20 de fevereiro de 2008


"Um homem com uma dor é muito mais elegante
caminha assim de lado, como se chegando atrasado
andasse mais adiante". (Paulo Leminski)


Minha vida sem mim

Raquel Medeiros

Amigo,

Sei do que passas e me falas. Aqui do outro lado não é diferente. Mudam as perdas, a temperatura do dia e as aflições cotidianas. No mais, acordo toda manhã com o pensamento de que está tudo bem – desejando com todas as forças (que às vezes perco no decorrer do dia) que fique mesmo tudo bem.

Te falei que sempre descubro outras de mim. È como uma pequena morte. Importa que não nos esqueçamos de que(m) sempre fomos e somos. O que me preocupa é a constatação de que o livre arbítrio não é tão livre pra nós.
Nessas horas é melhor pensar que sempre morremos um pouco pra nascermos melhores. E nesse caso, um ciclo se cumpre. Não vasculhe as xícaras quebradas que já não te servem café como antes. Guarde na caixa das coisas antigas, que ganham beleza por não estarem inteiras. O inacabado tem lá seu charme quando nos convencemos de que não foram mesmo feitos para ter um fim.
Já o começo - sempre difícil – traz de um lado a inabilidade de aprender a andar, pensar, escrever, sentir. De outro lado, traz a novidade, o olhar voltado para dentro e para frente. Adiante e avante, amigo!

Isso tudo aqui pode parecer palavra que sai fácil. E saiu, pois desta vez não sou eu quem sai do casulo depois de uma turbulência. Sei que estás um tanto perdido, confuso e armado até os dentes com uma faca cega. Entendo perfeitamente.
Quando isso me ocorre, eu tomo um café, acendo um cigarro – sei que não és deste vício – e ouço alguma música numa voz feminina, como um aconchego uterino. Um lugar quente e seguro, de onde meu novo eu sai e sofre com o frio. Mas o sol arde lá fora. Enquanto estivermos vivos, amigo, há sempre a redenção.

Para Diego.

Sobremesa: "Coisa dolorosa feita de barro e poeira/ o homem no seu quarto, de noite, pelejando pra escrever no papel/ com lápis, nó e tropeço, a dor do seu peito."(Adélia Prado)

19 de fevereiro de 2008


in the car - roy lichtenstein


Lembranças de viagem em três atos

Raquel Medeiros

Primeiro ato
Lembro de quando chegamos num novo destino. As malas bem arrumadas para não amarrotar meus vestidos, nem suas camisas. Compartilhamos o xampu, o creme dental e o espelho. Abrimos um vinho – ou cerveja, ou mesmo uma água sem gás – e brindamos o começo. Bebemos e acendemos nossos cigarros. Agora há um silêncio mútuo, um olhar cúmplice, um beijo apaixonado e o infinitivo 'enquanto durar'.

Segundo ato
Lembro das malas desarrumadas. Suas cuecas espalhadas e eu ainda tentando colocar alguma ordem como se aquele lugar fosse nosso quarto, nossa casa. Passamos o dia com uma preguiça inerente. As forças concentradas no corpo – do outro.

Terceiro ato
Lembro do nosso banho rápido, onde já nem conto teus sinais. Das roupas sendo jogadas sem paciência de volta à mala. A vontade de ficar e a porta que abre lentamente. Estamos indo para sempre.

Sobremesa: "O amor é uma agonia/ vem de noite/ vai de dia/ é uma alegria e de repente uma vontade de chorar".(Vinícius de Moraes)