16 de dezembro de 2006
"somos românticos-realistas" - Richard Linklater
*Julie Delpy e Ethan Hawke, em Before Sunset.
Sem sinal de fumaça
Raquel Medeiros
Noite insone, como de costume. Na mesa, um maço de cigarros. Vazio. Sinto vontade de fumar e me culpo por isso. O dia não foi bom. Escaldante por fora. Angustiante por dentro. Uma vontade de deixar tudo pra trás. De me deixar pra trás. De não saber quem sou.
Por isso desejo um cigarro. Não consigo levantar nem pra contar os trocados para um maço. A que horas você volta? Não quero jantar sozinha de novo. Não quero ver Before Sunrise sozinha e ficar com saudades dos nossos diálogos. Não quero adormecer no sofá e acordar sozinha, nessa espera vã. Não quero levantar e ter que encarar os outros e a mim mesma. Não quero enfrentar a rotina sozinha. Não consigo.
E aquelas nuvens de chuva resolveram se espremer sobre os meus olhos. Mas apesar da dor, do choro e desse imenso vazio, só te peço que quando voltares traga-me um maço de cigarros.
Sobremesa: O inverno aqui durou muito tempo/ não sei precisar/ mas tive crises de choro fantasiadas de resfriados contínuos/ foi uma pneumonia branda/ eu suo frio só de pensar em injeção/ mas todos os dias me forçava a tomar uma dose cavalar de ânimo pra enfrentar a vida. (Raquel Medeiros)
15 de dezembro de 2006
Depression 1 - Yuko Shimizu
Domênico Silva
Raquel Medeiros
Escrevo diante da janela aberta. Os tímidos raios de sol das primeiras horas do dia criam um leve contraste com o verde-lodo do prédio. Apartamentos apertados e fedorentos. Gritos, gemidos e garrafas quebrando são a trilha sonora da madrugada. Por isso só consigo escrever a essa hora do dia. Hora em que a maioria dorme.
Moro sozinho. De vez em quando minha mãe me visita. sabe como é, filho único... Reclama da minha bagunça e do meu cigarro; da minha barba mal feia e do queijo mofado. Reclama e joga na minha cara os arranhões nos seus joelhos, frutos de suas orações, de centenas de contas de rosário repetidas fervorosamente ao longo desses meus quase quarenta anos. Ela era uma vítima. Sempre foi. Primeiro de Deus; depois do meu pai. E agora, do único filho.
Eu sempre quis escrever sobre outras coisas. Coisas belas - o canto dos pássaros no verão, a sensualidade discreta das escolares, amores bem-sucedidos. Mas o que me era servido como inspiração eram vizinhos barulhentos e asquerosos, e uma mãe que parecia carregar consigo as chagas de Cristo.
Eu até conseguia enxergar meu único livro acabado, empoeirado e abandonado na prateleira de uma livraria vagabunda. Livro curto, dividido em três capítulos.
A Patética Vida de Domênico Silva.
Primeiro capítulo: Filho céptico de de mãe devota.
Segundo capítulo: Como conseguir tirar inspiração do lodo.
Terceiro capítulo: Aqui jaz Domênico Silva, carrasco da própria mãe.
Sobremesa: "Sobre meus ombros semeiam centenas de tempestades/ como se o mundo fosse um campo crivado de espadas/ Minha alma aplaude/ 'destruam esse corpo/ essa casca inimiga que me consome/... jaula de muitos metros...'/ que desfrutem, tudo/ e dancem seus rituais sobre minhas costelas". (Marina Ráz)
30 de novembro de 2006
Sem fantasia
As(minhas) mulheres de Chico
Raquel Medeiros
Na segunda sou uma
Das minhas meninas
Já saio sozinha
Como as notas
Da canção
Levo meu destino
No trabalho-fardo
Iluminado de sim
Atrapalhado de não.
Na terça sou
Tereza Tristeza
Do cotidiano
Sem solução
Tire meu lugar
Da mesa
Que o enjôo
É gritante
E o carnaval
É dia distante.
Na quarta sou
A Rosa
Saio pra comprar
Cigarro
E volto sorridente
Mas da alegria
Sou passageira
A ficha cai ligeira
Quando a santa
Troca meu nome
E some com meu sono.
Na quinta sou
Cecília
Invejo a orquestra
Afinada
Respiro pouco
E soletro l-o-u-c-o
Na madrugada
Na insônia desvairada
Mil refletores
E nada de amores
Pra me fazer
De morada.
Na sexta sou
Ana de Amsterdam
Da compra, da venda
Da troca de pernas
Da cerveja gelada
Da seda e da risada
Carta marcada
No jogo da sorte
Às vezes dou azar
O ardor das docas
Na boca do mar.
No sábado sou
Bárbara
Desesperada e nua
Na esperança de ser tua
Quando a noite chegar
Agonizando uma
Paixão vadia
Feito uma hemorragia
Vem buscar minha boca crua
E morde como carne tua.
No domingo sou
Beatriz
Moça triste
Pintada de atriz
Andando com os pés
No chão
A felicidade
É uma amarelinha
Feita de giz
Mas vem a chuva
E apaga o céu
Na véspera da segunda
A alegria é de papel.
Sobremesa: "Eu quero te contar das chuvas que apanhei/ das noites que varei no escuro a te buscar/ eu quero te mostrar as marcas que ganhei/ nas lutas contra o rei/ nas discussões com Deus/ e agora que cheguei/ eu quero a recompensa/ eu quero a prenda imensa dos carinhos teus". (Chico Buarque)
17 de outubro de 2006
"No puede ser que nos separemos así,
antes de habernos encontrado." Cortázar
Um pouco do que resta
Raquel Medeiros
Resta em mim algo que não cessa
que quando no cérebro acaba
no coração recomeça.
Resta uma dose de veneno intenso
De dor intensa de prazer imenso
De desejo que sempre avança.
Resta um inferno nas entranhas
E uma estranha saudade na alma
Resta a tormenta que acalma.
Resta a esperança vestida de vontade
Resta a vontade despida de pudor
E uma força de buscar no amor
A felicidade disfarçada de eternidade.
Sobremesa: "O poema é pobre/ e nas entrelinhas/ a inspiração é nobre/ o querido e saudoso Poetinha/ ah, se todos fossem iguais a ele..." (Raquel Medeiros)
23 de agosto de 2006
"É que há em mim agora uma dor profunda específica,
com tantas facetas quanto os olhos de uma mosca, e
devo dar à luz essa monstruosidade de modo a ficar
novamente leve" (Sylvia Plath)
Carta à Annabel
Raquel Medeiros
Annabel,
Em cada linha sua sinto o fardo de carregar o pouco peso do corpo e a obesidade da alma. O sono que não chega e o cansaço que não sai. A vontade de desistir maior que a necessidade de lutar.
Mas a guerra não termina até que se contem os mortos (que os enterrem!), que se cuide dos feridos e se cure as feridas.
Não consegue escrever. Não consegue ouvir música. Não consegue passar do primeiro capítulo do livro. Não consegue achar o significado no dicionário. Tantos já te traduziram, Annabel, mas nenhum deles te consola. Nenhum deles sente exatamente como você.
A vida é corrida de obstáculos. É salto mortal. É um nado nem sempre sincronizado. Nos pés, os calos. Nos olhos, enchente. Mas no teu jogo sem treino ainda há tempo de tentar se equilibrar na barra. De vencer a maratona com um único pensamento - um passo de cada vez.
Você me preocupa, Annabel. Coma, mesmo que a sopa esteja rala. Beba, mesmo que o café esteja frio. Levante, mesmo que a apatia se vista de gravidade.
Assuma a maternidade de suas virtudes e defeitos. Alimente o primeiro e eduque o segundo. Mas não seja ausente de si, Annabel. Não deixe de ser.
Sobremesa: "As ruas estão tristes, Annabel/ a marchinha de carnaval acompanha o funeral do teu corpo vivo/ não morra na véspera/ não faça a (in)digestão antes mesmo de comer/ resista, Annabel/ não desista". (Raquel Medeiros)
20 de julho de 2006
"El tango es un pensamiento triste
que se puede bailar"
(Enrique Santos Discépolo)
Ela. Ele. Eles...
(Raquel Medeiros)
Ela
Encara o espelho. A toalha ainda envolve o corpo. Na vitrola, Chico Buarque, "Não, solidão, hoje eu não quero me retocar nesse salão de tristeza onde as outras penteiam mágoas". Meia-calça e cinta-liga. Uma taça de vinho. Um cigarro. Vestido vermelho. Vermelho nos lábios e na flor do cabelo. Salto alto. Perfume no colo e na nuca. Cabelos presos e pensamentos soltos. Uma última taça para criar coragem. Um passo excitante na frente do outro hesitante. Desliga a vitrola. Acende um cigarro. Sai.
Ele
Encara o espelho. A toalha ainda envolve a cintura. Na vitrola, Frank Sinatra, "Something in your eyes was so inviting, something in your smile was so exciting". Meias pretas. Uma dose de uísque. Um cigarro. Calça preta. Camisa idem. Tenta arrumar o cabelo. Sapatos bem engraxados. Perfume nos pulsos e na nuca. Chapéu inclinado e pensamento reto. Uma dose de uísque para tomar coragem. Um passo viril na frente do outro vil. Desliga a vitrola. Acende um cigarro. Sai.
Eles
Ele a leva para a pista de dança. Os passos traiçoeiros e o apuro duvidoso do par denunciam o tango. Na vitrola, Carlos Gardel, "Del fondo de mi copa su imagen me obsesiona, es como una condena, su risa siempre igual, coqueta y despiadada, su boca me encadena, se burla hasta la muerte la ingrata en el cristal". Num ritmo pernicioso, executam o mais lascivo dos balés. Se entregam entre braços, pernas e olhares. Não se pode afirmar o que os une - amor, dúvida, desilusão, solidão. Mas nunca se viu, naquela pista de dança, um casal assim. Ela, pólvora. Ele, sangue.
Sobremesa: "Descubrimos vos y yo en el triste carnaval/ una música brutal/ melodías de dolor/ despertamos vos y yo/ y en el lento divagar/ una música brutal encendió nuestra pasión/ dame tu calor/ bébete mi amor". (Gotan Project)
10 de julho de 2006
"Mas o que eu quero é lhe dizer
que a coisa aqui tá preta".
(Chico Buarque)
* Ilustração de Rafal Olbisnki
Antipoema (trechos)
Fernando Bonassi
Alguns números dessa história
4 e meio bilhões de habitantes em confusão; 146 nações desunidas; 20 anos de ditadura; 11 contra 11; 2 torres gêmeas sacudidas; 32 dentes imaturos; 12 meses para pagar; 9 meses de gestação até a dilatação; 3 por 4 no RG; 30 mil mortos nas ruas de Chernobyl; uma puta que o pariu; 27 bichos no jogo da sorte; 24 horas de prazo com o destino; 5 dias de folia por 1 de arrependimento; 2 cabeças (uma que pensa e uma que pulsa); 2 lados da mesma moeda; 2 forças antagônicas; 2 bombas atômicas; 241 bilhões de dólares em armamentos; 7 anos de azar por espelho; 40 ladrões; 40 passageiros em pé; 36 lápis de cor; 10 metros num segundo é a gravidade das coisas desse mundo; 3 desejos irrealizáveis; 1 gênio da lâmpada; 7 pecados capitais; 7 orifícios do coração; 7 estrelas da Ursa Maior; 5 elementos; 54 cartas por baralho viciado; uma sintonia incompreensível e 9 sinfonias inacabadas; 123 quilômetros de congestionamento; 2 Coréias separadas; 2 pra lá, 2 pra cá; 2 pilotos por equipe; 8 cavalos no páreo; 24 quadros por segundo; 4 patas; 200 metros com barreiras intransponíveis; 1 trocado de aumento; 1 par de sapatos para Dorothy; 1 homem de lata; 1 homem, uma mulher; uma bala na agulha; 1 geração perdida; 26 milhões de banguelas comendo rapadura; 176 milhões de touxas à espera do futuro.
Sobremesa: "É pirueta pra cavar o ganha-pão/ que a gente vai cavando só de birra, só de sarro/ e a gente vai fumando que, também, sem um cigarro/ ninguém segura esse rojão". (Chico Buarque)
3 de julho de 2006
"De repente sou uma equilibrista muito cansada
de suster a todos por um cordel. Vou deixar cair".
(Adélia Prado)
*Imagem - Edward Hopper
O amor que a gente tinha
Raquel Medeiros
Não me peça pra calar agora. Essa é a minha hora de falar, está bem escrito aqui, no roteiro. Eu não preciso ter um final triste. Também está escrito aqui.
Onde foi que meu personagem se perdeu do teu? Foi na hora da mudança?! Eu sabia... Senti que algo tinha ficado no caminho, tinha se perdido. Nos perdemos.
Quando ouvi o barulho abafado de vidro quebrado, achei que fosse algum prato, algum copo. Mas nem era, era o amor que a gente tinha...
Eu que pensava que ele era forte, que resistiria ao tempo e à má sorte... Ele não resistiu à mudança. Caiu naquela rua... Desesperança.
Sobremesa: "Nosso amor foi uma valsa triste/ um curta-metragem de tolerância-curta". (Raquel Medeiros)
28 de junho de 2006
"Gossip face" - Muntsa Vicente
Um trago de amor
Raquel Medeiros
Me faça acordar com beijos curtos porém gentis.
Não importa quantos cigarros ficaram no cinzeiro na última discussão. Não me venha com tratamento ou terapia, que minhas fobias solto na fumaça. Pouco importa as cicatrizes físicas. Amor sem dor não rima.
Amor nem sempre é nuvem no meio do caminho. Às vezes é pedra nos rins. É mal líquido que escorre entre os dedos, e tão sólido que pode matar se cair repentinamente no coração desavisado.
Perdoa se nas palavras o amor parece pouco, parece parco. É louco, e loucura não se explica. Se assume ou se nega. É pegar ou largar. É delícia e dor na mesma proporção. E se não há retribuição, é melhor calar.
Me faça dormir com beijos longos porém febris.
Sobremesa: "Pergunte pro seu Orixá/ amor só é bom se doer". (Vinicius de Moraes e Baden Powell)
1 de junho de 2006
Drawing for canvas in bar - Elph
Relato passado de angústia presente
Raquel Medeiros
Tenho medo das tuas mãos. De ler nelas verdades sobre mim. Sobre nós. De ter meu futuro ironicamente traçado nas tuas tortas linhas.
Nunca fui reta. Nem sempre estive certa. De alguns buracos não consegui desviar. Algumas quedas me recusei a evitar.
Tive doces e amargas surpresas. Jantares meticulosamente preparados pra ninguém, e convidados que me surpreenderam quando tinha um uníco prato de sopa rala pra oferecer.
Tenho medo dos teus olhos. De ver verdades sobre mim. Sobre nós. De ter a minha face assustadoramente refletida nos teus vidros escuros.
Esse teu eterno espelho de mim, que tentei encobrir com lençóis grandes e que, ainda assim, revelaram cada cicatriz, física e emocional.
Cravo a face no travesseiro pra abafar o choro. Não descanso. Canso dessas idas e vindas. Dessas despedidas. Choro por egoísmo, que altruísmo é sempre tarefa do vizinho.
Não escrevo coerentemente. Não ando coordenadamente. Não penso racionalmente. Essas palavras saem feito sangue que não estanca, assim como esses passos tortos.
Esses pensamentos impulsivos, impossíveis de descrever.
Sobremesa: "Cresce o ponto bem no meio do amor seu centro/ assim como o que a gente sente e não diz cresce dentro". (Paulo Leminski)
23 de maio de 2006
"Existiria verdade, verdade que ninguém vê
se todos fossem no mundo iguais a você".
(Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
Berimbau (trecho)
Vinicius de Moraes e Baden Powell
Quem é homem de bem não trai
O amor que lhe quer seu bem
Quem diz muito que vai, não vai
Assim como não vai, não vem
Quem de dentro de si não sai
Vai morrer sem amar ninguém
O dinheiro de quem não dá
É o trabalho de quem não tem
Capoeira que é bom não cai
Mas se um dia ele cai, cai bem
(...)
Se não tivesse o amor
Se não tivesse essa dor
E se não tivesse o sofrer
E se não tivesse o chorar
Melhor era tudo se acabar.
(...)
Sobremesa: "Tristeza não tem fim/ felicidade sim". (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
26 de abril de 2006
"Por afrontamento do desejo, insisto na maldade de escrever".
(Ana Cristina Cesar)
Declaração de bens e males
Raquel Medeiros
Declaro, antes de qualquer coisa, que esta declaração é parcial e passional.
Não tenho muito dinheiro, aliás, nunca tive. E o pouco que tenho, mais cedo ou mais tarde, vou ter que dar parte dele ao governo. Ainda não pago imposto, mas já paguei promessa mesmo não sendo religiosa.
Quando criança, fui pediatra e professora, sem nunca ter feito graduação. Desisti de ser pediatra quando descobri que as crianças não vão a consultórios para brincar. Ainda não desisti de ser professora.
Já fui mocinha e vilã. O filme não passou nos cinemas, e ainda não teve um final. Acho que vou chorar no fim. Eu sempre choro.
Fui bailarina, leve no corpo. Bailarina de quedas e calos. Na adolescência deixei o balé pela permanência na escola. Na vida adulta deixei pela exigência do trabalho.
Nunca acreditei em príncipe encantado. Primeiro porque princesas são loiras e eu não sou. Segundo porque achava aquelas roupas ridículas e tinha medo de cavalos. Caí de um por volta dos 9 anos de idade.
Tenho o humor ácido, mas nunca consegui corroer a face de nenhum de meus desafetos.
Fui um feto que aprendeu desde o ventre a compartilhar espaço, comida e carinho. Mas sou egoísta quanto ao amor e a dor.
Estudo e trabalho. Um dia espero ver que isso valeu a pena.
Alguns dos meus sonhos não foram até o fim, ao contrário dos meus desenganos.
Às vezes acho o mundo divertido, noutras vezes parece um eterno domingo.
Já estive doente de corpo. Já tive doença na alma.
Tenho insônia, mas adoro dormir.
Sou flamenguista, portanto, masoquista.
Quero ter filhos, cachorro, um lugar para morar e outro para fugir.
Meu avô me iniciou no vício da leitura.
Meu pai me influenciou no vício do cigarro.
Minha mãe me ensinou que não posso ter tudo, e que isso não é, necessariamente, ruim.
Espero fazer muita coisa antes da morte chegar - arrumar a casa, educar os filhos, pagar as dívidas e sanar as dúvidas. E se não for muito, realizar parte dos meus sonhos.
Sou sonhadora e aprendi nos livros que isso pode ser bom ou ruim. Mas agora é tarde. Nasci assim.
Sobremesa: "Se o que eu sou é também o que eu escolhi ser/ aceito a condição". (Rodrigo Amarante)
20 de abril de 2006
Marla Singer - Fight Club
Pecado fluente
Raquel Medeiros
Você me assusta
Quando passa legivelmente
E me olha displicente
Ignorando brutalmente
Todo o meu temor.
Você me derruba
Quando me beija eficiente
E me olha ardentemente
Provocando lentamente
Todo o meu ardor.
Você me perturba
Quando me toma vigorosamente
E me possui incansavelmente
Marcando intensamente
Todo o meu amor.
Você me murcha
Quando me abandona de repente
E me deixa tristemente
Aumentando violentamente
A minha dor.
Sobremesa: "It's my big secret - keep you coming/ slow like honey/ heavy with mood". (Fiona Apple)
17 de abril de 2006
São demais os perigos desta vida
* Texto da minha pequena. Orgulho do clã. :***
Humano desolado humano
Rilma Medeiros
E Cecília sentia-se só. Mas será que em algum momento ela se reconheceu diferente disso?! Era o que ela se perguntava no alto do vigésimo quinto andar daquele prédio.
A visão era linda, bem diferente de tudo o que ela viu e viveu a vida inteira: chôro, solidão e muito, muito sofrimento. Palavras estas habituais no vocabulário de sua amarga existência.
Lembrou-se que até teve uma boa infância... Irmãos, brincadeiras, alguns amigos. Entretanto, a sensação que hoje experimentava era a de que algo faltava desde aquela época. Teve uma adolescência enleada: sonhos e projetos interrompidos, amores não correspondidos e um sentimento de solitude e angústia que teimava em atormentá-la, como se estivesse predestinada a uma vida pungente e taciturna.
Os anos passaram e em muitos as coisas mudaram. Aquela solidão parecia ter, finalmente, findado: bons amigos, paixões avassaladoras, algumas ainda platônicas, outras transformaram-se em amores correspondidos e serenos, mas Cecília ainda sentia falta de algo. Recordou naquele instante que um dia, conversando com seu avô, queixou-se desse vazio que sentia e que, por mais que tentasse, não conseguia preenchê-lo. Seu avô, com a sabedoria e serenidade as quais lhe eram bem peculiares, respondeu:
- Ceci, esse vazio que você sente todo ser humano possui. É ele que nos move à vida na busca por um preenchimento que na verdade nunca alcançaremos, pois é ele que nos estimula a desejar uma vida melhor, mais emocionante.
Cansada estava Cecília, e aquele vazio que, segundo seu avô, movia o ser humano a viver melhor, moveu-a até o vigésimo quinto andar do prédio do qual ela pulou com um único pensamento em mente: o vazio da vida só é preenchido com a morte.
Sobremesa: "O que será que será/ que dá dentro da gente que não devia/ que desacata a gente que é revelia/ que é feito aguardente que não sacia/ que é feito estar doente de uma folia/ que nem dez mandamentos vão conciliar/ nem todos os unguentos vão aliviar/ nem todos os quebrantos toda alquimia." (Chico Buarque)
11 de abril de 2006
"Não importa mais o que foi perdido, importa apenas o teu sorriso e nada
mais" - Paulinho da Viola
* Texto antigo e querido. ;)
River
Raquel Medeiros
River. Seu nome escrito assim mesmo, como rio. Os olhos dele. O meu acanhamento. O seu sorriso largo. O meu sorriso tímido. 13:00. O almoço. A conta. Eu pago. Você paga. Nós pagamos. A ida à biblioteca. A digestão. Eu recito Byron. Ele recita Sade. As segundas intenções. O desejo mútuo. A ida ao apartamento dele. As minhas mãos frias e suadas. A chave rodando na fechadura. A desistência. A desistência de desistir. Pé direito. Pé esquerdo. O vinho. A música. Chet Baker. O piano. o trompete. A dança. As taças vazias. O beijo com gosto de vinho. 19:00. O tesão. O sorriso. A troca de olhares. O desaparecimento das roupas. As mãos. Os seios. As costas. A boca. A nuca. A cama. Os quadris. O movimento. O sussurro. O suor. O deleite. O gozo. O descanso. O banho. A volta. O tesão. As repetições. O abraço. 23:00. O avanço da hora. O beijo de despedida. A volta pra casa. A distância. O jantar. O lugar vazio na mesa. Uma taça. O cigarro. 01:00. Acordo. O sonho. Não era verdade. Nem poderia. Não conheço nenhum River, escrito assim mesmo, como rio.
Sobremesa: "Não me importa juras de amor eterno/ importa que o amor seja céu e inferno/ interno e externo/ seja como for/ fostes um sonho de amor/ adormeci no meu leito/ acalentada em teu peito/ e acordei afogada num rio de solidão e dor". (Raquel Medeiros)
7 de abril de 2006
"A vida é a arte do encontro, embora
haja tanto desencontro pela vida".
(Vinícius de Moraes)
Fragmentos do vazio II
Raquel Medeiros
Ali, no mesmo vagão da mulher das más escolhas, está um velho, catando alguma coisa na bolsa, como um mágico que procura um coelho numa cartola furada. Uma procura urgente, parecia que faltava pouco para que seu juízo chegasse ao final.
Cata insistentemente, e enfim retira da bolsa algumas fotografias. E mesmo em meio a tantas rugas, é possível ver suas expressões. Lágrimas contidas e um tanto considerável de nostalgia explícita.
Ele pega uma das fotografias e solta as outras no colo. Pára e deixa que as lágrimas contidas reguem a pele enrugada. Na foto, já amarelada, alguns jovens sorriem. O cenário parece ser uma praia, e um dos rapazes - de roupa de banho branca e preta - parece muito com o velho, antes dos cabelos brancos, das marcas do tempo e do sofrimento. Ao seu lado, uma linda moça emoldurada por um maiô preto. Ela sorria e era visível sua felicidade e seu viço. A pele branca e a abundância de suas formas eram o padrão de beleza da época. Uma bela mulher.
O velho acaricia a foto, mais precisamente a imagem da moça. Contorna sua face e seu corpo com os dedos como se pudesse tocá-la de fato. Tira os óculos e chora compulsivamente, como uma criança. Depois ri compulsivamente, como uma criança. Enfim cai num sono profundo, deixando cair os óculos que não vai mais precisar.
Sobremesa: "Porque o tempo é uma invenção da morte/ não o conhece a vida - a verdadeira/ em que basta um momento de poesia/ para nos dar a eternidade inteira". (Mário Quintana)
4 de abril de 2006
Little red riding hood in ribbon - Shimizu
Fragmentos do vazio
Raquel Medeiros
... A maldita quadrilha de Drummond: ela-que-amava-ele-que-amava-outra. Nunca foi boa com escolhas. Nem as roupas (listras com bolas, xadrez com losangos); muito menos com homens. Se um a espancava de um lado; o outro nem lhe dava a chance do amor. Do recomeço.
Resolve pegar o trem sozinha, pois assim nasceu, e assim haveria de morrer. Mesmo que o outro lado cama não esteja vazio. Tem gente que vem ao mundo e sai dele sem conhecer o tal amor, aquele que é feito de doação, cuidado e zelo. Ela só conhecia o amor da renúncia. Sempre por parte dela. E só.
Entra no vagão. Este está tão vazio quanto as esperanças que ela carrega. Na bolsa, um espelho no qual nem tem coragem de ver refletido o trapo em que se transformou. Um batom gasto e uns poucos trocados. Doses homeopáticas de uma vida que ela escolheu mal. Doses cavalares de um vazio que a escolheu.
Sobremesa: "Tudo pisado, tudo partido/ tudo no chão jogado/ e em cada canto/ teu desencanto/ tua melancolia/ teu triste vulto desesperado/ ante o que eu te dizia/ E logo o espanto e logo o insulto/ o amor dilacerado/ e logo o pranto ante a agonia do fato consumado." (Vinícius de Moraes)
29 de março de 2006
"Morena dos olhos d'água, tire os seus olhos do mar
vem ver que a vida ainda vale o sorriso que eu tenho
pra lhe dar". (Chico Buarque)
Jazz me blues
Raquel Medeiros
Todo mundo sabe o que é se sentir só
Alguns sentem mais que outros
Outros fingem mais que alguns.
Solidão é blues sem blue
É pendurar no varal a roupa do amor morto
Com a esperança de que o vento seque a roupa
E traga para o tecido vazio um amor novo
É ver a noite desfilar insana e destilar insônia.
Todo mundo sabe o que é chorar
Alguns choram por falta de saúde
Outros por excesso de saudade.
Choro é jazz que jaz
É desidratar enquanto rega as plantas
Com a esperança de que a água que hidrata ali
Não maltrate, não mate a vida que corre aqui
É chuva que dia de sol nenhum consegue secar.
Hoje é dia de ser só
É dia de chorar
Um sorriso negado
Um recado atrasado
Um nó muito apertado
Um samba cantado em dó.
Com o coração nublado
E na falta de alento
Acendo um cigarro e sento
E sinto que sinto tanto
E que hoje tenho na solidão e no pranto
O meu fado.
Sobremesa: "A vida da gente é mistério/ a estrada do tempo é segredo/ o sonho perdido é espelho/ o alento de tudo é canção/ o fio do enredo é mentira/ a história do mundo é brinquedo/ o verso do samba é conselho/ e tudo o que eu disse é ilusão". (Paulinho da Viola)
16 de março de 2006
"Life is what happens to you
while you're busy making other plans."
(John Lennon)
Escritas da memória
Raquel Medeiros
Sabia que não devia ficar lembrando certas coisas. É tirar casca de ferida. É apertar o lugar da pancada. É colocar sapato apertado no pé calejado. É masoquismo intencional.
A cidadezinha onde cresceu não era muito habitada. Algumas casas pequenas; outras grandes. Casas amarelas, brancas e até azuis. Mais entre elas sempre havia uma árvore, um espaço por onde o vento passava. Por onde o vento passeava.
A menina cresceu e precisou sair de lá. Foi um choro, um sofrimento. Masoquismo necessário. Era hora de crescer, de amadurecer. Mas da mamória, o que não saía era aquele vento, a sensação de liberdade, de leveza e de vida em todas as direções.
Longe, fez o que tinha que fazer - conquistou coisas: trabalho, amor, sofrimento, amizades e desafetos.
Um dia sentiu tantas saudades, apertou tanto a ferida, que ficou sem ar. E o pulmão sufocado pediu pra voltar. Quando chegou na cidadezinha, não havia mais vento. As pessoas tinham construído casas tão altas que parecia que queriam morar no céu mesmo antes de morrer. Curioso é que também construíram um quadrado que as trazia de volta para o chão. Eram dezenas na mesma grande casa vertical, mas poucas delas se conheciam.
O masoquismo inevitável do progresso construiu uma barreira contra o vento. E a menina, agora mulher, precisou construir uma barreira contra a saudade, pra não morrer por falta de ar.
Sobremesa: "A gente vive a fazer anacolutos, pra que as metáforas não se desenvolvam e se transformem em bombardeios sem nenhum eufemismo". (Raquel Medeiros)
6 de fevereiro de 2006
Masks in Venice - Evgen Bavcar
How sexy is the silence?
Raquel Medeiros
A primeira vez que o vi foi num desses bares de luz pouca, com meninas de minissaia sentadas em máquinas de pinball quebradas. Som alto e ruidoso.
Dei três voltas, tomei quatro doses de tequila, dei três espirros e sentei aliviada e corajosamente na mesa em que ele estava. Sem dizer nada, levei um cigarro à boca e ele acendeu, sem hesitação.
Mal dei o último trago e ele me puxa para o centro do bar. Dançamos. Sem pisões no pé. Sem calos. Sem uma única palavra. E eu que sempre fui oxítona de má fé, me senti à vontade naqueles braços. Gargalhei e encarei-o. Sem ensaios.
Encaixe perfeito de lábios, de línguas. De trato e de tato. De olfato e paladar. Algumas voltas e eu não enxergava mais ninguém. Não ouvia nada além da música. E antes que minhas pernas cansassem, estávamos deitados em lençóis que eu não conhecia, mas reconhecia o cheiro neles. O meu e o dele. Não sabia seu nome, se tinha emprego ou não, nem mesmo se aquela era a sua cama, mas naqueles lençóis só haviam resquícios de nós dois.
Ele foi embora sem que eu soubesse se aquele silêncio duraria depois da música. Sem saber se nos apaixonamos.
Tantas outras vezes cruzei as portas daquele bar. As mesmas máquinas de pinball que nunca consertam. A mesma tequila barata. Mas não havia silêncio.
Dancei. O corpo movimentando-se conforme a música. Confome as regras do “estar só”. Conforme a dor. Fechei os olhos acreditando que tudo vai ficar bem. Que vou conseguir dançar outras músicas. “São dois pra lá. Dois pra cá.”
Sobremesa: "Mas é carnaval, não me diga mais quem é você/ amanhã tudo volta ao normal/ deixa a festa acabar, deixa o barco correr/ deixa o dia raiar que hoje eu sou da maneira que você me quer/ o que você pedir eu lhe dou, seja você quem for/
seja o que Deus quiser". (Chico Buarque)
20 de janeiro de 2006
"Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo"
(Vinícius de Moraes)
* Parceria de letras e de vida. De prosa e de poesia. Somos "Rodrigueanas".
Na companhia da luz
Tyara Veriato
Ela estava ocupada em esperar, por isso passou o dia alimentando a ansiedade com pequenos indícios, que iam do toque do telefone, passando pelos os sons vindos da esquina, até a imaginação de como seria a chegada. Acomodou-se na calçada pra ver o carro chegar, depois viu que a melhor estratégia era esperar no pé do portão, com a causalidade de quem acabou de sair. Gostava de provocar encontros furtivos, eram acasos friamente planejados. "Já que o destino não faz, faço eu", a lógica era essa. Às vezes entrava, tomava um copo d'água, olhava para o relógio e dava uma volta na casa, sempre atenta a qualquer barulho. Quando ouvia, saía desembestada, parava a um metro do portão e desfilava calmamente em direção à rua. Foi um dia de pupilas dilatadas e reflexos aguçados. Quando o sol se pôs, estava exausta, mas não desistiu da espera, passou a observar da varanda os faróis dos carros, afinal, na noite as surpresas vêm na companhia da luz.
Sobremesa: "Vou colocar batom vermelho escrevendo "desejo" nos lábios/ sapatos altos calçados lentamente entre uma tragada e outra/ vou arrumar a casa/ enfeitar com flores e fazer um delicioso jantar/ vou colocar gotas de perfume enquanto penso em dedos a acompanhar essas gotas que percorrem o arrepio da pele/ vou acender outro cigarro e caminhar em direção ao portão/ vestido justo colado ao corpo/ espera injusta colada à alma." (Raquel Medeiros)
17 de janeiro de 2006
Let's play together
Rayuela (trecho)
Julio Cortázar
O jogo da amarelinha joga-se com uma pequena pedra que é preciso empurrar com a ponta do sapato. Ingredientes: uma calçada, uma pedrinha, um sapato e um belo desenho feito com giz, preferivelmente colorido. No alto, fica o Céu, em baixo a Terra, é muito difícil chegar com a pedrinha ao Céu, quase sempre se calcula mal e a pedra sai do desenho.
Pouco a pouco, porém, vai-se adquirindo a habilidade necessária para salvar as diferentes casinhas (caracol, retângulo, fantasia, esta pouco usada) e um dia se aprende a sair da Terra e levar a pedrinha até o Céu, até entrar no Céu (...) o pior é que, justamente nesse momento, quando ainda quase ninguém aprendeu a levar a pedra até o Céu, a infância acaba de repente e se chega nos romances, na angústia do divino foguete, na especulação do outro Céu ao qual também é necessário aprender a chegar. E, por se ter saído da infância (...) esquece-se que, para alcançar o Céu, é preciso ter como ingredientes, uma pedrinha e a ponta do sapato.
Sobremesa: Maria tinha uma pedra, um sapato e um caminho/ no meio do caminho, a pedra entrou no sapato/ e Maria nunca alcançou o Céu". (Raquel Medeiros)
6 de janeiro de 2006
"Sem você sou pá furada."
(Rodrigo Amarante)
Sem sinal de fumaça
Raquel Medeiros
Noite insone, como de costume. Na mesa, um maço de cigarros. Vazio. Sinto vontade de fumar e me culpo por isso. O dia não foi bom. Ensolarado por fora. Nublado por dentro. Uma vontade de deixar tudo pra trás. De me deixar pra trás. De não saber quem sou. Por isso desejo um cigarro. Não consigo levantar nem pra contar os trocados para um maço. A que horas você volta? Não quero jantar sozinha de novo. Não quero ver Before Sunrise sozinha pela quinta vez e ficar com saudades dos nossos diálogos. Não quero adormecer no sofá e acordar sozinha, nessa espera vã. Não quero levantar e ter que encarar os outros e a mim mesma. Não quero enfrentar a rotina sozinha. Não consigo. E aquelas nuvens de chuva resolveram se espremer sobre os meus olhos. Mas apesar da dor, do choro e desse imenso vazio, só te peço que quando voltares traga-me um maço de cigarros.
Sobremesa: "O inverno aqui durou muito tempo/ não sei precisar, mas tive crises de choro fantasiadas de resfriados contínuos/ foi uma pneumonia branda/ Eu suo frio só de pensar em injeção/ mas todos os dias me forçava a tomar uma dose cavalar de ânimo pra enfrentar a vida". (Raquel Medeiros)
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