai abrindo e revelando todas as virtudes e discrepâncias (a essa altura tão bem-vindas). Lembrou que ele adora essa palavra – discrepância. Lembrou que o lugar ao seu lado continuava vazio.
Ainda havia uma esperança de dormir. E de encontrá-lo, quem sabe, num sonho. Mas não. O contraste das nuvens no céu ficando cada vez maior. A saudade que latejava no peito dela também.
Onde ele estaria agora? Seria possível promover hoje um encontro com o futuro? Ela sabia que não. Já era dia.

Sobremesa: Teu olhar mata mais do que bala de carabina/ que veneno extriquinina/ que pexeira de baiano/ teu olhar mata mais que atropelamento de automóvel/ mata mais que bala de revólver. (Adoniran Barbosa)

21 de agosto de 2007


"I know I stand in line until you think
you have the time to spend an evening with me"
Something stupid – Nancy Sinatra

Jogo
Raquel Medeiros

Eu aqui tentando escrever sobre antropologia e ele sai com essa. “Vamos jogar...”. Eu precisava terminar o capítulo, pelo menos o parágrafo. Fiz de conta que não ouvi e que não queria. Mas ele me conhece e insistiu. “Vamos jogar...”. Eu abandonei o parágrafo e o Lipovetsky e sentei na frente dele. “O que você quer jogar?”, falei num tom desafiador. Ele me olha dizendo que minha tática não vai funcionar, desconfio que ele sabe exatamente o que fazer e tem uma certeza irritante de que eu vou gostar. Confesso que adoro quando ele me deixa assim, me excita ainda mais.

- Então, esse jogo não vai começar?
- Já começou. Diz ele.

Ainda não entendi bem qual o jogo, mas antevejo o intuito e gosto. Deixo-me levar pelas cartas que ele tem na manga, e alguns territórios já começam a ser tomados. Eu reluto, sem muito afinco. Ele é um ditador e me castiga por não obedecer as suas ordens. Admito que ele fica ainda mais charmoso na fantasia de carrasco.

Agora que já conheço o jogo, tento inverter os papéis e consigo. Ele me olha com surpresa e com uma felicidade que ele não admite, mas sente. Provoco batalhas, verdadeiros bombardeios em todos os nossos sentidos. Agora estamos de igual pra igual. Uma guerra declarada, o inferno. O calor é tão grande que o mundo evapora, o tempo se desfaz em relógios que derretem como uma pintura de Dalí. Surreal, mas, sobretudo humano. Exaustos, sorrimos ao final de um duelo sem perdedor.

Venho para o computador, e enquanto escrevo esse texto, ouço sua voz rouca entre um gemido e outro, acabando de acordar. “Vamos jogar...”.

Sobremesa: "O amor é o único jogo no qual dois podem jogar e ambos ganharem”. (Erma Freesman)

31 de maio de 2007


Ela não sabe quanta tristeza cabe numa solidão.
(Baden Powell e Vinicius de Morais)

*imagem de Joe Sorren.

Tudo embrulhado
Raquel Medeiros

Ando enjoando de tudo. Enjoada de tudo. Uma vontade de vomitar quando olho olhos rasos, sorrisos falsos e abraços desonestos. Eu odeio gente desonesta. Na fala e nos gestos. Vontade de vomitar quando ouço (começar) elogios rasgados e rasgáveis.

Argh! Odiar é forte demais, mas é preciso. É preciso navegar, odiar, amar, ser forte e dar com os ombros, com os pés, com as mãos e com silêncios aos barulhos que nos vão atrapalhando o caminho. Antes fossem pedras! Pelo menos daria pra riscar uma amarelinha no chão e tentar chegar ao céu num pé só.

Ando com desejo de tudo. Uma vontade de comer a vida, pedacinho a pedacinho. Ora devagar e com cautela; ora ávida e com urgência. Vontade de devorar cada palavra, abraço e afago amigo. Mastigar música com as pernas. Saborear as palavras, sentindo cada combinação de sílabas, doce ou salgada. Beber a saliva, o suor, o vinho e a lágrima.

Entretanto há os indigestos e desafetos. E esse feto que (me parece) há em mim, já vem com 32 dentes que rasgam minhas vísceras como um veneno de rato. Já vem com dores e odores que me deixam um tanto enjoada. Volto ao início.

Sinto as contrações e contradições. Vou ali parir uma dor, uma lágrima, uma dúvida. E quem sabe nasça em mim algo melhor.

Sobremesa: "Se não tivesse o amor/ se não tivesse essa dor/ e se não tivesse o sofrer/ e se não tivesse o chorar/ melhor era tudo se acabar". (Baden Powell)

29 de maio de 2007


Pedro perdido esperando o pôr-do-sol
num dia nublado.

Pedro Perdido
Raquel Medeiros

A esperança perdida
num bilhete premiado
permanece pobre pedro lascado
perdido num monte de dívida.

O filho caçula perdido na praia
a mulher perdida no ônibus errado
com bala perdida na cara.

Perdeu até a rima
perder de cabo a rabo
parece mesmo sua sina.

Sobremesa: "Só não vá se perder por aí" (Mutantes)

2 de maio de 2007



*montagem - Leonardo Soares

Lembra do Haroldo?
Raquel Medeiros

Haroldo era um grande empresário. É verdade que existem “muitos” por aí, mas ele sim, era dono de uma grande e bem-sucedida empresa de fraldas descartáveis. “Ninguém quer limpar urina e merda, nem deixar de ter filhos”, pensava ele. E não estava de todo errado. Dinheiro entrando aos montes. Soberba sobrando aos potes.

Haroldo não tinha filhos. Nem os queria, aliás, nada nem ninguém que viesse depois usufruir toda a sua fortuna.

Um dia Haroldo viajava para Petrópolis em sua BMW. O modelo não importa. O que importa é que Haroldo bateu com o carro numa velocidade que era quase impossível acreditar que ele tenha saído com vida. Mas saiu. Paraplégico.

Depois do acidente Haroldo enclausurou-se em sua mansão, num condomínio fechado por ele e só dele. Comprou uma cadeira de rodas que só faltava jogar cartas e passou o resto dos seus dias sendo chupado por putas que ele pagava e xingava, e elas, como vingança, esperavam que ele estivesse próximo do gozo, se distanciavam e ficavam rindo da cara dele. Pobre empresário rico, o Haroldo.

Sobremesa: "Mas problemas não se resolvem/ problemas têm família grande/ e aos domingos saem todos a passear/ o problema, sua senhora e outros pequenos probleminhas". (Paulo Leminski)

13 de abril de 2007


foto de Penha que Juracy guarda até hoje.

Penha e Juracy
Raquel Medeiros

Juracy e Penha trabalhavam no mesmo pronto-socorro. Ela, atendente. Ele, operador da máquina de raio X.
- Faz um raio X de mim, Juracy.
Ele fez. E se apaixonaram. Juracy pôde conhecer muito mais coisas da Penha do que dava pra ver no exame - as angústias, os medos, os desejos e uma vontade louca de casar.
Mas o romance não durou muito. Penha pediu demissão quando viu Juracy fazendo um raio X numa mulher bem mais nova que ela.
Juracy ainda trabalha no mesmo pronto-socorro, e continua sem saber o que fazer com a aliança que havia comprado pra pedir Penha em casamento.

Sobremesa: "Mas foi uma ilusão/ uma insensatez/ há que pôr o chão nos pés". (Chico Buarque)

29 de março de 2007



* imagem - Yuko Shimizu

Desabafo de um homem recém-chegado às ruas daqui
Raquel Medeiros

Eles levantam mas não acordam.

De dia essas ruas se enchem de olhos cansados
Zumbis de passos automáticos
Distraídos e descuidados.

Eles dormem mas não descansam.

À noite essas ruas se enchem de olhos risonhos
Tão cheios de graça
Tão vazios de sonho.

Eles vivem mas não sentem.

Sobremesa: "Ilusora de pessoas de outros lugares/ a cidade e sua fama vai além dos mares". (Chico Science)

19 de março de 2007


ilustração de John John Jess

[Trecho]
Dalton Trevisan

Ao tirar a calcinha, ele rasga. Puxa com força e rasga. Vai por cima. Ó mãezinha, e agora? Com falta de ar, afogueada, lavada de suor. Reza que fique por isso mesmo.

Chorando, suando, tremendo, o coração tosse no joelho. Ele a beija da cabeça ao pé — mil asas de borboleta à flor da pele. O medo já não é tanto. Ainda bem só aquilo. Perdido nas voltas de sua coxa, beija o umbiguinho.

Deita-se sobre ela — e entra nela. Que dá um berro de agonia: o cigarro aceso na palma da mão. Mas você pára? Nem ele.


Sobremesa: "Se é canto de Ossanha não vá/ que muito vai se arrepender". (Baden Powell/ Vinícius de Moraes)

22 de fevereiro de 2007


Adolfo e Rosália num banco de praça em Vila Prudente


Romance Chiclete

Raquel Medeiros


A abertura do papel – a porta para a eternidade.
Adolfo e Rosália se conheceram num banco de praça no bairro de Vila Prudente. Ela vestia amarelo e tinha um penteado esquisito desses que só se desfaz com bastante água quente. Ele vestia jeans e uma camisa dos Stones. Ela preferia Beatles, mas achava que Mick Jagger tinha mais charme que John Lennon.
Adolfo ofereceu um chiclete à Rosália, que de prontidão aceitou. Mastigaram-se com o desejo da primeira vez e com a avidez da última.

A sensação de eternidade que aquilo proporcionava era inevitável. Fazia os olhos de ambos brilharem. Coisas em comum – a mesma rua, o mesmo colégio, o mesmo filme do Coppola e – claro – o gosto por chicletes. E este não acabaria nunca.


A mastigação – macia e doce.
A relação deles era tão intensa, parecia que o chiclete estimulava a mastigação excessiva. E era tudo tão macio que Rosália e Adolfo quase flutuavam quando saíam juntos. E isso não era raro. Os moradores de Vila Prudente se referiam ao casal como “casal-chiclete”. Eles adoravam. Mascavam ainda com mais afinco e sorriam para todos.

Adolfo dormia quase todas as noites na casa da amada. Era um casamento em regime semi-aberto, aliás, como a maioria é. Mascavam como se o mundo pudesse acabar ali em volta deles, que nem dariam conta. Mas dar conta por que, se eles tinham a eternidade bem presa entre os dentes?!


O cansaço – a eternidade finita do céu da boca.
Depois de 5 anos, o maxilar da relação estava cansado de tanto mascar. Não conseguiam mais fingir que o doce ainda estava lá, e depois de tanto tempo na boca, o chiclete já não tinha – nem de longe – a maciez primeira.

Foi um choque quando se deram conta que mantinham aquilo muito mais por apego do que por vontade. A saliva ácida, os dentes fracos e um amargo no fim da linha. Chiclete com gosto de fel.

Um dia Rosália sentou no banco da mesma praça onde se conheceram. Pensou, mastigou e pesou o quanto era difícil admitir que não queria mais aquela eternidade. Ela tirou o chiclete da boca, colou embaixo do banco da praça e nunca mais viu Adolfo.

Sobremesa: "Adeus você/eu hoje vou pra o lado de lá/ eu tô levando tudo de mim/ que é pra não ter razão pra chorar". (Los Hermanos)