31 de maio de 2004

Frank
Raquel Medeiros

Frank não agüentava mais tanta chacota, tantas piadas maldosas. Virou referência de feiúra. Não dava mais. Foi ao psiquiatra.
O doutor pergunta qual o seu problema.
- Qual o meu problema? Eu sou o meu problema.– responde Frank.
- Seu caso é complicado.
- Isso eu já sei. Eu vim atrás de uma solução.
- Eu recomendaria uma cirurgia plástica.
Frank pegou o telefone do cirurgião e marcou uma consulta.
- Posso ajudá-lo?
- Espero que sim, doutor.
- Espera um pouco...Você não é o Frankestein, da Mary Shelley?
- Sou eu sim, doutor.
- Ah, eu não posso fazer isso... No seu caso eu recomendo que você reescreva o livro.


Sobremesa: "I'm not made of successful things/ I'm not made of successful things/ I'm not made of success". (Faces - Cat Power)

28 de maio de 2004

In pieces
Raquel Medeiros

Me sinto um dedo cortado, separado do corpo. Não tenho função.
Ouço algumas frases ao longe. Algo sobre linguagem. E a única linguagem que consigo absorver é a da minha dor. Signos de tristeza com significados desesperados, desesperadores. Ouço com tanta clareza e num volume tão absurdamente alto que meus tímpanos doem. Temo que eles estourem.

Agora minha pele estica. A qualquer momento pode romper-se e me transformar em mil pedaços. Pequenos pedaços, difíceis de montar. Onde fica a cabeça? Onde coloco este outro pedaço? E meu coração, em quantos caquinhos está?
Monto devagarzinho. Colando com cuidado, mas firmemente. E quando acho que estou perto de me ver inteira, vem você e desmonta tudo novamente.

Sobremesa: "Rest in peace and me in pieces
Rest in me, in peace". (In pieces)

27 de maio de 2004

Any love
Raquel Medeiros

Bem que me avisaram
Que dar sem receber
É ilusão.
Que o amor é troca
E se existe só pra um
É obsessão.
Que o amor vem naturalmente
E se há súplica
É humilhação.
Que o amor não é egoísta
E se te sufoca
É prisão.
Pois se não tiver liberdade
não é amor, não.

Sobremesa: "I have matured, I've come of age, My visions clear.
But there's still some things that I don't want to hear". (Deeper – Arab Strap)

26 de maio de 2004

Atraso
Raquel Medeiros

Cecília, muito pontual, ficava sempre à espera de Renato - vinte e cinco minutos atrasado. Sempre.
Ela vestia uma saia que só deixava seus tornozelos à mostra. Não era linda, mas tinha seu charme. Cabelos castanhos emoldurando sua pele parda. Olhos castanhos. Lábios finos, que Cecília tentava deixar mais grossos com uma generosa camada de batom vermelho. Renato abominava. Não a Cecília, mas o batom.
A cena era sempre a mesma: Renato chega. Beija a testa de Cecília, deixando bem claro que não gosta de marcas de batom. Cecília fazia de propósito, não economizava na hora de enfeitar os lábios. Talvez uma forma de mostrar a Renato que seu atraso a incomodava tanto quanto o batom vermelho o aborrecia.
Enquanto andavam até o restaurante, Cecília tentava imaginar o que a prendia a Renato. Fisicamente era muito bonito. Mas não tinha modos. Sempre iam ao mesmo restaurante barato. Vinho barato. Comida cheia de gordura. Não era aquilo que Cecília queria pra si. E, ao passo que observava Renato deleitar-se com uma coxa de galinha, disse “você vai morrer assim – comendo coxa de galinha”. Ele levantou os olhos, a gordura fazendo o contorno dos seus lábios “por que você está dizendo isso?”. Ela disse que não queria aquilo para sempre. Não queria mais aquilo desde agora. Não esperaria a sobremesa. Acabou com tudo ali mesmo e foi embora, enfurecida. E pensou “nunca mais ponho batom vermelho”. Ela detestava batom vermelho. Colocava só para provocar o Renato.

Sobremesa: "Tem sempre o dia em que a casa cai/Pois vai curtir seu deserto, vai/Mas deixa a lâmpada acesa se algum dia a tristeza quiser entrar/E uma bebida por perto porque você pode estar certo que vai chorar". (Regra Três - Toquinho)

24 de maio de 2004

A mágica de cada um
Raquel Medeiros

O coelho sai do escuro da cartola e vê o mundo ao redor. Vê os olhares de fascínio; os queixos caídos; os sorrisos de encantamento. E ao voltar para a cartola, não consegue mais ver a escuridão da mesma forma. Pois lá de dentro, ele ainda vê os sorrisos, os olhares, os queixos caídos. Sente que não é mais o mesmo. Seus olhos brilham quando ouve os aplausos e pensa “não são para o mágico; são pra mim!”.

Sobremesa: "The light in your eyes, the smile on your ruby lips
tells me my lost soul is found". (Love is the law - The Seahorses)

23 de maio de 2004

Facas
Raquel Medeiros

Ele não parava de me avisar “Não brinque com facas. Não brinque com facas”.
No dia seguinte, lá vem ele de novo “Não brinque com facas. Não brinque com facas”.
Falou tanto que no terceiro dia quando ele chegou, eu cortei a língua dele.

Sobremesa: "I don't want to play football/I don't understand the rules of the game". (I don't want to play football - Belle and Sebastian)

21 de maio de 2004

Honre suas saias, Moda!
Raquel Medeiros

A maior preocupação de Catarina não era o índice crescente de desemprego, nem a dívida externa, nem tão pouco o seu primeiro vestibular. Sua maior preocupação era com o comprimento das saias na próxima estação – minissaia, abaixo do joelho, longa, quatro dedos acima do joelho – aquilo a enlouquecia. Todos os dias ela ficava frente à TV, esperando que o telejornal exibisse alguma matéria sobre o comprimento das saias.
“E nossa matéria de moda hoje, falará sobre o comprimento das saias na próxima estação” – diz a TV. Catarina corre e senta na sala. Ansiosa. Hipnotizada. A matéria dizia que esta seria uma estação onde todos os comprimentos de saia estariam na moda.
Catarina ficou furiosa. “Onde já se viu?! Todas as saias! Longas, curtas, no joelho. É um absurdo. A moda não sabe o que quer.”. Detestou a democracia. Preferia o autoritarismo.

Sobremesa: "Essa moça tá diferente já não me conhece mais/Está pra lá de pra frente/Está me passando pra trás". (Essa moça tá diferente - Chico Buarque)

20 de maio de 2004

Pare, pense e peça
Raquel Medeiros

O que você quer? – os olhos dele perguntavam a ela. Ela queria tanta coisa... Queria que ele a beijasse e que isso durasse a vida inteira; queria ver as marcas; queria um longo abraço; queria ouvir que ele ainda a amava; queria o resto da noite. Mas tudo o que ela conseguiu dizer foi que queria que o tempo esfriasse. Ele deu uma desculpa e foi embora. Entendeu tudo errado...

Sobremesa: "And the head said that you always were a queer one from the start" (Expectations - Belle and Sebastian)

19 de maio de 2004

Negligência
Raquel Medeiros

Você pede desculpas e olha de novo
Pra qualquer uma dessas na rua
Dessas rebolativas em roupas mínimas.
Você pede desculpas e diz de novo
Cospe todo o seu acervo de ofensas
Manchando o seu bom Português
E diminuindo aos poucos a minha capacidade auditiva.
Você pede desculpas e faz de novo
Bate a porta, quebra nossos móveis
Derruba as paredes
E o teto vem abaixo.

Então vamos combinar uma coisa
Eu não ligarei mais para onde você olha
O que diga ou o que faça
Mas em troca você me faz um favor
Vá embora!
Leve todos os seus discos dos Stones
Leve suas calças e sua dezena de camisetas brancas, todas iguais.
Mas deixe o Chico, o Cartola, o Quintana, o Rimbaud
Deixe todos os homens que você não conseguiu ser
E que eu, enganada, tentei encontrar em você.


Sobremesa: "So if it's true that love will never die then why do the lovers work so hard to stay alive?" (Please sister - The Cardigans)

18 de maio de 2004

A insistência dos dias
Raquel Medeiros

Acordou triste. Domingos são assim, parece que foram dedicados à melancolia, à tristeza. E não importa o que se faça, sempre há uma dose dela.
Levantou da cama apesar da resistência, pôs uma música e foi fazer coisas prosaicas como tomar banho, escovar os dentes, comer. O dia estava agitado demais. Estranhou.
As pessoas na rua estavam demasiadamente felizes. Ela pensou “que descaso com o domingo!”. Voltou pra casa, leu alguns poemas do Rimbaud, não agüentou o clima de felicidade, ligou para alguém de confiança e perguntou “que dia é hoje?”. A voz respondeu “hoje é sábado”. Esqueceu de tirar as folhinhas do calendário fazia uma semana, e pensou “vou arrancá-las e deixar a de sábado, até a segunda, e o domingo será bom”. Dormiu. Não teve jeito. Acordou triste. Perdeu uma semana.

Sobremesa: La Valse d'Amelie

16 de maio de 2004

Kill Bill twice

Bang bang, I shot you down
Bang bang, you hit the ground
Bang bang, that awful sound
Bang bang, I used to shoot you down
(Nancy Sinatra)

Desperte algo em mim, mesmo que seja um desses sentimentos falsos...

14 de maio de 2004

Anúncio de Jornal
Raquel Medeiros

Procura-se um coração em bom estado
pode até já ter-se decepcionado
mas dilacerado não pode estar.
Procura-se uma nova carcaça
pode até ter alguns arranhões
mas com quebras irrecuperáveis não pode estar.
Procura-se um cérebro
pode até ter danificado boa parte de memória
mas sem habilidade pra raciocinar não pode estar.
Procura-se uma alma
pode até já ter-se perdido
mas com mágoas irreparáveis não pode estar.
Quem procura desesperado está
Se encontra na Rua da Amargura,
num número que não consigo lembrar.

12 de maio de 2004

Conserto
Raquel Medeiros

Estavam todos devidamente ensaiados. Violino, piano, flauta, tuba. Todos alinhados para o concerto.
A apresentação tem início. O maestro – satisfeito – regia com orgulho.
Eis que o trompetista começa a tocar outra música. Tocava de olhos fechados, nem parecia estar lá. Vieram os olhares de indignação – inclusive da platéia – mas o espetáculo não parou.

Marcelo viu aquela cena e tirou o instrumentista fora do tom. Os outros integrantes da orquestra sorriram, até mesmo o maestro. A harmonia retorna.
Marcelo leva o trompetista de volta para a caixa e dá para a mãe, dizendo: “Devolve, mãe! Devolve!”.

10 de maio de 2004

Segredos
Raquel Medeiros

Ah, meus segredos não conto
Vai insistir?
Cruzo os braços. Pronto!

O elefante não sabe
O macaco também não
E até para o leão
Com o qual eu tenho intimidade
Fiz boca de caixão.

É melhor você desistir
Que eu não falo nada não
As pessoas estão chegando para o espetáculo
Eu sou domadora
E se você não ficar quieto
Jogo-te na jaula do leão.

9 de maio de 2004

Sei que o vento que entortou a flor
passou também por nosso lar
e foi você quem desviou
com golpes de pincel.

(Los hermanos - Além do que se vê)

6 de maio de 2004

Um breve desabafo

Criei um blog porque vi nisso a oportunidade de divulgar o que eu escrevia sem burocracia.
Sempre gostei muito de escrever. Nunca achei que escrevesse bem, mas o ato de me expressar com palavras me proporcionava/proporciona um grande prazer. A palavra é essa: PRAZER. Escrevo por isso.
Quando alguém critica, diz que não gostou, eu entendo que por uma questão de gosto ou por eu não escrever tão bem, que não se consegue agradar a todo mundo - nem é minha intenção. No entanto quando alguém que você admira enaltece o que você faz por prazer, há um misto de envaidecimento/embaraço, e eu não sei muito bem lidar com isso.
Hoje, graças a Mastroianne (é, eu dou nome aos bois, de vez em quando), tive a certeza de que uma coisa - entre tantas - que eu preciso aprender é lidar com os elogios. Espero que isso venha com o tempo. Até lá, ruborizo.

Gramática
Raquel Medeiros

Ser a interrogação
transformada em exclamação
As reticências...
A oração subordinada
perfeitamente coordenada
Ser o substantivo adjetivado
Ser o verbo, em estado e em ação
O advérbio de intensidade
Ser o sujeito e o predicado
O objeto direto do seu desejo
O objeto indireto da minha intenção
Me fazer metáfora, hipérbole
Do dito, do não dito
Nessa gramática que tem
a emoção como regra
e a razão como exceção.
Crime de amor
Raquel Medeiros

Algemaram-no. Ele não esboçou nenhuma reação. Caminhava com a cabeça baixa. Pensativo.
Na porta da delegacia havia repórteres e curiosos. Todos consternados. “Um crime realmente hediondo” – disse um repórter. “Onde já se viu? Arrancar os olhos de alguém!” – dizia um dos passantes. “É um monstro!” – vociferava uma senhora, com as compras na mão.
Dentro da delegacia, o delegado olha pra ele.
- Por que você fez isso? Como pôde?
- Eu a amo, e por isso o fiz.
- Mas por que? Arrancar os olhos de sua esposa!
- Não queria que ela olhasse para ninguém.
- Que ciúme doentio! Você é realmente um monstro! O que me impressiona é você ter-se entregado. Segundo sua esposa, você era um ótimo marido. Jamais desconfiariam de você. Além do mais, ela está cega, não poderia fazer o reconhecimento da maneira convencional.
- Foi justamente por isso que me entreguei, delegado. Já pensou? Minha esposa tateando rostos de homens para descobrir qual deles arrancou-lhe os olhos? Não, delegado, eu não agüentaria isso.

5 de maio de 2004

Sem delongas

Acabou. Agora ela tinha certeza. Realmente acabou.
Antes ainda insistiam as marcas, manchas, mágoas, e outras tantas coisas que ela não conseguia explicar. Esses sentimentos que ainda não têm nome.
Quando o conheceu sabia muito pouca coisa sobre o amor. Não sabia nada. Aprendeu com ele, com o tempo, com os tombos.
Pousou seus olhos sobre a caixa aberta. Ali, todas as palavras doces – outras nem tanto – que ele escrevera. Não fez nada. Não queria. Adorou ver aquelas traças – e eram muitas – devorando todas as cartas, todas as fotos. Tudo o que restava dele. Sentiu-se aliviada de ver que os sentimentos sem nome já não existiam mais. Pensou em fazer uma criação de traças. Sabe como é, o coração não é muito esperto, pode precisar delas...

Raquel Medeiros

4 de maio de 2004

Peço desculpas, mas eu precisava colocar isso...
Eu adoro o Kubrick! Quem dera eu tivesse um terço da genialidade dele... mas ele está morto, e eu ainda tenho muito o que fazer. É isso.





Faça você também Que
gênio-louco é você?
Uma criação de O Mundo Insano da Abyssinia


Texto antigo

Perdão aos que já leram mas é que por algum motivo eu gosto muito desse texto e fiquei com vontade de tê-lo aqui. Bom apetite!


River
Raquel Medeiros

A escola. A saída. River. Seu nome escrito assim mesmo, como rio. Os olhos dele. O acanhamento. O seu sorriso largo. O meu sorriso tímido. 13:00. O almoço. A conta. Eu pago. Você paga. Nós pagamos. A ida à Biblioteca. A digestão. Ela recita Byron. Ele recita Sade. As segundas intenções. O desejo. A ida ao apartamento dele. As mãos frias e suadas. O medo da rejeição. A chave rodando na fechadura. A desistência. A desistência de desistir. Pé direito. Pé esquerdo. O vinho. A música. Chet Baker. O piano. O trompete. A dança. A taça vazia. O beijo com gosto de vinho. 19:00. Sexta. O tesão. O sorriso. A troca de olhares. O desaparecimento das roupas. As mãos. Os seios. As costas. A boca. A nuca. A cama. Os quadris. O sussurro. O suor. O deleite. O gozo. O descanso. O banho. A volta. O tesão. As repetições. O abraço. 22:00. O avanço da hora. O beijo de despedida. A volta pra casa. A distância. O banho. O jantar. Sozinha. O cigarro. 01:00. Acordar. O sonho. Não era verdade. Nem podia ser. Não conheço nenhum River, escrito assim mesmo, como rio.

2 de maio de 2004

Paper bag
Raquel Medeiros

Levantou as mãos para o alto e ficou gritando “Fogo! Fogo!”. Correu por toda a cozinha, tentando encontrar algo que apagasse aquele início de incêndio. Sim, aquilo era só o início. Derrubou os talheres, quebrou os pratos, derramou o leite do gato. “E agora o que eu faço?”. Sua cabeça pegando fogo. As chamas já estavam quase ao alcance da boca. Se jogou na pia e abriu a torneira. “Que alívio!”. De repente a porta se abre, e uma voz de criança diz “que cheiro de pão assado!” E uma voz adulta, “cheiro de pão queimado e molhado, com saco e tudo!”.