16 de dezembro de 2006
"somos românticos-realistas" - Richard Linklater
*Julie Delpy e Ethan Hawke, em Before Sunset.
Sem sinal de fumaça
Raquel Medeiros
Noite insone, como de costume. Na mesa, um maço de cigarros. Vazio. Sinto vontade de fumar e me culpo por isso. O dia não foi bom. Escaldante por fora. Angustiante por dentro. Uma vontade de deixar tudo pra trás. De me deixar pra trás. De não saber quem sou.
Por isso desejo um cigarro. Não consigo levantar nem pra contar os trocados para um maço. A que horas você volta? Não quero jantar sozinha de novo. Não quero ver Before Sunrise sozinha e ficar com saudades dos nossos diálogos. Não quero adormecer no sofá e acordar sozinha, nessa espera vã. Não quero levantar e ter que encarar os outros e a mim mesma. Não quero enfrentar a rotina sozinha. Não consigo.
E aquelas nuvens de chuva resolveram se espremer sobre os meus olhos. Mas apesar da dor, do choro e desse imenso vazio, só te peço que quando voltares traga-me um maço de cigarros.
Sobremesa: O inverno aqui durou muito tempo/ não sei precisar/ mas tive crises de choro fantasiadas de resfriados contínuos/ foi uma pneumonia branda/ eu suo frio só de pensar em injeção/ mas todos os dias me forçava a tomar uma dose cavalar de ânimo pra enfrentar a vida. (Raquel Medeiros)
15 de dezembro de 2006
Depression 1 - Yuko Shimizu
Domênico Silva
Raquel Medeiros
Escrevo diante da janela aberta. Os tímidos raios de sol das primeiras horas do dia criam um leve contraste com o verde-lodo do prédio. Apartamentos apertados e fedorentos. Gritos, gemidos e garrafas quebrando são a trilha sonora da madrugada. Por isso só consigo escrever a essa hora do dia. Hora em que a maioria dorme.
Moro sozinho. De vez em quando minha mãe me visita. sabe como é, filho único... Reclama da minha bagunça e do meu cigarro; da minha barba mal feia e do queijo mofado. Reclama e joga na minha cara os arranhões nos seus joelhos, frutos de suas orações, de centenas de contas de rosário repetidas fervorosamente ao longo desses meus quase quarenta anos. Ela era uma vítima. Sempre foi. Primeiro de Deus; depois do meu pai. E agora, do único filho.
Eu sempre quis escrever sobre outras coisas. Coisas belas - o canto dos pássaros no verão, a sensualidade discreta das escolares, amores bem-sucedidos. Mas o que me era servido como inspiração eram vizinhos barulhentos e asquerosos, e uma mãe que parecia carregar consigo as chagas de Cristo.
Eu até conseguia enxergar meu único livro acabado, empoeirado e abandonado na prateleira de uma livraria vagabunda. Livro curto, dividido em três capítulos.
A Patética Vida de Domênico Silva.
Primeiro capítulo: Filho céptico de de mãe devota.
Segundo capítulo: Como conseguir tirar inspiração do lodo.
Terceiro capítulo: Aqui jaz Domênico Silva, carrasco da própria mãe.
Sobremesa: "Sobre meus ombros semeiam centenas de tempestades/ como se o mundo fosse um campo crivado de espadas/ Minha alma aplaude/ 'destruam esse corpo/ essa casca inimiga que me consome/... jaula de muitos metros...'/ que desfrutem, tudo/ e dancem seus rituais sobre minhas costelas". (Marina Ráz)
Assinar:
Postagens (Atom)