26 de agosto de 2008


eleven a.m. - edward hopper

Sexta-feira

Acordou como sempre – com dívida de sono - mas com uma dúvida se teria sido sonho mesmo. Dava pra sentir o cheiro – pensou. Será que as pessoas se encontram enquanto dormem? Não, não, isso é roteiro pra filme existencialista belga. Eu tenho contas a pagar – constatou.

A manhã no trabalho foi leve – coisa rara numa sexta-feira.
A tarde – como de costume – demorou a passar. Mil coisas a fazer. Leia. Escreva. Revise. Tente outra vez sem essa expressão. Tente outra vez sem tédio. Tente outra vez. Tente outra.
Por volta das 18:00, enquanto olhava a tela do computador, as letras se embaralhavam em meio as lágrimas saídas de um olho só. Meu ouvido dói. Meu olho esquerdo não pisca. Minha língua está dormente. Meus lábios não se movem coordenadamente.

Você está com paralisia facial – disse a mãe.

É, existe uma paralisia facial, decorrente de um vírus no ouvido, agravada por stress – disse o médico.

Quatro comprimidos de corticóide por dia. Depois de duas semanas diminui pra dois, depois um, e então meio comprimido por dia. Antibiótico de 4 em 4 horas, por 30 dias. Colírio e gel pra não ressecar o olho. Curativo em cima pra tentar dormir.

Não leia. Não assista filmes com legenda. Não costure. Não fique no computador. Não beba. Não chocolates. (...).

Posso ouvir música?

Não muito alto, nem em fones de ouvido. Repouso, você precisa de muito repouso.


E assim a vida ganhou uma pausa inesperada. Os livros acumulando poeira. Bolor no bolo de chocolate. Cinqüenta e-mails não lidos. Trinta noites mal dormidas (além das tantas acumuladas nos seus quase 30 anos). Nenhum sorriso em um mês. Nada programado, por tempo indeterminado.


E, ao final de 30 dias, mais uma sentença:
Trinta dias desse remédio, dois comprimidos por dia. Dez sessões de fisioterapia. E duas injeções por semana, durante um mês.


Voltou rápido para o trabalho, mas o sorriso veio lento. Dores de cabeça todos os dias - nenhuma de ressaca. Chá de espinheira santa para o estômago, erva doce pra dor, camomila pra dormir. Dois pequenos hematomas na nádega e dor muscular às terças e sextas.

Às vésperas de acabar o tratamento, já 100% recuperada dos movimentos, ela só pensava o quanto era bom mastigar, enxergar e falar direito e, vez por outra, rir disso tudo.


Sobremesa: "já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou, e tudo fugiu, e tudo mofou, e agora, José?" (Carlos Drummond de Andrade)

4 comentários:

Anônimo disse...

belíssimo texto... como diria um tal beatle george here comes the sun! =*

* a imagem e a sobremesa também tá de primeira!

diggs disse...

Bem-vinda de volta, menina! Espero que tudo tenha passado agora e que possamos botar a prosa em dia qualquer hora dessas. :) Felicidades e saúde!

Mica Braga disse...

rir de tudo isso, no final. a dor acompanha, tem suas intensidades. mas e a alma ate onde rir. desdobramos todos os dias, e a vida segue numa melancolia danada, sem cha de boldo, nem corticoide, mas a ventania que rasga, a poeira que vem a cara, as cuticulas arrancadas a cada nervosismo... ai, tudo isso dói. ate a luz do monitor as vezes incomoda. precisamos de férias.

raquel medeiros disse...

michelle, não sei se você vai voltar, mas caso volte (tentei te "encontrar"), quero que saiba que adorei a visita. e sei bem desses dias que você fala, inclusive estava arrancando as cutículas enquanto lia.

que venham as férias, antes que tudo isso acabe com a gente.

abraço!
=*