1 de dezembro de 2004

O refrão (in)cansável dos dias
Raquel Medeiros

Mais uma manhã. Ela, sentindo-se aquela mulher que faz tudo sempre igual. Com a diferença que ela não tinha ninguém pra esperar, nem pra beijar-lhe a boca cheia de feijão.

Café fraco e com adoçante. Duas torradas, pra não engordar. Pra quê? Se não tinha ninguém que lhe notasse a evidência das costelas. E se o corpo estava mais leve, o coração pesava mais que uma daquelas grandes melancias.

Faxina na casa e lençóis limpos. Pra quê? Se aquela cama não sentia outro cheiro senão o do amaciante. Fazia tanto tempo que não tocava o corpo de um homem, que sequer lembrava o nome do último. Talvez Haroldo... lembrava de algum Haroldo... lembrança distante. Podia ser alguém com quem deitou. Ou o enfermeiro que aplicou a glicose no seu último grande porre.

Mais uma manhã. Ela sentindo-se aquela mulher que faz tudo sempre igual. Com a diferença que ela não tinha ninguém pra esperar, nem pra beijar-lhe a boca com paixão.

Café fraco e amargo. O adoçante acabou.

A única coisa que não acaba na vida da Sandra é a rotina maçante. E a lembrança distante de um certo Haroldo... que podia ser alguém com quem deitou. Ou o cara do andar de baixo, que levou o resto do seu adoçante.

Sobremesa: "Últimos dias do ano/ Andava no ar uma agitação insólita/ todos indo e vindo/ se encontravam/ se separavam/ Pela manhã/ depois de uma noitada no bar ou em casa de alguém/ Eduardo se interrogava ao espelho/ um dia mais velho/ Que estou fazendo da vida?/ se perguntava, e saía para o trabalho." (Fernando Sabino)

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