30 de março de 2005
A raposa, Janis.
Maldita (car) caça
Raquel Medeiros
Deus há de sempre me tratar com uma raposa no campo
Ele, sempre o cão a vigiar
Eu, fugindo da sua invariável sede de caçar.
Está em toda a parte
Me segue, engana e sufoca
Às vezes o desejo é de já estar morta
Pra não lhe dar de graça essa sorte.
Crava-me as unhas do cinismo
Pintadas com o esmalte do altruísmo
Esmaga com sua mão o coração alheio
Ah! Maldito Deus em sua eterna hora de recreio!
Sobremesa: "Tem dias que a gente se sente/ como quem partiu ou morreu/ a gente estancou de repente/ ou foi o mundo então que cresceu?" (Chico Buarque)
28 de março de 2005
Um homem chamado Alfredo
Na queda, a tristeza existe...
Raquel Medeiros
Entre o último gole do café frio e o banho antes de dormir, o telefone tocou três vezes.
Engano. Engano. Engano.
Nem lembrava porque tinha telefone.
Sem família. Sem amigos. Sem credores.
Na cama, deitado. Olhar triste sem cúmplice.
Desejou que sua vida inteira passasse naquela noite. Seria encontrado morto de velhice.
Sem despedidas. Sem choro. Sem lembranças.
Mas nem isso Deus faria por ele. Teria que criar coragem para dar um fim aquela espera.
Esperou a vida. Esperou o amor. Esperou a compaixão.
A morte ele mesmo foi buscar.
... na subida, a tristeza insiste.
Sobremesa: "Eu sempre o cumprimentava/ porque parecia bom/ um homem por trás dos óculos/ como diria Drummond/ num velho papel de embrulho/ deixou um bilhete seu/ dizendo que se matava/ de cansado de viver/ embaixo assinado Alfredo/ mas ninguém sabe de quê." (Toquinho e Vinicius de Moraes)
22 de março de 2005
Podia até camuflar o amor, mas não escondê-lo.
Bilhete de ousada donzela
Adélia Prado
Jonathan,
Há nazistas desconfiados.
Põe aquela sua camisa que eu destesto
- comprada no Bazar Marrocos –
e venha como se fosse pra consertar meu chuveiro.
Aproveita na terça que meu pai vai com minha mãe
visitar tia Quita no Lajeado.
Se mudarem de idéia, mando novo bilhete.
Venha sem guarda-chuva – mesmo se estiver chovendo –
não aguento mais tio Emilio que sabe e finge não saber
que te namoro escondido e vive te pondo apelidos.
O que você disse outro dia na festa dos pecuaristas
Até hoje soa igual música tocando no meu ouvido:
“Não paro de pensar em você.”
Eu também, Natinho, nem um minuto.
Na terça, às duas da tarde,
Hora em que se o mundo acabar eu nem vejo.
Com aflição,
Antônia
Sobremesa: "A minha Casa é guardiã do meu corpo/ e protetora de todas minhas ardências/ e transmuta em palavra/ paixão e veemência/ e minha boca se faz fonte de prata/ ainda que eu grite à Casa que só existo/ para sorver a água da tua boca." (Hilda Hilst)
18 de março de 2005
Preferia bolo, porque torta a vida já era
Raquel Medeiros
O bolo pra ela vinha sempre em fatias, nunca inteiro. Finas e frágeis, que desmanchavam na boca e sempre deixavam um gosto de saudades.
Às vezes o confeiteiro tirava uma fatia grossa e colocava em seu prato. “Moço, eu quero fina, mesmo”. As grossas não lhe pareciam tão atrativas e às vezes saciavam na primeira mordida.
Ela adorava querer mais, sentir vontade de voltar. Odiava estar saciada, totalmente satisfeita. “Quem se satisfaz, não quer mais, não volta pra pedir outro pedaço; e mesmo que peça é só por gula dos olhos, porque no fundo sabe que o que vier além daquilo é excesso, é dispensável”.
Ah, o amor pra ela também funcionava assim. Queria fatias diárias, mesmo finas e frágeis; mas que a deixassem com vontade de voltar, de querer mais. Mas o Sebastião detestava bolos...
Sobremesa: "Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca." (Clarice Lispector)
15 de março de 2005
Raquel Medeiros
... curam a insônia. Horas de tentativas de pensamentos amenos. Mas ele não saía da cabeça dela. Qualquer cenário que imaginasse – verão, inverno, outono ou primavera – lá estava ele. Com seu característico sorriso de menino. Pensar nele trazia fome, sede e saudades. Até tentou viajar sozinha, mas não conseguiu. Encontrava-o no avião, no metrô, e até na rua confundia outros rostos com o dele.O corpo cansa mas os ponteiros não. Sentiu preguiça de pensar, mas até a preguiça lembrava ele. Poucas horas depois já era tempo de acordar. Fome, sede e saudades. Um pouco de sono, é verdade, mas isso também lembrava ele.
Sobremesa: "Honey pie/ you are making me crazy/ I'm in love but I'm lazy/ so won't you please come home/ Oh honey pie/ my position is tragic/ come and show me the magic/ of your Hollywood song." (The Beatles)
10 de março de 2005
Helmut Newton - Fotógrafo e fetichista
Meu verso favorito
Raquel Medeiros
O meu verso favorito
Está sendo escrito
A quatro mãos
A cinco sentidos.
O meu verso favorito
Está preso à algemas
Livre de razão
E de qualquer teorema.
O meu verso favorito
Está no teu abraço
Na junção das nossas mãos
Na construção de fortes laços.
O meu verso favorito
Está no teu prazer
Que também é meu por opção
Fruto de intenção e de querer
O meu verso favorito
Está no teu olhar
Que também é meu por ambição
E por vontade de voar.
O meu verso favorito
Está no teu coração de menino
Que foi autor da invenção
De deixar o meu em desatino.
Sobremesa: "Qualquer verso que me mostre/ que não me sufoque/ que não me solte de você." (Raquel Medeiros)
8 de março de 2005
Florbela Espanca
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses quando linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...
Sobremesa: "No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa/ havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha/ eu queria poder pegar nela/ queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanto perfume..." (Hilda Hilst)
4 de março de 2005
1 de março de 2005
Cenas misturadas ao cheiro de novo
Raquel Medeiros
Exterior. Noite. Chuva. Cerveja. Barulho. Troca o pranto pelo riso. Lança mão do segredo que carrega e liberta as dezenas de borboletas que agitam as asas dentro dela. Agora todas à mostra, como as palavras, compõem juntas um movimento acelerado como o coração, ansioso como as mãos, livre como os olhos.
Interior. Noite. Calor. Suor. Música. Troca o medo pelo desejo. Lança mão do tecido que protege e liberta as dezenas de sinais que denunciam a vontade dentro dela. Agora todos à mostra, como os gestos, compõem juntos um movimento acelerado com o coração, ansioso com as mãos, livre com os olhos.
E a alma leve, como tem que ser...
Sobremesa: "Se tudo pode acontecer/ se pode acontecer qualquer coisa/ o deserto florescer/ uma nuvem cheia não chover/ pode alguém aparecer e acontecer de ser você/ um cometa vir ao chão/ um relâmpago na escuridão/ e a gente caminhando de mãos dadas de qualquer maneira/ eu quero que esse momento dure a vida inteira/ e além da vida ainda de manhã no outro dia/ se for eu e você/ se assim acontecer." (Arnaldo Antunes)