Mostrando postagens com marcador it's a fire. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador it's a fire. Mostrar todas as postagens

13 de agosto de 2008


Cena de 'Crash - Estranhos Prazeres', de David Cronenberg

Sete canções em uma noite

Um banho demorado. Lingerie escolhida com prazer e vestida com exaltação. O vestido vermelho acetinado já provocava na pele sensações do que estaria por vir. Sapatos negros. Salto fino, alto. Aparentemente displicente, estudava cada ínfimo pormenor. Reflexo atraente do hábito feminino. Já estava pronta, mas levava horas, uma dose de whisky e uma música no repeat para chegar até ele.

Turning now I see no reason
The voice of love so out of season
I need you now
But you can't see me now


No bar, o piso pressente o nervoso dos passos masculinos enquanto a aguarda. Ele senta à mesa e inclina o copo de whisky. Em estado puro, escorrega na língua, invade a boca e desliza pela garganta, queimando-o.

No don’t try to manipulate
I would rather take control.


Os ponteiros do relógio do bar giram preguiçosamente, ironia estampada em cada minuto. Ele pousa o copo vazio, ergue o braço num gesto que afasta o punho do casaco, descobrindo o relógio, na esperança de que esses ponteiros não o olhem com negligência.

Again, we go ‘round and round
I’ll get the drinks
I guess it’s always my round

“Can you get me a drink?”


Ela chega falsamente discreta. Desliza o acetinado do vestido nele, num abraço seguido de desculpas pelo atraso. Ambos sabem que as desculpas não cabem e que toda a espera – se não necessária – era inevitável. Exasperado, revirou os olhos no pensamento repetido: mulheres! Ela sorriu de forma inesperada, como se pudesse decifrá-lo. Duas doses, dessa vez com – pouco – gelo. O que ela queria era deixar-se levar pelo desejo e provocá-lo até ele demonstrar - sem qualquer margem para dúvidas - que a queria tanto como ela a ele.

Hold me close enough to drink my rose
The devil in my pocket turned to gold
Sorry to warn you, you’re in a daze
Tonight I’ll love you, but tomorrow go away
.

Num gesto que ela não podia prever, ele terminou a dose e determinou que ela fizesse o mesmo. Não foram para muito longe dali. Uma esquina qualquer e um carro qualquer estrategicamente estacionado.

What’s the fun in playing it safe?

Ele a coloca de encontro ao carro e se encaixa no meio das suas coxas. Ela tenta afastá-lo, inutilmente. Ele prende com força os punhos magros dela, numa das mãos. Ela reclama sem rigor e sem resposta. A dor da luxúria que se obriga a prolongar. Boca. Língua. Mãos. Braços. Pernas. Grandes avanços e pequenos recuos.

Say, say my name
I need a little love to ease the pain


Ela geme enquanto tenta morder os ombros dele, sem êxito. Ele olha-a, dominador. Sabe que o cetim, o vermelho nos lábios, os sapatos negros de salto fino, a lingerie, a risada no bar, o abraço de desculpas, os dentes afiados... Tudo culminaria na rendição.

Everynight
in every pore
The scales that do slither
Deliver me from…


Impossível saber quanto tempo ficaram ali, talvez 3 ou 4 orgasmos. Ela tenta dar jeito ao vestido e ao pensamento. Era humana, repetia silenciosamente, e o que a tornava humana - por mais inconciliável que pareça – era perder completamente a razão.


Sobremesa: “And my big secret/ Going to win you over/ Slow like honey, heavy with mood” (Slow like honey – Fiona Apple)

(As sete canções, por ordem: Funny time of year – Beth Gibbons and Rustin Man, Stay – Tricky, Puppy toy – Trick, The mating game – Bitter:Sweet, Dirty Laundry – Bitter:Sweet, Dissolved girl – Massive Attack, The Widow – The Mars Volta).

21 de agosto de 2007


"I know I stand in line until you think
you have the time to spend an evening with me"
Something stupid – Nancy Sinatra

Jogo
Raquel Medeiros

Eu aqui tentando escrever sobre antropologia e ele sai com essa. “Vamos jogar...”. Eu precisava terminar o capítulo, pelo menos o parágrafo. Fiz de conta que não ouvi e que não queria. Mas ele me conhece e insistiu. “Vamos jogar...”. Eu abandonei o parágrafo e o Lipovetsky e sentei na frente dele. “O que você quer jogar?”, falei num tom desafiador. Ele me olha dizendo que minha tática não vai funcionar, desconfio que ele sabe exatamente o que fazer e tem uma certeza irritante de que eu vou gostar. Confesso que adoro quando ele me deixa assim, me excita ainda mais.

- Então, esse jogo não vai começar?
- Já começou. Diz ele.

Ainda não entendi bem qual o jogo, mas antevejo o intuito e gosto. Deixo-me levar pelas cartas que ele tem na manga, e alguns territórios já começam a ser tomados. Eu reluto, sem muito afinco. Ele é um ditador e me castiga por não obedecer as suas ordens. Admito que ele fica ainda mais charmoso na fantasia de carrasco.

Agora que já conheço o jogo, tento inverter os papéis e consigo. Ele me olha com surpresa e com uma felicidade que ele não admite, mas sente. Provoco batalhas, verdadeiros bombardeios em todos os nossos sentidos. Agora estamos de igual pra igual. Uma guerra declarada, o inferno. O calor é tão grande que o mundo evapora, o tempo se desfaz em relógios que derretem como uma pintura de Dalí. Surreal, mas, sobretudo humano. Exaustos, sorrimos ao final de um duelo sem perdedor.

Venho para o computador, e enquanto escrevo esse texto, ouço sua voz rouca entre um gemido e outro, acabando de acordar. “Vamos jogar...”.

Sobremesa: "O amor é o único jogo no qual dois podem jogar e ambos ganharem”. (Erma Freesman)

19 de março de 2007


ilustração de John John Jess

[Trecho]
Dalton Trevisan

Ao tirar a calcinha, ele rasga. Puxa com força e rasga. Vai por cima. Ó mãezinha, e agora? Com falta de ar, afogueada, lavada de suor. Reza que fique por isso mesmo.

Chorando, suando, tremendo, o coração tosse no joelho. Ele a beija da cabeça ao pé — mil asas de borboleta à flor da pele. O medo já não é tanto. Ainda bem só aquilo. Perdido nas voltas de sua coxa, beija o umbiguinho.

Deita-se sobre ela — e entra nela. Que dá um berro de agonia: o cigarro aceso na palma da mão. Mas você pára? Nem ele.


Sobremesa: "Se é canto de Ossanha não vá/ que muito vai se arrepender". (Baden Powell/ Vinícius de Moraes)