29 de novembro de 2004

Textos antigos, só pra tirar um pouco o mofo.

Amanhã
Raquel Medeiros

Amanhã eu não sei
Talvez eu acorde sedado
E pegue o ônibus errado
Só pra ver onde vai dar.

Amanhã eu não sei
Talvez eu acorde inspirado
E minta desavergonhado
Só pelo prazer de enganar.

Amanhã eu não sei
Talvez eu acorde endemoniado
E mate o cara errado
Só pela distração de ver sangrar.

Amanhã eu não sei
Talvez eu acorde finado
E finja estar acordado
Só pra esse verso rimar.


Poema deixado embaixo da porta
Raquel Medeiros

E se falta o abraço
Eu posso desatar esse maldito laço
Que me enforca
Ao invés de me enfeitar.

Por mais que me sobre bondade
A grande verdade
É que o desdém me sufoca
Mais do que posso suportar.

Mas não se importe
Que com um pouco de sorte
Em breve me verás morta
E nem precisa fingir chorar.

Sobremesa: "Esse papel de parede de fungo/ não combina com a decoração do teu quarto/ mas cai bem com a do coração/ no entanto, não deixa isso se alastrar/ abre portas e janelas/ arranca o teto/ e deixa o sol entrar". (Raquel Medeiros)

23 de novembro de 2004

A insustentável certeza de não ter
Raquel Medeiros

Sobrava ainda um pouco de café. Restavam ainda alguns poucos cigarros, e uma tristeza tão grande que não cabia no pequeno apartamento.
Há três horas antes, ele ainda estava lá – esvaziando o guarda-roupa, embrulhando os livros e o estômago dela, levando a Billie Holiday embora... Ao som de ofensas, socos e pontapés morais.
Fim de relacionamento sempre dói, deixa alguma cicatriz, nem que seja lá no cantinho do tornozelo. Com ela não era diferente. Tinha marcas nos pulsos, e nos seios. O peito apertado e a cabeça rodando tanto que precisou sentar, ali, na poltrona dele, que dali a alguns dias ele mandaria buscar, e seria mais um lugar vazio - além da cama, e do coração dela.
Não tinha força pra levantar. Queria sair, comprar mais café, cigarros, e quem sabe um pouco de alegria. Mas não conseguia. Nunca foi a menina que levantava rápido da queda e limpava displicentemente o joelho.
Sempre foi a que ficava muito tempo ainda no chão, vendo os arranhões, o sangue, e a sua incapacidade de lidar com a visão de quem está embaixo, esperando a mão, a ajuda, o abraço.
Acabou o café. Acabaram os cigarros. Mas a tristeza estava lá – mais espaçosa que nunca.
Conseguiu levantar com grande esforço. Foi no quarto, pegar a bolsa pra ir à rua. O cheiro dele espalhado no quarto, as gavetas vazias, a ausência dos sapatos dele. Foi um choro doído. O choro que não saiu quando ele bateu a porta.
Despencou na cama, que assim como a tristeza, parecia grande demais pra ela. Mas agora era só dela.

Sobremesa: "Se você me ama/ por que não se concentra?" (Ana Cristina Cesar)

22 de novembro de 2004

texto velho... de uma época em que a esperança vencia a espera.

Na balança, a espera pesa mais que a esperança
Raquel Medeiros

Um postal da dor
Na esperança de um amor
Essa é a vida da Mariah.

Sonhos pálidos
Olhos já cansados
Da lida difícil de levar.

Pôs um vestido estampado
Cheirando a guardado
Com um perfume pra enganar.

Um pouco de cor nos lábios
Há tempos ressecados
Pela ausência do beijar.

Esperou mas ele não veio
E sua vida ficou assim sem recheio
Morreu, entediada, esperando o amor chegar.

Sobremesa: "A esperança deseja o abraço/ a espera fomenta o cansaço/ pelo menos uma hora na vida/ a gente já morreu na ponta da faca da demora/ que faz passar a hora/ faz esgotar o tempo/ faz a beleza ir embora/ e estragar o sentimento". (Raquel Medeiros)

18 de novembro de 2004


"Sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada,
uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudades...sei lá de quê!''
(Florbela Espanca)

*A foto é de Gustavo Soares. =****

Ninguém perde a gente. A gente é que se perde.
Raquel Medeiros

Hoje é dia de mudar a alma de casa. Desocupar os cômodos. Acabar com o incômodo. Esvaziar o corredor, com malas cheias de coisas velhas e em desuso. Jogar fora as panelas vazias, cuja ferrugem já me causou diversas doenças – algumas reais outras inventadas por mim. Porque doença costuma trazer um certo charme à tristeza, dá credibilidade.

Hoje é dia de esquecer sentimentos como afeto, esperança e alegria. É dia de ficar entre a coragem e a covardia. É a bulimia de bons sentimentos. Eu os tomo pra mim, me alimento e depois os vomito. E isso não começou hoje. Já faz tanto tempo que já devo ter uma úlcera emocional – mais uma doença inventada.
Há tempos meus olhos já não se atrevem a fitar os olhos dos outros, desses estranhos, que um dia me foram tão familiares. Meus olhos agora só procuram por uma porta, uma saída...

Hoje é dia de, apesar da distância, dar uma certa satisfação às pessoas que dividem esta casa comigo. Fico em dúvida se escrevo uma carta, se escrevo com batom em todos os espelhos dos banheiros, se ponho um recado na geladeira – bem ali, junto da foto do nosso último verão. Eu e meu corpo que não preenchia o biquini, e a cada onda mais forte lá se ia a parte de cima. Na foto, parecia divertido. Mas hoje não é mais, e minha condição não me deixa lembrança daquela menina que adorava construir castelos. Hoje não construo nada, nem castelo de cartas.

Amanhã é dia de nascer de novo. Num outro lugar, quem sabe até mais bonita. Mais saudável de corpo e mente. Mais confiante. Quem sabe até eu nasça numa família de pessoas conhecidas. Nasça homem e tenha com o que preencher o calção de banho.

Mas hoje, nada de cartas. Nada de espelhos de banheiros riscados com batom. Nada de recado junto à foto do último verão. Eu não sei fazer isso. Nunca soube o que dizer a eles. Hoje não vai ser diferente. Afinal, o que se diz quando se precisa morrer?

Meus olhos acharam, enfim, a saída. Não era uma porta, mas a janela serviu.

Sobremesa: "Não terei podido fazer-te viver isto/ escrevo assim mesmo para você que me lê/ porque é uma maneira de quebrar o cerco/ de te pedir que procures em ti mesmo se não tens também um desses gatos/ desses mortos que amaste/ e que estão nesse aí que já me exaspera mencionar com palavras de papel." (Julio Cortázar)

16 de novembro de 2004

Sleep darling, do not cry
Raquel Medeiros

Da última vez
Trocamos sorrisos pequenos
E abraços amenos
Que não eram meus nem seus.

Agora vês!
Nem abraços nem beijos na despedida
E na hora da partida
Respondestes o meu “até breve”
Com um “adeus”.

Sobremesa: Lutar contra a foice do tempo é vão/ tentar esconder a tristeza é covardia/ hoje é dia de sangrar o coração/ é dia de admitir que amanhã pode ser de alegria/ mas hoje não. (Raquel Medeiros)

11 de novembro de 2004

A difícil condição
Raquel Medeiros

Os gatos vêm aqui com suas unhas afiadas
As pessoas sentam com suas aflições
Sentam com seus cigarros e me queimam o braço
E ainda tem quem ache fácil ser sofá...

As pessoas discutem seus problemas
Discutem sobre o cardápio
Discutem sobre o assoalho
E me batem com os punhos
E ainda tem quem ache fácil ser mesa...

As pessoas vêm com seus pesadelos
Com seus sonhos bizarros
Trazem qualquer um pra deitar em mim
E me causam insônia
E ainda tem quem ache fácil ser cama...

Os gatos vêm com suas unhas afiadas
As pessoas vêm com seus problemas
Discutem o cardápio, o assoalho
Me batem com o punho
E me causam insônia
E ainda tem quem ache fácil ser gente...

Sobremesa: "Traz qualquer coisa de sobremesa/ pudim ou torta de limão/ que às vezes cansa ser assim/ às vezes eu não quero ser são/ tudo o que faço é zombar de mim/ é rir da eterna condição/ e disso tudo ter um fim/ a paixão e a batida do coração/ bom é quando morre o sentimento ruim/ e no lugar fica o perdão/ se isso não fizer sentido/ esquece, que é coisa de coração doído/ não tenta encontrar razão". (Raquel Medeiros)

9 de novembro de 2004

Balanço das perdas
Raquel Medeiros

- O que nós perdemos nessa vida, Maria?
- Perdemos nosso filho mais novo, contrariando as leis naturais, num acidente de automóvel.
- Perdemos nosso filho mais velho, morto pela “quantidade excessiva de substâncias tóxicas em seu sangue”, disse o médico. Mas acho que ele morreu de tristeza, porque a Amália o deixou, e ainda levou as crianças – nossos netos. Perdemos nossos netos também, que nesse momento devem estar brincando na neve em algum país europeu.
- Você perdeu seus cabelos negros. Eu perdi o viço da pele. Você perdeu o vigor e boa parte da sua capacidade auditiva. Eu perdi a rigidez dos seios e a visão num dos olhos. Você perdeu o campeonato de futebol. Eu perdi o show do Roberto.
- Você esqueceu nosso filho do meio, querida.
- Não esqueci, Horácio, mas ele nós ainda não perdemos.
- Ele nos esqueceu, Maria...
- Assim é a vida, querido... Um dia os filhos acabam esquecendo os pais... Vão embora, casam-se, batem a porta e não voltam mais... É verdade que no caso do Fernando fomos nós quem batemos a porta pra ele... O colocamos num lugar onde todos são esquecidos, onde todos estão perdidos....
- É, no final das contas, perdemos o Fernando também... Põe aí na lista, Maria...

Sobremesa: "Deus sabe o que eu quis foi te proteger/ do perigo maior que é você/ e eu sei que parece o que não se diz/ no seu caso é o tempo passar/ quem fala é o doutor/ (...) / e foi difícil ter que te levar aquele lugar/ como é que hoje se diz/ você não quis ficar/ os poucos que viram você aqui/ me disseram que mal você não faz/ e se eu numa esquina qualquer te vir/ será que você vai fugir?/ se você for eu vou correr/ se for eu vou..." (Los Hermanos)

8 de novembro de 2004

O amor que a gente tinha
Raquel Medeiros

Não me peça pra calar agora. Essa é a minha hora de falar, está bem escrito aqui, no roteiro. Eu não preciso ter um final triste. Também está escrito aqui.
Onde foi que meu personagem se perdeu do teu? Foi na hora da mudança?! Eu devia saber... Senti que algo tinha ficado no caminho, tinha se perdido. Nos perdemos.
Quando ouvi o barulho abafado de vidro quebrado, achei que fosse algum prato, algum copo. Mas nem era, era o amor que a gente tinha...
Eu pensava que ele era forte, que resistiria ao tempo e ao vento, à má-sorte... Ele não resistiu a mudança. Caiu naquela rua, como é mesmo o nome? ... Desesperança.

Sobremesa: "Se a comida não estiver na temperatura adequada/ pode estar certo que mais cedo ou mais tarde vai estragar/ e se ainda sim, você quiser saboarear/ por insistência/ por persistência/ pra ver o que dá pra aproveitar/ tenha em mente que certas coisas quando estragam não tem geladeira ou fogão que dê jeito/ e se você comer/ pode sentir vontade de vomitar". (Raquel Medeiros)

4 de novembro de 2004

O duelo
Raquel Medeiros

Saudade rima com maldade
Saudade faz a hora sempre ser tarde
Saudade que causa alarde
Saudade que zomba da minha vontade.

Vontade rima com liberdade
Vontade faz a hora sempre ser eternidade
Vontade que causa felicidade
Vontade que desafia a minha saudade.

No desfecho desse duelo
O sarcasmo perde para o belo
Vacila a saudade que embaralha o verso
Prevalece a vontade que deixa tudo eterno.

Sobremesa: "Dentro dos meu braços/ os abraços hão de ser milhões de abraços/ apertado assim/ colado assim/ calado assim/ abraços e beijinhos/ e carinhos sem ter fim". (Tom Jobim)

3 de novembro de 2004

As man(ias) de Cícero
Raquel Medeiros

Foram três facadas, em pontos estrategicamente escolhidos. Ela era assim mesmo – meticulosa, presa a detalhes, pormenores, ponto e vírgulas.
Quando estavam juntos, Olivia observava em Cícero coisas que foram deixando a convivência insuportável. A maneira como ele pegava a xícara - o mindinho formando um ângulo de 45 graus com a asa. A maneira como ele lavava a louça – os pratos antes dos copos. As camisas brancas misturadas às camisas coloridas. Ela odiava isso tudo.
Questionava-se como poderia ter casado com ele. Não o teria feito se soubesse dessas pequenas – grandes coisas. Casou com um homem que não conhecia.
Começou a ficar com medo dele. Apavorada. “Do que ele seria capaz?. Alguém que gosta de feijão gelado é capaz de qualquer coisa”, pensava.
Um dia, quando Olívia chegou em casa, encontrou Cícero preparando um molho branco com a mesma colher com a qual ela mexia os doces. Aquilo foi a gota d’água.
Olívia foi lentamente até a gaveta dos talheres, pegou a faca de cortar carne, chamou a atenção do Cícero, e deu o primeiro golpe, certeiro, no mindinho. “Agora você não levanta mais esse maldito”. Depois foi nas mãos. “Onde já se viu usar colher de mexer doces pra mexer molhos salgados?”. A terceira foi num dos olhos. “Já que você não consegue diferenciar o branco das outras cores, talvez não precise de dois”.
Cícero – desesperado – perguntou a Olívia a razão de toda aquela fúria. Ela disse que ele era um louco, e que ela tinha medo do que ele poderia fazer com ela. Aqueles não eram hábitos de pessoas normais.
Ele disse que a amava. E ela disse “Vá embora, Cícero, aproveite que você ainda tem os pés”.
E assim acabou o único casamento de Olívia. Com três facadas, em pontos estrategicamente escolhidos. Ela era assim mesmo – meticulosa, presa a detalhes, pormenores, ponto e vírgulas.

Sobremesa: "A gente sempre destrói aquilo que mais ama/ em campo aberto ou em uma emboscada/ alguns com a leveza do carinho/ outros com a dureza da palavra/ os covardes destroem com um beijo/ os valentes com uma espada". (Oscar Wilde)