3 de novembro de 2004

As man(ias) de Cícero
Raquel Medeiros

Foram três facadas, em pontos estrategicamente escolhidos. Ela era assim mesmo – meticulosa, presa a detalhes, pormenores, ponto e vírgulas.
Quando estavam juntos, Olivia observava em Cícero coisas que foram deixando a convivência insuportável. A maneira como ele pegava a xícara - o mindinho formando um ângulo de 45 graus com a asa. A maneira como ele lavava a louça – os pratos antes dos copos. As camisas brancas misturadas às camisas coloridas. Ela odiava isso tudo.
Questionava-se como poderia ter casado com ele. Não o teria feito se soubesse dessas pequenas – grandes coisas. Casou com um homem que não conhecia.
Começou a ficar com medo dele. Apavorada. “Do que ele seria capaz?. Alguém que gosta de feijão gelado é capaz de qualquer coisa”, pensava.
Um dia, quando Olívia chegou em casa, encontrou Cícero preparando um molho branco com a mesma colher com a qual ela mexia os doces. Aquilo foi a gota d’água.
Olívia foi lentamente até a gaveta dos talheres, pegou a faca de cortar carne, chamou a atenção do Cícero, e deu o primeiro golpe, certeiro, no mindinho. “Agora você não levanta mais esse maldito”. Depois foi nas mãos. “Onde já se viu usar colher de mexer doces pra mexer molhos salgados?”. A terceira foi num dos olhos. “Já que você não consegue diferenciar o branco das outras cores, talvez não precise de dois”.
Cícero – desesperado – perguntou a Olívia a razão de toda aquela fúria. Ela disse que ele era um louco, e que ela tinha medo do que ele poderia fazer com ela. Aqueles não eram hábitos de pessoas normais.
Ele disse que a amava. E ela disse “Vá embora, Cícero, aproveite que você ainda tem os pés”.
E assim acabou o único casamento de Olívia. Com três facadas, em pontos estrategicamente escolhidos. Ela era assim mesmo – meticulosa, presa a detalhes, pormenores, ponto e vírgulas.

Sobremesa: "A gente sempre destrói aquilo que mais ama/ em campo aberto ou em uma emboscada/ alguns com a leveza do carinho/ outros com a dureza da palavra/ os covardes destroem com um beijo/ os valentes com uma espada". (Oscar Wilde)

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