22 de setembro de 2004

Domênico Silva
Raquel Medeiros

Escrevo diante da janela aberta. Os tímidos raios de sol das primeiras horas do dia criam um leve contraste com o verde-lodo do prédio. Apartamentos apertados e fedorentos. Gritos, gemidos e garrafas quebradas são a trilha sonora da madrugada. Por isso só consigo escrever a essa hora do dia. Hora em que a maioria dorme. Alguns tranquilamente; outros com o "couro quente".
Moro sozinho. De vez em quando minha mãe me visita. Sabe como é, filho único... Reclama da minha bagunça e do meu cigarro; da minha barba mal-feita e do queijo mofado. Reclama e joga na minha cara os arranhões nos seus joelhos, frutos de suas orações, de centenas de contas de rosário, repetidas fervorosamente ao longo desses meus quase trinta anos. Ela era uma vítima. Sempre fôra. Primeiro de Deus; depois do meu pai. E agora do único filho.
Eu sempre quis escrever sobre outras coisas. Coisas belas, como a harmonia do canto dos pássaros no verão, a sensualidade discreta das escolares, amores bem-sucedidos... mas o que me era servido como inspiração eram vizinhos barulhentos e asquerosos, e uma mãe que parecia carregar consigo as chagas de Cristo.
Eu até conseguia enxergar meu único livro acabado, empoeirado e abandonado, na prateleira de uma livraria vagabunda. Livro curto, dividido em três capítulos.
A Patética Vida de Domênico Silva. Primeiro capítulo: Filho céptico de mãe devota. Segundo capítulo: Como conseguir tirar inspiração do lodo. Terceiro capítulo: Aqui jaz Domênico Silva, carrasco da própria mãe.

Sobremesa: "Meu pai sempre me dizia/ meu filho tome cuidado/ quando eu penso no futuro/ não esqueço o meu passado". (Paulinho da Viola)

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