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2 de outubro de 2007


"Mulher é desdobrável". (Adélia Prado)

As Três Marias
Raquel Medeiros

Maria das Dores
Não tinha pai nem mãe
Não sabia ler nem escrever
Mas carregava uma trouxa de roupa como ninguém
Lavava copo, prato e colher.
Enquanto vê seu reflexo no fundo da panela
Uma gota de suor escorre no rosto
Mas não há espaço para cansaço.
Nunca teve relógio
Mas sabe como o tempo é curto para tanto trabalho.
Enquanto torce a roupa ela chora sua sorte
E pensa na filha que carrega no ventre
“Antes de nascer já de bucho encostado no tanque”.

Maria Aparecida
Filha de Maria das Dores
Não tinha pai
Nasceu no quarto dos fundos
Sabia escrever o nome, mas não sabia ler
Cozinhava como ninguém
Vaca, boi, bode e o que viesse
Não tinha bicho que não morresse
Na ponta da sua faca
Não tinha gente que não a admirasse
Na ponta do garfo
Enquanto junta as penas da galinha
Sente pena da barriga já crescida.
“Cá estou eu com outra Maria no bucho”.

Maria do Socorro
Filha de Maria Aparecida
O pai foi assassinado
Apareceu no mundo antes do tempo
Aprendeu a ler e a escrever antes dos 5 anos
Cresceu e logo aprendeu a manusear arma
Não lavava, não passava
Não sabia cozinhar nem polir panela
Mas tinha sempre uma bala na agulha
E um olhar afiado
Não tinha gente que não tivesse medo dela
José foi morto na mira do seu olhar
E enquanto chorava, alisava a barriga
“Que esta Maria tenha mais sorte na vida”.

Sobremesa: "Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento/ e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas/ Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam/ mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar/ e quem chegar perto pega fogo". (Eduardo Galeano)

29 de maio de 2007


Pedro perdido esperando o pôr-do-sol
num dia nublado.

Pedro Perdido
Raquel Medeiros

A esperança perdida
num bilhete premiado
permanece pobre pedro lascado
perdido num monte de dívida.

O filho caçula perdido na praia
a mulher perdida no ônibus errado
com bala perdida na cara.

Perdeu até a rima
perder de cabo a rabo
parece mesmo sua sina.

Sobremesa: "Só não vá se perder por aí" (Mutantes)

2 de maio de 2007



*montagem - Leonardo Soares

Lembra do Haroldo?
Raquel Medeiros

Haroldo era um grande empresário. É verdade que existem “muitos” por aí, mas ele sim, era dono de uma grande e bem-sucedida empresa de fraldas descartáveis. “Ninguém quer limpar urina e merda, nem deixar de ter filhos”, pensava ele. E não estava de todo errado. Dinheiro entrando aos montes. Soberba sobrando aos potes.

Haroldo não tinha filhos. Nem os queria, aliás, nada nem ninguém que viesse depois usufruir toda a sua fortuna.

Um dia Haroldo viajava para Petrópolis em sua BMW. O modelo não importa. O que importa é que Haroldo bateu com o carro numa velocidade que era quase impossível acreditar que ele tenha saído com vida. Mas saiu. Paraplégico.

Depois do acidente Haroldo enclausurou-se em sua mansão, num condomínio fechado por ele e só dele. Comprou uma cadeira de rodas que só faltava jogar cartas e passou o resto dos seus dias sendo chupado por putas que ele pagava e xingava, e elas, como vingança, esperavam que ele estivesse próximo do gozo, se distanciavam e ficavam rindo da cara dele. Pobre empresário rico, o Haroldo.

Sobremesa: "Mas problemas não se resolvem/ problemas têm família grande/ e aos domingos saem todos a passear/ o problema, sua senhora e outros pequenos probleminhas". (Paulo Leminski)

13 de abril de 2007


foto de Penha que Juracy guarda até hoje.

Penha e Juracy
Raquel Medeiros

Juracy e Penha trabalhavam no mesmo pronto-socorro. Ela, atendente. Ele, operador da máquina de raio X.
- Faz um raio X de mim, Juracy.
Ele fez. E se apaixonaram. Juracy pôde conhecer muito mais coisas da Penha do que dava pra ver no exame - as angústias, os medos, os desejos e uma vontade louca de casar.
Mas o romance não durou muito. Penha pediu demissão quando viu Juracy fazendo um raio X numa mulher bem mais nova que ela.
Juracy ainda trabalha no mesmo pronto-socorro, e continua sem saber o que fazer com a aliança que havia comprado pra pedir Penha em casamento.

Sobremesa: "Mas foi uma ilusão/ uma insensatez/ há que pôr o chão nos pés". (Chico Buarque)

22 de fevereiro de 2007


Adolfo e Rosália num banco de praça em Vila Prudente


Romance Chiclete

Raquel Medeiros


A abertura do papel – a porta para a eternidade.
Adolfo e Rosália se conheceram num banco de praça no bairro de Vila Prudente. Ela vestia amarelo e tinha um penteado esquisito desses que só se desfaz com bastante água quente. Ele vestia jeans e uma camisa dos Stones. Ela preferia Beatles, mas achava que Mick Jagger tinha mais charme que John Lennon.
Adolfo ofereceu um chiclete à Rosália, que de prontidão aceitou. Mastigaram-se com o desejo da primeira vez e com a avidez da última.

A sensação de eternidade que aquilo proporcionava era inevitável. Fazia os olhos de ambos brilharem. Coisas em comum – a mesma rua, o mesmo colégio, o mesmo filme do Coppola e – claro – o gosto por chicletes. E este não acabaria nunca.


A mastigação – macia e doce.
A relação deles era tão intensa, parecia que o chiclete estimulava a mastigação excessiva. E era tudo tão macio que Rosália e Adolfo quase flutuavam quando saíam juntos. E isso não era raro. Os moradores de Vila Prudente se referiam ao casal como “casal-chiclete”. Eles adoravam. Mascavam ainda com mais afinco e sorriam para todos.

Adolfo dormia quase todas as noites na casa da amada. Era um casamento em regime semi-aberto, aliás, como a maioria é. Mascavam como se o mundo pudesse acabar ali em volta deles, que nem dariam conta. Mas dar conta por que, se eles tinham a eternidade bem presa entre os dentes?!


O cansaço – a eternidade finita do céu da boca.
Depois de 5 anos, o maxilar da relação estava cansado de tanto mascar. Não conseguiam mais fingir que o doce ainda estava lá, e depois de tanto tempo na boca, o chiclete já não tinha – nem de longe – a maciez primeira.

Foi um choque quando se deram conta que mantinham aquilo muito mais por apego do que por vontade. A saliva ácida, os dentes fracos e um amargo no fim da linha. Chiclete com gosto de fel.

Um dia Rosália sentou no banco da mesma praça onde se conheceram. Pensou, mastigou e pesou o quanto era difícil admitir que não queria mais aquela eternidade. Ela tirou o chiclete da boca, colou embaixo do banco da praça e nunca mais viu Adolfo.

Sobremesa: "Adeus você/eu hoje vou pra o lado de lá/ eu tô levando tudo de mim/ que é pra não ter razão pra chorar". (Los Hermanos)

15 de dezembro de 2006


Depression 1 - Yuko Shimizu

Domênico Silva
Raquel Medeiros

Escrevo diante da janela aberta. Os tímidos raios de sol das primeiras horas do dia criam um leve contraste com o verde-lodo do prédio. Apartamentos apertados e fedorentos. Gritos, gemidos e garrafas quebrando são a trilha sonora da madrugada. Por isso só consigo escrever a essa hora do dia. Hora em que a maioria dorme.

Moro sozinho. De vez em quando minha mãe me visita. sabe como é, filho único... Reclama da minha bagunça e do meu cigarro; da minha barba mal feia e do queijo mofado. Reclama e joga na minha cara os arranhões nos seus joelhos, frutos de suas orações, de centenas de contas de rosário repetidas fervorosamente ao longo desses meus quase quarenta anos. Ela era uma vítima. Sempre foi. Primeiro de Deus; depois do meu pai. E agora, do único filho.

Eu sempre quis escrever sobre outras coisas. Coisas belas - o canto dos pássaros no verão, a sensualidade discreta das escolares, amores bem-sucedidos. Mas o que me era servido como inspiração eram vizinhos barulhentos e asquerosos, e uma mãe que parecia carregar consigo as chagas de Cristo.

Eu até conseguia enxergar meu único livro acabado, empoeirado e abandonado na prateleira de uma livraria vagabunda. Livro curto, dividido em três capítulos.

A Patética Vida de Domênico Silva.
Primeiro capítulo: Filho céptico de de mãe devota.
Segundo capítulo: Como conseguir tirar inspiração do lodo.
Terceiro capítulo: Aqui jaz Domênico Silva, carrasco da própria mãe.

Sobremesa: "Sobre meus ombros semeiam centenas de tempestades/ como se o mundo fosse um campo crivado de espadas/ Minha alma aplaude/ 'destruam esse corpo/ essa casca inimiga que me consome/... jaula de muitos metros...'/ que desfrutem, tudo/ e dancem seus rituais sobre minhas costelas". (Marina Ráz)

30 de novembro de 2006


Sem fantasia

As(minhas) mulheres de Chico
Raquel Medeiros

Na segunda sou uma
Das minhas meninas
Já saio sozinha
Como as notas
Da canção
Levo meu destino
No trabalho-fardo
Iluminado de sim
Atrapalhado de não.

Na terça sou
Tereza Tristeza
Do cotidiano
Sem solução
Tire meu lugar
Da mesa
Que o enjôo
É gritante
E o carnaval
É dia distante.

Na quarta sou
A Rosa
Saio pra comprar
Cigarro
E volto sorridente
Mas da alegria
Sou passageira
A ficha cai ligeira
Quando a santa
Troca meu nome
E some com meu sono.

Na quinta sou
Cecília
Invejo a orquestra
Afinada
Respiro pouco
E soletro l-o-u-c-o
Na madrugada
Na insônia desvairada
Mil refletores
E nada de amores
Pra me fazer
De morada.

Na sexta sou
Ana de Amsterdam
Da compra, da venda
Da troca de pernas
Da cerveja gelada
Da seda e da risada
Carta marcada
No jogo da sorte
Às vezes dou azar
O ardor das docas
Na boca do mar.

No sábado sou
Bárbara
Desesperada e nua
Na esperança de ser tua
Quando a noite chegar
Agonizando uma
Paixão vadia
Feito uma hemorragia
Vem buscar minha boca crua
E morde como carne tua.

No domingo sou
Beatriz
Moça triste
Pintada de atriz
Andando com os pés
No chão
A felicidade
É uma amarelinha
Feita de giz
Mas vem a chuva
E apaga o céu
Na véspera da segunda
A alegria é de papel.

Sobremesa: "Eu quero te contar das chuvas que apanhei/ das noites que varei no escuro a te buscar/ eu quero te mostrar as marcas que ganhei/ nas lutas contra o rei/ nas discussões com Deus/ e agora que cheguei/ eu quero a recompensa/ eu quero a prenda imensa dos carinhos teus". (Chico Buarque)