18 de novembro de 2004


"Sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada,
uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudades...sei lá de quê!''
(Florbela Espanca)

*A foto é de Gustavo Soares. =****

Ninguém perde a gente. A gente é que se perde.
Raquel Medeiros

Hoje é dia de mudar a alma de casa. Desocupar os cômodos. Acabar com o incômodo. Esvaziar o corredor, com malas cheias de coisas velhas e em desuso. Jogar fora as panelas vazias, cuja ferrugem já me causou diversas doenças – algumas reais outras inventadas por mim. Porque doença costuma trazer um certo charme à tristeza, dá credibilidade.

Hoje é dia de esquecer sentimentos como afeto, esperança e alegria. É dia de ficar entre a coragem e a covardia. É a bulimia de bons sentimentos. Eu os tomo pra mim, me alimento e depois os vomito. E isso não começou hoje. Já faz tanto tempo que já devo ter uma úlcera emocional – mais uma doença inventada.
Há tempos meus olhos já não se atrevem a fitar os olhos dos outros, desses estranhos, que um dia me foram tão familiares. Meus olhos agora só procuram por uma porta, uma saída...

Hoje é dia de, apesar da distância, dar uma certa satisfação às pessoas que dividem esta casa comigo. Fico em dúvida se escrevo uma carta, se escrevo com batom em todos os espelhos dos banheiros, se ponho um recado na geladeira – bem ali, junto da foto do nosso último verão. Eu e meu corpo que não preenchia o biquini, e a cada onda mais forte lá se ia a parte de cima. Na foto, parecia divertido. Mas hoje não é mais, e minha condição não me deixa lembrança daquela menina que adorava construir castelos. Hoje não construo nada, nem castelo de cartas.

Amanhã é dia de nascer de novo. Num outro lugar, quem sabe até mais bonita. Mais saudável de corpo e mente. Mais confiante. Quem sabe até eu nasça numa família de pessoas conhecidas. Nasça homem e tenha com o que preencher o calção de banho.

Mas hoje, nada de cartas. Nada de espelhos de banheiros riscados com batom. Nada de recado junto à foto do último verão. Eu não sei fazer isso. Nunca soube o que dizer a eles. Hoje não vai ser diferente. Afinal, o que se diz quando se precisa morrer?

Meus olhos acharam, enfim, a saída. Não era uma porta, mas a janela serviu.

Sobremesa: "Não terei podido fazer-te viver isto/ escrevo assim mesmo para você que me lê/ porque é uma maneira de quebrar o cerco/ de te pedir que procures em ti mesmo se não tens também um desses gatos/ desses mortos que amaste/ e que estão nesse aí que já me exaspera mencionar com palavras de papel." (Julio Cortázar)

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