20 de julho de 2006
"El tango es un pensamiento triste
que se puede bailar"
(Enrique Santos Discépolo)
Ela. Ele. Eles...
(Raquel Medeiros)
Ela
Encara o espelho. A toalha ainda envolve o corpo. Na vitrola, Chico Buarque, "Não, solidão, hoje eu não quero me retocar nesse salão de tristeza onde as outras penteiam mágoas". Meia-calça e cinta-liga. Uma taça de vinho. Um cigarro. Vestido vermelho. Vermelho nos lábios e na flor do cabelo. Salto alto. Perfume no colo e na nuca. Cabelos presos e pensamentos soltos. Uma última taça para criar coragem. Um passo excitante na frente do outro hesitante. Desliga a vitrola. Acende um cigarro. Sai.
Ele
Encara o espelho. A toalha ainda envolve a cintura. Na vitrola, Frank Sinatra, "Something in your eyes was so inviting, something in your smile was so exciting". Meias pretas. Uma dose de uísque. Um cigarro. Calça preta. Camisa idem. Tenta arrumar o cabelo. Sapatos bem engraxados. Perfume nos pulsos e na nuca. Chapéu inclinado e pensamento reto. Uma dose de uísque para tomar coragem. Um passo viril na frente do outro vil. Desliga a vitrola. Acende um cigarro. Sai.
Eles
Ele a leva para a pista de dança. Os passos traiçoeiros e o apuro duvidoso do par denunciam o tango. Na vitrola, Carlos Gardel, "Del fondo de mi copa su imagen me obsesiona, es como una condena, su risa siempre igual, coqueta y despiadada, su boca me encadena, se burla hasta la muerte la ingrata en el cristal". Num ritmo pernicioso, executam o mais lascivo dos balés. Se entregam entre braços, pernas e olhares. Não se pode afirmar o que os une - amor, dúvida, desilusão, solidão. Mas nunca se viu, naquela pista de dança, um casal assim. Ela, pólvora. Ele, sangue.
Sobremesa: "Descubrimos vos y yo en el triste carnaval/ una música brutal/ melodías de dolor/ despertamos vos y yo/ y en el lento divagar/ una música brutal encendió nuestra pasión/ dame tu calor/ bébete mi amor". (Gotan Project)
10 de julho de 2006
"Mas o que eu quero é lhe dizer
que a coisa aqui tá preta".
(Chico Buarque)
* Ilustração de Rafal Olbisnki
Antipoema (trechos)
Fernando Bonassi
Alguns números dessa história
4 e meio bilhões de habitantes em confusão; 146 nações desunidas; 20 anos de ditadura; 11 contra 11; 2 torres gêmeas sacudidas; 32 dentes imaturos; 12 meses para pagar; 9 meses de gestação até a dilatação; 3 por 4 no RG; 30 mil mortos nas ruas de Chernobyl; uma puta que o pariu; 27 bichos no jogo da sorte; 24 horas de prazo com o destino; 5 dias de folia por 1 de arrependimento; 2 cabeças (uma que pensa e uma que pulsa); 2 lados da mesma moeda; 2 forças antagônicas; 2 bombas atômicas; 241 bilhões de dólares em armamentos; 7 anos de azar por espelho; 40 ladrões; 40 passageiros em pé; 36 lápis de cor; 10 metros num segundo é a gravidade das coisas desse mundo; 3 desejos irrealizáveis; 1 gênio da lâmpada; 7 pecados capitais; 7 orifícios do coração; 7 estrelas da Ursa Maior; 5 elementos; 54 cartas por baralho viciado; uma sintonia incompreensível e 9 sinfonias inacabadas; 123 quilômetros de congestionamento; 2 Coréias separadas; 2 pra lá, 2 pra cá; 2 pilotos por equipe; 8 cavalos no páreo; 24 quadros por segundo; 4 patas; 200 metros com barreiras intransponíveis; 1 trocado de aumento; 1 par de sapatos para Dorothy; 1 homem de lata; 1 homem, uma mulher; uma bala na agulha; 1 geração perdida; 26 milhões de banguelas comendo rapadura; 176 milhões de touxas à espera do futuro.
Sobremesa: "É pirueta pra cavar o ganha-pão/ que a gente vai cavando só de birra, só de sarro/ e a gente vai fumando que, também, sem um cigarro/ ninguém segura esse rojão". (Chico Buarque)
3 de julho de 2006
"De repente sou uma equilibrista muito cansada
de suster a todos por um cordel. Vou deixar cair".
(Adélia Prado)
*Imagem - Edward Hopper
O amor que a gente tinha
Raquel Medeiros
Não me peça pra calar agora. Essa é a minha hora de falar, está bem escrito aqui, no roteiro. Eu não preciso ter um final triste. Também está escrito aqui.
Onde foi que meu personagem se perdeu do teu? Foi na hora da mudança?! Eu sabia... Senti que algo tinha ficado no caminho, tinha se perdido. Nos perdemos.
Quando ouvi o barulho abafado de vidro quebrado, achei que fosse algum prato, algum copo. Mas nem era, era o amor que a gente tinha...
Eu que pensava que ele era forte, que resistiria ao tempo e à má sorte... Ele não resistiu à mudança. Caiu naquela rua... Desesperança.
Sobremesa: "Nosso amor foi uma valsa triste/ um curta-metragem de tolerância-curta". (Raquel Medeiros)
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