26 de maio de 2004

Atraso
Raquel Medeiros

Cecília, muito pontual, ficava sempre à espera de Renato - vinte e cinco minutos atrasado. Sempre.
Ela vestia uma saia que só deixava seus tornozelos à mostra. Não era linda, mas tinha seu charme. Cabelos castanhos emoldurando sua pele parda. Olhos castanhos. Lábios finos, que Cecília tentava deixar mais grossos com uma generosa camada de batom vermelho. Renato abominava. Não a Cecília, mas o batom.
A cena era sempre a mesma: Renato chega. Beija a testa de Cecília, deixando bem claro que não gosta de marcas de batom. Cecília fazia de propósito, não economizava na hora de enfeitar os lábios. Talvez uma forma de mostrar a Renato que seu atraso a incomodava tanto quanto o batom vermelho o aborrecia.
Enquanto andavam até o restaurante, Cecília tentava imaginar o que a prendia a Renato. Fisicamente era muito bonito. Mas não tinha modos. Sempre iam ao mesmo restaurante barato. Vinho barato. Comida cheia de gordura. Não era aquilo que Cecília queria pra si. E, ao passo que observava Renato deleitar-se com uma coxa de galinha, disse “você vai morrer assim – comendo coxa de galinha”. Ele levantou os olhos, a gordura fazendo o contorno dos seus lábios “por que você está dizendo isso?”. Ela disse que não queria aquilo para sempre. Não queria mais aquilo desde agora. Não esperaria a sobremesa. Acabou com tudo ali mesmo e foi embora, enfurecida. E pensou “nunca mais ponho batom vermelho”. Ela detestava batom vermelho. Colocava só para provocar o Renato.

Sobremesa: "Tem sempre o dia em que a casa cai/Pois vai curtir seu deserto, vai/Mas deixa a lâmpada acesa se algum dia a tristeza quiser entrar/E uma bebida por perto porque você pode estar certo que vai chorar". (Regra Três - Toquinho)

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