29 de junho de 2004

Duas linhas
Raquel Medeiros

- Por que a tristeza faz a gente escrever tanto?
- Não sei, mãe. Mas talvez o papai soubesse responder, se estivesse vivo.

Sobremesa: "E a vida se perdeu/se existe Deus em agonia/manda essa cavalaria/que hoje a fé me abandonou". (O pouco que sobrou - Los Hermanos)

27 de junho de 2004

Palavras tempestivas
Raquel Medeiros

Eu vou tentar começar as coisas de outro jeito, que não esse que a gente fez. Não deu certo, não funcionou. Acho que não falei o suficiente sobre mim, sobre o que gosto, mas principalmente sobre o que NÃO gosto.
Tudo parece maculado – o meu carinho por você; o respeito que eu achava que existia; a sua imagem no porta-retrato.
Até tentei deixar a banda passar, mas não deu. A música achou de sentar na minha frente e repetir o mesmo refrão ‘Eu sem chão; e você sem perdão...’.

Sobremesa: "Se alguém por mim perguntar/diga que eu só vou voltar/quando eu me encontrar". (Preciso me encontrar - Cartola)

22 de junho de 2004

Rascunho
Raquel Medeiros

Resolvi retocar meu rascunho de vida. Difícil... Comecei pelos pés que já não andam tão bem como antigamente – costumavam pisar mais firme. As pernas já não me obedecem, dançam tango ao invés de ballet. O estômago...embrulhado como ele só, nem água agüenta. Os braços cansados, nem abraço dão mais.
Quando fui ao coração, tinha tanta coisa pra retocar que desisti. A cabeça, então, nem se fala. Apaguei tudo e vou começar de novo. Desenhar outra vida que não essa. Desenho de verdade, porque não dá pra ficar o tempo todo rascunhando. Mas hoje não tem clima. Amanhã talvez eu comece. Hoje, não existo.

Sobremesa: "E essa vida é uma atriz/que corta o bem na raiz/e faz do mal cicatriz/Vai ver até que essa vida é morte/e a morte é a vida que se quer". (Refém da Solidão - Baden Powell e Paulo César Pinheiro)

21 de junho de 2004

Punishing kiss
Raquel Medeiros

Tomei até o último gole. Acordei com uma ressaca daquelas. Só lembro do rótulo e de ter ouvido você dizer que eu ia me arrepender. Você tinha razão. Me arrependi. Mas não foi do porre, foi de você. É isso – me arrependi de você.

Sobremesa: "Me deixem amolar e esmurrar a faca/cega da paixão/e dar tiros a esmo e ferir sempre o mesmo/cego coração(...)/Eu não posso causar mal nenhum/a não ser a mim mesmo". (Cazuza)

20 de junho de 2004

Intimidade
Raquel Medeiros

Meu olhar deve te dizer alguma coisa. Ou pelo menos deveria. Eu queria que você conseguisse saber através deles, sem que eu precisasse falar. Não é preguiça não. É porque eu vou gaguejar, vou medir as palavras, e não vou conseguir dizer tudo. Entende? Não, né?!.
Eu imaginei, aliás, eu devia ter imaginado desde o início. Nunca teria aberto a boca pra dizer nada. Nada dessas coisas que agora você está usando contra mim. A covardia é mais sua que minha. O cinismo é mais seu do que meu. A maldade é mais sua que minha. É verdade que a tristeza é mais minha que sua; mas todo o resto é mais seu. Inclusive eu.

Sobremesa: "Se entornaste a nossa sorte pelo chão/ se na bagunça do teu coração/meu sangue errou de veia e se perdeu". (Eu te amo - Chico Buarque)

19 de junho de 2004

A cor da dor
Raquel Medeiros

Acorda dor. Pois não é que ela me ouviu?! Despertou gritando, acabando com meus tímpanos. “Pare! Pare!”. Nada. “Se não agüenta, então por que chamou?”. Eu prometi que não faria novamente. Deixaria ela quietinha aqui – sabe-se onde – no peito, nos rins, na alma, na consciência. Ela aceitou o acordo, mas demorou pra voltar a dormir.

Sobremesa: "Tudo vermelho/os meus olhos pegando fogo/minha paciência encardida, meu sufoco/eu já quebrei o espelho/terminei meu namoro/tudo vermelho de novo". (Cabidela - Mombojó)

18 de junho de 2004

Na prateleira
Raquel Medeiros

Parei com os meus pensamentos românticos. Saltei do Lord Byron para o Machado de Assis num breve espaço de tempo. Foi brusco. Parece que se está num daqueles elevadores que nunca chegam ao térreo, e quando a porta se abre você vê que foi parar num subsolo escuro.
No início fiquei confusa. Chorei. Mas agora já está quase tudo em seu devido lugar na prateleira, e etiquetado com seu novo preço. Alguns estão em promoção e não permitem devolução. Escolha bem e não se arrependa.
Tá duvidando da validade? Não precisa comprar. Não mesmo. Hoje não sou produto de primeira necessidade. Sou supérfluo, honey. Supérfluo.

Sobremesa: "Life is bad/gloom and misery everywhere/stormy weather, stormy weather/and I just can get my poor self together/oh I’m weary all of the time/the time, so weary all of the time". (Stormy weather - Etta James)

17 de junho de 2004

Kiss me
Raquel Medeiros

- Me dá um beijo...
- Por que eu te daria?
- Por que eu quero tanto... e porque vou morrer em breve. Tenho uma doença incurável.
- Mesmo?! Putz, então tá. Eu dou.
- ...
- Que doença você tem?
- Nenhuma, eu tava brincando. Mas o beijo foi bom, não foi?!
- Foi. E agora você também tem herpes.

Sobremesa: "So kiss me". (Kiss me - Sixpense None The Richer)

16 de junho de 2004

Descupem-me pelo jejum de alguns dias...

Coralina
Raquel Medeiros

Veríssimo dominado por uma raiva incontrolável, mata Coralina. Foram 11 facadas, bem distribuídas nos 1,67 e 50 kg dela. Enquanto a esfaqueava, Veríssimo chorava, parecia que estava doendo em seu próprio corpo. Depois começou a rir de tal forma que mal conseguia segurar a faca com firmeza. Deu um beijou na testa da vítima e disse “Adeus, Coralina”.
Horas depois estava Veríssimo no parapeito do seu apartamento, pronto pra acabar com tudo. Morreria em plena Avenida Paulista. 12 andar. Morte certa. Não tinha como errar. Foi salvo por um amigo que estava indo para a Áustria e veio despedir-se. Foram para a Áustria juntos. O amigo se encontraria com a noiva e Veríssimo poderia ficar um tempo com eles. Desistiu de pular e foi embora.
Nove horas da noite. O casal entra no apartamento e encontra um bilhete de Veríssimo, dizendo “Ótima idéia ter vindo para Viena. O inverno europeu é o cenário perfeito pra isso. Obrigado”. Olharam pela janela e o corpo de Veríssimo estava lá, inevitavelmente morto. Usava um vestido da Coralina.

Sobremesa: "Sim, vai e diz/diz assim que eu rodei, que eu bebi, que eu caí, que eu não sei/eu só sei que cansei, enfim, dos meus desencontros/corre e diz a ela que eu entrego os pontos." (Desalento - Chico Buarque)

9 de junho de 2004

Sirvam-se da sobremesa, é da mesma confeitaria, mas desta vez pedi torta de limão. =)

Exaustão
Raquel Medeiros

Meus pés cansados
dessa dança sem par
sem compasso; sem canção.
Meus braços marcados
desses amores fadados à prisão.
Meus lábios ressecados
desses beijos sem paixão.
Meus olhos mareados
desses sonhos vazios
sem desafio; sem superação.
Minha cabeça pesada
dessa vida distraída
destituída de razão.

Sobremesa: "I'm so tired of playing/playing with this bow and arrow/Gonna give my heart away/leave it to the other girls to play". (Glory box - Portishead)

8 de junho de 2004

Amanda
Raquel Medeiros

Saí correndo. Parei. Achei que tinha sido o bastante. Estava cansada e ofegante. Relaxei. E quando pensei que até conseguiria dormir, vem você novamente. Incomoda o sossego; machuca a paciência; despedaça a felicidade. Acabe com isso de uma vez. Eu não quero morte com comprimidos não. Quero na veia. Fácil e rápido.
Nunca fui muito boa em lidar com o coração. Ele requer atenção demais, e eu tenho outros órgãos, sabe? Já conversei, argumentei, bati, troquei por outro, mas nada resolveu. Você existe demais em mim, e isso me apavora.
Pra completar, dia desses vieram me dizer que o meu nome – Amanda - significa ‘para ser amada’. Piada. Ha ha ha. Piada...

Sobremesa: "Covered by the blind belief, that fantasies of sinful screams/ bear the facts or soon will die, end the vows no need to lie, enjoy." (Sour times - Portishead)

7 de junho de 2004

O fim de semana rendeu muito...textos inclusive. Eis um deles.

LOVE LOVE LOVE
Raquel Medeiros

Bruno estava sentado na calçada. Acima, havia um letreiro, escrito LOVE. Letras grandes.
Justine passou e perguntou se ele tinha um cigarro. Ele estava demorando pra encontrar. Ela sentou ao seu lado. Acenderam seus respectivos cigarros e começaram a conversar sobre as amenidades da vida. Daí a trocarem nome e telefone foi um passo.
Encontraram-se outras vezes – cinema, jantar, andar de bicicleta – começaram a namorar. Relação tórrida, dessas onde tudo é visto numa proporção maior do que realmente é – as brigas, as pazes.
Aniversário de um ano de namoro. Bruno esperava Justine embaixo do mesmo letreiro. Ela não estava atrasada. Ele chegara mais cedo.
De repente, um súbito vento forte derruba o letreiro em cima de Bruno. Morreu na hora.
O amor é assim – quando não o temos, parece alto demais. Mas às vezes cai sobre nossas cabeças tão violentamente, que acaba destruindo tudo.

Sobremesa: "When you give half of you/I want all of you.
When you give half of you/I want all of you." (Half of you - Cat Power)

5 de junho de 2004

Ah, o Quintana...

Dia desses leram um dos meus textos e perguntaram o que eu queria dizer com ele. Acho muito sem graça explicar o que significa cada linha escrita. Perde a beleza, aprisiona o conteúdo. A graça - pelo menos para mim - é que cada um receba as palavras e veja nelas algo que ninguém mais vê. Nem mesmo quem escreve. Hoje, o prato principal é do Quintana, e diz exatamente o que penso a respeito disso.

Exegese
Mário Quintana

- Mas que quer dizer esse poema? - perguntou-me alarmada a boa senhora.
- E que quer dizer uma nuvem? - retruquei triunfante.
- Uma nuvem? - diz ela. - Uma nuvem umas vezes quer dizer chuva, outras vezes bom tempo...

Sobremesa: "Sou o novo/sou o antigo/sou o que não tem tempo/ O que sempre esteve vivo mas nem sempre atento/O que nunca lhe fez falta/o que lhe atormenta e mata". (Mal necessário - Rebeca Matta)

4 de junho de 2004

I hate arrows
Raquel Medeiros

“Siga as setas”. Segui. Verdes e azuis; pequenas e grandes; retas e tortas. Muitas realmente, muitas delas. E no fim de tudo estava você, com esse olhar de “chegou tarde”. Tola, muito tola eu sou. Eu devia ter desconfiado quando o céu ficou nublado e aquela música triste começou a tocar. Eu devia ir mais ao cinema. Devia arrumar um bom emprego. Devia comprar um cachorro. Devia ouvir minha mãe.
Ligo pra ela. “Telefone ocupado”. Coração vazio. “Telefone ocupado, por favor ligar mais tarde”. Tarde demais, moça. Tarde demais...

Sobremesa: "Pois se é no não que se descobre de verdade o que te sobra além das coisas casuais/Me diz se assim está em paz achando que sofrer é amar demais". (Tá bom - Los Hermanos)

3 de junho de 2004

Homônimo
Raquel Medeiros

O Amor - ele próprio – dia desses disse-me umas coisas.
Nem me deixou argumentar
Veio com uma conversa de tirar satisfação
Das vezes que disse seu nome em vão.

Achei aquilo estranho, pois nem sei ao certo quem ele é
O Amor que eu conheci não era assim intransigente
Disse a ele que podia ser outra pessoa,
Eu mesma conheço um montão de José.

Sobremesa: "I wish I could say the same for you/the day will come soon when I look in your eyes but I won't see you". (I love my car - Belle and Sebastian)

2 de junho de 2004

Pombos
Raquel Medeiros

Catarina, 5 anos, estava na pracinha com o pai. Ele lendo o jornal. Ela vendo os pombos brigarem por migalhas de pão.
- Por que tem briga por comida, papai?
- Porque o mundo às vezes é muito injusto. Umas pessoas têm muito mais e outras muito menos.
- Quer dizer que quem tem muita fome come mais; e quem tem pouca fome come menos?
- Nem sempre, minha pequena. Nem sempre...

Sobremesa: "É meu amigo só resta uma certeza/ é preciso acabar com essa tristeza/ é preciso inventar de novo o amor". (Carta ao Tom - Toquinho e Vinícius de Moraes)

1 de junho de 2004

Lápide
Raquel Medeiros

Aqui neste corpo
jaz uma alma perdida
não é boa nem má
carrega consigo grande ferida.

Uma dor que a dilacera
Um mal-querer de quem se ama
Um querer de quem espera
um apelo de quem chama.

E quem nunca ficou assim
afundado na própria dor?!
ouvindo o não; esperando o sim
porque a esperança só é menor que o amor.

Sobremesa: "Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu/ A gente estancou de repente ou foi o mundo, então, que cresceu?".(Roda viva - Chico Buarque)