23 de novembro de 2004

A insustentável certeza de não ter
Raquel Medeiros

Sobrava ainda um pouco de café. Restavam ainda alguns poucos cigarros, e uma tristeza tão grande que não cabia no pequeno apartamento.
Há três horas antes, ele ainda estava lá – esvaziando o guarda-roupa, embrulhando os livros e o estômago dela, levando a Billie Holiday embora... Ao som de ofensas, socos e pontapés morais.
Fim de relacionamento sempre dói, deixa alguma cicatriz, nem que seja lá no cantinho do tornozelo. Com ela não era diferente. Tinha marcas nos pulsos, e nos seios. O peito apertado e a cabeça rodando tanto que precisou sentar, ali, na poltrona dele, que dali a alguns dias ele mandaria buscar, e seria mais um lugar vazio - além da cama, e do coração dela.
Não tinha força pra levantar. Queria sair, comprar mais café, cigarros, e quem sabe um pouco de alegria. Mas não conseguia. Nunca foi a menina que levantava rápido da queda e limpava displicentemente o joelho.
Sempre foi a que ficava muito tempo ainda no chão, vendo os arranhões, o sangue, e a sua incapacidade de lidar com a visão de quem está embaixo, esperando a mão, a ajuda, o abraço.
Acabou o café. Acabaram os cigarros. Mas a tristeza estava lá – mais espaçosa que nunca.
Conseguiu levantar com grande esforço. Foi no quarto, pegar a bolsa pra ir à rua. O cheiro dele espalhado no quarto, as gavetas vazias, a ausência dos sapatos dele. Foi um choro doído. O choro que não saiu quando ele bateu a porta.
Despencou na cama, que assim como a tristeza, parecia grande demais pra ela. Mas agora era só dela.

Sobremesa: "Se você me ama/ por que não se concentra?" (Ana Cristina Cesar)

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