3 de setembro de 2004

Hoje é dia de prosa. É dia de homenagear os amigos também. Amanhã é aniversário do confeiteiro, e essa foi a nossa primeira parceria. Feliz aniversário, Tiago! =*******

Assim nasce o fim
Raquel Medeiros

Eu era uma criança triste. Solitário por opção. Inventava histórias e amigos – achava-os melhores que os reais. Meu pai, professor numa escola de tiro. Sentia por ele um misto de admiração e medo. Nos falávamos pouco. Mas ele sempre dizia que um dia eu seria um professor tão bom quanto ele. E eu queria ser; ou achava que queria. Aos nove anos, ganhei minha primeira arma, de brinquedo.
Na escola, tirava notas boas, mas não gostava das aulas. Ficava na sala, atirando nos colegas. Era divertido: alguém dizia uma bobagem, e eu estourava a sua cabeça. De mentira, por falta de opção.
Um dia, o professor me tomou a arma e me mandou pra casa. Tive medo de ligar para o meu pai e dizer-lhe o que havia acontecido. Seria uma surra daquelas. Física e moral. Saí da escola e não consegui achar o caminho de casa. Isso acontece quando se é muito disperso, e não se presta atenção ao caminho.
Encontrei uma estação de metrô e lá fiz moradia. Ganhava uns trocados contando histórias às pessoas que esperavam, aos solitários, aos mendigos que também moravam lá. Algumas histórias eram realmente boas e me rendiam um bom dinheiro; outras só me traziam um riso de pena no canto da boca. Dava pra não morrer de fome. Dava pra não morrer de frio. Dava pra não morrer de solidão. Dava pra sobreviver; mas não era vida. Percebi a diferença assim.
Um dia, já quase homem de corpo – porque na alma já era um homem desde muito cedo, vi meu pai na estação. Segui-o, entrei no metrô, mas não tive coragem de chegar perto. O que eu diria? O que eu faria? Resolvi que só iria descobrir o caminho de casa, e pensaria numa maneira de ir até lá e criar coragem pra falar com o velho.
Semanas depois, pensando, pensando, decidi que era a hora de encará-lo.
Parei na calçada de casa. Não havia mudado nada. A grama precisava de um corte, é verdade, mas o resto continuava igual. Senti como se estivesse chegando da escola, no dia da expulsão. Fiquei com medo da surra adiada. Fiquei com medo de não saber o que falar. Fiquei com medo do meu pai.
Entrei – meu pai não gostava de portas trancadas – sentei-me no sofá. Não tinha ninguém em casa. Resolvi fazer um café, cairia bem na hora em que estivéssemos conversando. Enquanto estava passando o café, ouço o barulho da porta. Era ele. Paralisei. Fiquei esperando que ele fosse até a cozinha e me visse. Diria “oi, sou eu, o Vicente”. Deixei cair uma maldita xícara.
Meu pai entrou na cozinha atirando. E foi assim que morri. Ele não me reconheceu. Ele nunca me conheceu. Fomos dois desconhecidos um pra o outro. Ele não matou o filho. Matou um estranho.

Sobremesa: "Não se levantem ainda / A sobremesa tá na mesa / pudim de amor / manjar de ódio / quindim de surpresa / Não esperem a torta de gentileza / tive esse trabalho todo / alguém me ajuda a tirar a mesa?". (Tiago Tenório)

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